Dizem que os fantasmas dos mortos têm preferência pelas sombras da noite, para trazerem aos vivos um reflexo esbatido do mistério em que se lhes fecharam os olhos. Em todos os lugares, conhece-se a história das almas aflitas, que, agrilhoadas ao mundo pelo pensamento obsidiante acerca dos que ficaram para trás, regressam dos orbes indevassados, onde quase todas as religiões colocaram o seu inferno e o seu Céu.
Eu não venho, nessa “hora que apavora”, copiando as deliberações das “damas brancas”, que surgem nas casas solarengas como abantesmas de luar e de neblina, contrastando com a pesada escuridão da meia-noite.
É até muito cedo para que um “morto” apareça, contrariando as opiniões gerais. Ainda há réstias de sol evadindo-se entre os arvoredos, como as rolas morenas e ariscas fugindo à noite cheia de sombras. Há uma grandiosa placidez na paisagem que se aquieta como ovelha mansa para ouvir a voz carinhosa do pastor. Vem aos olhos do meu pensamento aquele quadro de há dois mil anos. Quando o Cristo pregou o Sermão da Montanha, (Lc
É debalde, porém, essa tentativa de confinarmos a Palestina nas montanhas do sertão brasileiro. Se é verdade que os Espíritos sempre falaram sobre os pontos alcantilados da Terra, como no Sinai e no Tabor, nós não somos o Divino Mestre. Há quem afirme que nós, os desencarnados, somos precursores, como João Batista. Mas, ainda não encontrei vivalma nessa situação especialíssima. Como os que hoje andam aí atribulados com o progresso, estamos longe da época messiânica, em que os homens puros, para viverem sob a guarda de Deus, nada mais precisavam que um cântaro de mel.
Mas, não venho hoje para tecer considerações dentro da mística religiosa.
Venho para falar a quantos estranham as minhas palavras depois da morte, admirando-se de que eu não apareça clamando perdão e misericórdia, penitenciando-me dos mais nefandos pecados.
Desejariam que o Senhor derramasse sobre mim todas as suas cóleras sagradas; todas as torturas do seriam poucas para me consumir a alma. Os vermes que corroeram o corpo leproso do patriarca da Bíblia seriam, para as minhas culpas, como leves carícias. Meus tormentos de além-túmulo deveriam exceder os de . E tudo porque andei espalhando umas anedotas lidas pelas consciências que, condenando-me hoje lá das suas sacristias, vivem pensando no Céu, sentindo na boca um gosto rubro de pecado.
São as almas imaculadas que se esqueceram das minhas feições humanas, olvidando que os palhaços também divertem o público para conquistar os vinténs negros da vida. Se existem aí os que se confortam no luxo dos seus automóveis, deslizando no asfalto das avenidas, outros, para baterem à porta de uma padaria, é preciso que hajam passado através de um picadeiro.
Já tive que não encontrei o paraíso muçulmano.
Encontrei, nesse “outro mundo”, a minha própria bagagem. Meus pensamentos, minhas obras, frutos dos meus labores, da minha regeneração no sofrimento. Sem estar na beatitude do Céu, não conheço igualmente a topografia do inferno. Os uivos de ainda não ecoaram aos meus ouvidos. O “nessun maggior dolore” [nenhuma dor maior], que Dante escutou dos lábios de Francesca da Rimini, em sua peregrinação pelas masmorras do tormento, constituiu provavelmente um resultado da perturbação de seus nervos auditivos, porque eu afirmo o contrário. Não há maior prazer que recordar, na paz daqui, as nossas dores na Terra.
E todos aqueles que vêm à ribalta, lamentando o meu relativo sossego, cuidem de conservar a sua pureza. A Terra é tão inçada de abismos que, às vezes, procurando olhar em excesso pelos que nos acompanham, costumamos cair neles.
Eu sou, de fato, grande culpado, não pelos meus esgares de caveira para arrancar o riso dos outros, mas diante da minha consciência, pela minha teimosia e incompreensão referentes aos problemas da Verdade. Todavia, Deus é a misericórdia suprema e, sem me acorrentar a colunas incandescentes, já prendeu meu coração de filho pródigo nas algemas suaves do seu amor.
5 de agosto de 1935.