Cartas de Uma Morta

Capítulo V

A Terra, obscuro planeta de exílio e de sombra, vista do Além



Após adaptar-me mais ou menos a essa nova vida, ocorreu-me como vos poderia rever e solicitei de um instrutor informação a respeito.

— “Sabes em que direção está a Terra?” — perguntou ele com bondade.

Diante da minha natural ignorância, apontou-me com a destra um ponto obscuro que se perdia na imensidade, recomendando fitá-lo atentamente. Afigurou-se-me vê-lo crescer dentro de um turbilhão de sirocos indescritíveis. Parecia-me contemplar a impetuosidade de um furacão a envolver grande massa compacta de cinzas enegrecidas.

Tomada de inusitado receio, desviei o olhar; porém, o meu solícito guia, exclamou com brandura:

— “Lá está a Terra com os seus contrastes destruidores; os ventos da iniquidade varrem-na de pólo a pólo, entre os brados angustiosos dos seres que se debatem na aflição e no morticínio. O que viste é o efeito das vibrações antagônicas, emitidas pela humanidade atormentada nas calamidades da guerra. Lá alimentam-se as almas com a substância amargosa das dores e sobre a sua superfície a vida é o direito do mais forte. Triste existência a dessas criaturas que se trucidam mutuamente para viver.

“São comuns, ali, as chacinas, a fome, as epidemias, a viuvez, a orfandade que aqui não conhecemos… Obscuro planeta de exílio e de sombra! Entretanto, no universo, poucos lugares abrigarão tanto orgulho e tanto egoísmo! Por tal motivo é que esse mundo necessita de golpes violentos e rudes.

“Busca ver naquelas regiões ensanguentadas o local em que estiveste. Pensa nos que lá deixaste, cheios de amargurosa saudade! Deus permite e eu te auxilio.”



Delineei, então, na mente, tudo quanto se relacionava com a minha derradeira existência. Primeiramente, vi-me à margem de uma encantadora paisagem marítima avistando um caminho longo, através do qual fui impelida a seguir.

Sentia-me na posse das faculdades volitivas, que obtivera com o meu desprendimento da vida carnal, e numa fração infinitésima de tempo estava ao vosso lado.

Ah! Como vos abracei a todos, emocionada e recolhida! Como achei pequenino o nosso antigo lar e como me penalizou o quadro das vossas dores e dificuldades!

Chorei amargamente vendo a miséria do mundo que vos compele ao sofrimento e a uma batalha sem tréguas!…

Então misturei, com a prece dos encarnados, sofredores e aflitos, a oração de minha alma amedrontada, rogando ao Pai Celestial que vos fortificasse na luta redentora, onde, ao lado dos inúmeros prantos e das alegrias mascaradas, esvoaça o bando das mil tentações que assediam os Espíritos no ambiente obscuro da vida carnal, obrigando-os ao esquecimento de seus deveres e de suas austeras obrigações morais.



A grande dificuldade dos desencarnados, para se fazerem compreendidos no tocante às modalidades da nova existência com todos os seus pormenores, reside justamente na ausência de termos comparativos: falta-lhes, em se manifestando nesse sentido, a lei analógica a fim de que se possa assimilar devidamente o que digam.

Para darmos a ideia do que seja a nossa vida e os detalhes da nossa habitação, muitas vezes é preciso que recorramos às imagens que a Terra nos oferece, a tudo quanto o homem, em sua situação temporária, tem guardado na retina.



Nos Planos adjacentes ao mundo, contudo, a vida espiritual transcorre em ambiente semelhante ao da vida terrena.

Suas construções, à base de uma substância para nós desconhecida, têm, mais ou menos, as disposições que aí se observam; todavia, nas menores coisas, há um caráter de transição, obrigando o Espírito a elevar suas aspirações e seus interesses para o Alto.

Nos locais em que me encontrava temporariamente, muitos departamentos haviam que se preparavam às pressas. Decorações, ornamentos, objetos, tudo ali se achava e se confundia, dando perfeita ideia de grandes estabelecimentos hospitalares cuidadosamente organizados.



Surpreendida, vim a saber que os preparativos se destinavam aos recém-desencarnados da última grande guerra; e não foi ainda sem surpresa que vi chegarem os primeiros ocupantes daqueles alvos leitos, que se perdiam nas vastas enfermarias, graciosas e confortáveis, não sabendo explicar por que razão havia necessidade daquele cenário, mundano em demasia, onde nada faltava, nem mesmo os instrumentos de técnica operatória.

De instante a instante eis que chegava uma leva de macas, conduzidas por almas solícitas e devotadas.

Se muitos hospitais de sangue são preparados na Terra, nos infaustos dias de lutas fratricidas, mais ainda são as organizações congêneres nos Planos da erraticidade. Nem todos, porém, que desencarnam, abrigam-se em semelhantes lugares, havendo situações especiais, privativas àqueles que a elas fizeram jus.



Admirei a delicadeza com que os seres espiritualizados recebiam os seus irmãos egressos dos combates, onde centenas de vidas jovens foram ceifadas impiedosamente. Eram, assim recolhidos com a maior bondade, como se fossem feridos penetrando nos hospitais comuns da Terra.



Muitos dos que ali ingressavam, manifestavam o seu pavor à morte, rogando em altos brados que os livrassem de perecer. Solicitavam aos que os assistiam socorro e auxílio, suplicando que lhes prolongassem a vida em favor da noiva idolatrada, dos pais carinhosos e queridos, dos seres inesquecíveis que haviam ficado à mercê do abandono e do infortúnio.

Era para mim, singularmente interessante, ouvir-lhes essas rogativas, porquanto desconhecia ainda todo o poder somático sobre a inteligência recém-desencarnada.



Eram todos tratados com inexcedível carinho e as suas amargas queixas obtinham réplicas afetuosas e animadoras promessas.

Alimentação e tratamento tudo se assemelhava estritamente ao que se pode verificar na face do orbe, até mesmo certas bagatelas que constituíam motivos de prazer para alguns, como o uso do tabaco ou de beberagens preferidas.

Tudo ali era confeccionado por entidades zelosas a fim de que se preparassem convenientemente para o conhecimento do que ocorria. Paulatinamente recuperavam suas forças perdidas; e os que se mantinham num estado, que podemos classificar como o de convalescença, eram separados dos demais companheiros.



Recebiam, então, vaga noção da verdade, observando fenômenos interessantes, operados por sua vontade sobre as matérias circunstantes, cuja maleabilidade os assombrava.

Esclarecidos mestres, frequentemente, lhes dirigiam a palavra como apóstolos da paz, em excursão nos departamentos militares.



Lembro-me de que, certa vez, quando elevado mentor espiritual exaltava os benefícios da fraternidade, um dos ouvintes interpelou-o:

— “Não se pode pregar a paz em tempo de guerra!”

— “Que é a vida, meu filho, senão amor? E poderá haver amor sem paz?” — replicou-lhe docemente o apóstolo.

“Foi a maldade dos homens que engendrou a guerra, dizimadora dos ideais e das existências. As fúrias da impiedade varrem quase todas as extensões da Terra e os corações se dilaceram ao sopro frio da adversidade!… Poderia Deus, em sua misericórdia, sancionar esses crimes nefandos? Para sua infinita bondade não existem franceses ou alemães: há filhos bem amados da sua sabedoria e do seu amor.”



Houve, porém, na grande assembleia, que ouvia aquela voz estranha, um surdo clamor de protesto.

— “Serenai o vosso ânimo!”— objetou-lhes calmamente.

“Em vão levantais o vosso clamor de protesto… Ouvi-me. Tende-vos preparado convenientemente para saber a verdade. Já não podeis integrar as fileiras de combatentes que fornecem mão forte à nefasta política da incompreensão das leis divinas. Para a Terra, em cuja face presumis continuar, sois mortos anônimos, sois o soldado desconhecido. Aprouve à magnanimidade da Providência que aqui fôsseis acolhidos suavemente, sem abalos prejudiciais. Vossos corpos estão muito distantes, no regaço da Terra benfazeja, estraçalhados por forças cegas e assassinas!

“Ingressastes em outra vida. Compete-vos, portanto, esquecer os vossos dias, aniquilados pelo ódio execrando!

“Considerai a lei de amor que deve unir todas as almas como laço eterno e sacrossanto!”



Então, como se estivesse em ação um misterioso poder, a atmosfera transmutou-se, afigurando-se-me haver se rasgado grande nuvem.

Uma paisagem maravilhosa desenhou-se na imensidade: muitas mães estendiam seus braços amorosos aos filhos sempre lembrados; muitos seres caros, chorando de emoção e alegria, vinham ao encontro daqueles corações tomados de espanto e de receio.

Uma estrada florida desdobrou-se sobre as nossas cabeças e um hino vibrante se ouviu nas vibrações do éter. Era a glorificação de ventura do Espírito imortal, onde haviam sonoridades indescritíveis.

“Oh, Senhor do Universo, vós, que criaste todas as coisas, concedeste-lhes a beleza da imortalidade.

“Sede bendito por todos os séculos dos séculos, pela dor que nos redimiu e nos lavou todas as culpas, pelas lutas onde adquirimos experiência e denodo moral, pelo vosso amor intraduzível que nos legou todas as felicidades imorredouras!

“Como é grande, Senhor, o júbilo do nosso último dia na Terra, se só em vós buscávamos amparo e consolação, repouso e fortaleza, carinho e proteção!”



Todas as vozes então se reuniram num coro inigualável e, naquele dia, presenciando o esclarecimento de algumas almas que daquela hora em diante, se tornaram em ativas colaboradoras da beneficência sideral, assisti uma das mais comovedoras homenagens prestadas à bondade do Criador.




— Referências sobre a guerra de 1914.