Crônicas de Além-Túmulo

Capítulo XXVIII

Respondendo a uma carta



Minha senhora eu sempre julguei que terminadas as lutas da vida, jamais poderia voltar o meu Espírito das correntes tenebrosas do , que os homens colocaram no Peloponeso escuro da morte.

Mas, eis que volto dos palacetes aéreos onde se reconforta minha alma, esquecida do jazigo subterrâneo em que repousam meus alquebrados ossos, e recebo o angustioso apelo do seu coração. A senhora envia-me uma cartinha breve, escrita com as próprias lágrimas da sua dor, fazendo-me confidente da sua imensa amargura, como se eu ainda estivesse aí no mundo, escravizado a todas as suas algemas e a todas as suas conveniências, por mal dos meus pecados. Agora, porém, graças a Deus, estou isento de todas as pesadas contribuições terrestres, inclusive a do imposto do selo, para enviar-lhe o meu pensamento.

Falo-lhe do mundo de vida nova e de maravilhosa ressurreição, onde a esperam aquele esposo dedicado e amigo e aquele filho valoroso e leal que a senhora viu partirem para as fronteiras tristes e nubladas da morte, como petrificada no seu desespero inconsolável.

Os movimentos revolucionários do Brasil destroçaram-lhe o coração amoroso e sensibilíssimo. Em trinta [1930], quando os políticos novos se rejubilavam sobre os destroços da República Velha, enquanto se enfunavam bandeiras e vibravam mocidades, a sua alma de mulher, sozinha e triste, chorava sobre o túmulo do companheiro que Deus lhe havia dado e com quem edificara através da luta e dos anos o ninho quente e doce em cujos delicados contornos o seu espírito se havia dilatado, prolongando-se nos filhos, satélites abençoados do seu amor e do seu coração. Esse golpe foi a grande espada de dor, estraçalhando para sempre a tranquilidade da sua vida.

Em 1935, eis que perde seu filho, digno sucessor da patente do pai, num outro movimento de forças homicidas. Sua alma de viúva e de mãe cobriu-se então de luto e de lágrimas, para sempre. Uma saudade oceânica absorve-lhe todas as atividades e todos os momentos, e no silêncio da noite, quando todos se entregam ao amolecimento e ao repouso, seu Espírito está vigilante como os soldados de Pompeia, apesar dos decretos irrevogáveis do destino, esperando que surjam as visões consoladoras do companheiro bem-amado e do filho inesquecido, até que as primeiras claridades do dia venham desfazer o magnetismo suave das suas esperanças. No mundo das suas recordações fulguram relâmpagos e, assombrada, sua alma vê passar todos os dias, nas estradas imensas da sua amargura, os fantasmas de todos os sonhos mortos, mergulhados no ataúde de suas desilusões.

Para uma alma de mãe que chora, nunca há consolação bastante no mundo. Um coração materno, pranteando sobre as lutas fratricidas, é sempre um símbolo dos sofrimentos da Humanidade crucificada no madeiro das hostilidades patrióticas, que separaram os povos do amor fraterno, destilando o veneno do ódio nos seus corações.

Já se disse que a guerra é o fator de todos os progressos do orbe, mas temos de convir em que toda a civilização é um produto detestável do martirológio das mães desveladas e sofredoras. É por isso, talvez, que a civilização dos homens cai sempre na esteira infinita do tempo, como fruto amargo e apodrecido. Todos os calendários, surgidos nos milênios, assinalam épocas de opulência e de grandeza, para se desfazerem nos abismos da miséria e da morte. No declínio de cada período evolutivo do planeta reúnem-se, em vão, os políticos e os guerreiros para salvá-lo, como agora acontece no mundo ocidental, no desfiladeiro da destruição, criam-se conciliábulos de paz impossível, porque, através de todos os edifícios suntuosos e de todas as doutrinas políticas, faz-se ouvir a mesma voz compassiva e lamentosa: — “Caim, que fizeste do teu irmão?” (Gn 4:9)

É que nunca se reuniram os homens para salvar a civilização, com a ternura das mães, com os seus devotamentos e com os seus sacrifícios; nunca se recordaram de uma estatística dos corações maternos antes de prepararem uma batalha, embora se deva à mulher todos os monumentos de fé realizadora que os homens têm construído na face do mundo.

E, no seu caso, a dor que a martiriza fere mais fundo o seu coração, porque o esposo e o filho não pereceram num campo inimigo, onde batalhassem com o título de “bravos”, título esse ainda justificável em virtude da ignorância das leis divinas, mas, assassinados por seus próprios irmãos, com estúpida crueldade. Os fatos, em verdade, não pertencem à História Pátria, mas, sim, à legislação do Código Penal. Todavia, minha senhora, não busque a proteção das leis judiciárias, estruturadas pelos homens. Subordine os julgamentos dos atos perversos, de que foi objeto, ao Tribunal Divino, que legisla acima de todas as forças políticas da Terra.

Sofra o seu martírio com amargurada resignação.

O sofrimento é como um absinto maravilhoso. Se a sua taça está hoje cheia de fel inevitável, esse líquido amargo nunca se escoa. Aqueles que lho deram vêm atrás dos seus passos. O mesmo fel os aguarda nos caminhos tortuosos da vida.

Eu não tenho argumentos para consolá-la, senão os de minha própria sobrevivência, fornecendo-lhe a certeza de que um dia encontrará, numa vida melhor os bem-amados do seu coração. Sua mágoa é daquelas que a esponja insaciável do tempo não apaga na Terra; mas, viva a sua existência com as esperanças colocadas no Céu. Lembre-se da Mãe de Jesus: ela sintetiza as angústias de todos os corações maternos, perdidos como flores divinas entre as urzes e os espinhos do mundo, e sentir-se-á tocada de uma luz suave e misericordiosa. Uma sagrada e terna esperança balsamizará, como um luar perene, a noite das suas desventuras, adquirindo a força necessária para vencer nas estradas ríspidas e espinhosas. Amparada na fé, espere no altar da oração o dia da sua liberdade espiritual. Nessa hora de claridades doces e alegres para o seu coração, a senhora verá que, no turbilhão das lutas da Terra, todos os que contemplam o Céu são também por ele contemplados.


(.Irmão X)


20 de abril de 1937.