Toda a filosofia dos grandes iluminados de todos os tempos e países gira em torno do sujeito e é indiferente em face dos objetos, ou, quando se interessa pelos objetos, fá-lo secundariamente, em dependência do sujeito.
O profano total só conhece objetos e ignora o sujeito.
O místico só se interessa pelo sujeito e foge dos objetos.
O homem crístico plenamente realizado em si mesmo interessa-se pelos objetos mas tão-somente através do sujeito e em perfeita harmonia com este.
Sendo que os grandes iluminados falam a uma geração de profanos, e não de místicos, é natural que eles frisem muito mais a necessidade de abandonar os objetos, radicalmente, do que da possibilidade de possuir os objetos em subserviência ao sujeito. O homem profano não tem força suficiente para usar os objetos sem deles abusar, como está acostumado a fazer: por isso, a única recomendação que se lhe deve fazer é a de recusar de vez e abandonar radicalmente os objetos, a fim de poder realizar o seu sujeito, isto é, sua alma, seu verdadeiro Eu divino. Numa humanidade de homens libertos da escravidão dos sentidos e da mente poderia um iluminado falar de outro modo, aconselhando o regresso aos objetos, porque um homem firmemente consolidado no mundo espiritual poderia, sem prejuízo, possuir os objetos sem ser por eles possuído. Schweitzer tem razão quando diz que "o cristianismo é uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo"; e razão também tem Gandhi, quando recomenda a seus discípulos: "Abandona o mundo, entrega-te a Deus – e depois recebe de volta o mundo purificado das mãos de Deus!" Mas onde estão esses heróis crísticos capazes de "afirmar" o mundo, de o "receber de volta", sem sucumbirem miseravelmente às seduções desse mundo? Para o imperfeito, o mais seguro é negar radicalmente o mundo, como Jesus recomendou àquele jovem rico, que, embora fosse um homem eticamente bom, estava longe de ser um homem espiritualmente perfeito; não havia negado o mundo, e por isso não podia afirmar sem perigo. O jovem não teve coragem para negar o seu mundo de riquezas e comodidades, por sinal que estava possuído daquilo que julgava possuir.
E é essa a ilusão funesta e fatal de milhares e milhões de outros que se julgam possuidores, mas não possuídos e possessos pelas coisas do mundo. Para todos eles, a única salvação está em tomar uma atitude radical, negando de vez o mundo, abandonando tudo que os impede de se encontrar a si mesmos, descobrindo o reino dos céus em si.
Os objetos que costumeiramente escravizam o homem podem reduzir-se a três categorias:
1) bens de fortuna;
2) prazeres corporais;
3) ambição mental. São esses os "tesouros na Terra", que predem o homem e lhe tornam difícil ou impossivel enxergar e possuir o "tesouro nos céus", que é um "tesouro oculto", uma "pérola preciosa". "Terra" é tudo que é externo, objetivo, horizontal. "Céu" simboliza tudo que é interno, subjetivo, vertical.
Em última análise, o que impede o homem profano de enxergar as coisas do seu céu interior é uma estranha ignorância ou cegueira. O homem profano acha-se, de fato, num estado de sono e sonho. A sua vida é totalmente dominada por uma espécie de "sonho mental". Julga estar acordado, em plena vigília, mas é engano dele; a sua vigília é muito incompleta; está mais dormente do que acordado. O estado físico-mental é uma estado de sono ou sonambulismo.
Quando o homem dorme profundamente, é inconsciente, não tem sonhos.
Quando dorme menos profundamente, passa a ser semiconsciente, e muitas vezes tem sonhos. Esses fragmentos da sua vida sensitiva e mental esvoaçam pelo ambiente crepuscular do seu semiconsciente, sem ordem nem nexo. O homem sonha como real o que é irreal. E o conteúdo dos seus sonhos continua a ser real para ele enquanto continuar nesse mesmo plano crepuscular do sonho. Compra, por exemplo, um bilhete na loteria e ganha alguns milhões, a sorte grande; vai depositar a sua inesperada fortuna num banco, sai à rua – e é atropelado por um automóvel que o mata instantaneamente. Tanto aqueles milhões como essa morte são realidades para o sonhador, e só consegue sair desse mundo de ilusões, tido por real, quando acorda do seu sono e sonho. Só então verificará a irrealidade daquilo que no sonho lhe era real.
Quer dizer que o conceito da realidade é algo muito relativo, precário e variável; depende da maior ou menor consciência do sujeito. "O conhecido está no cognoscente segundo a capacidade do cognoscente. " Depois de acordar do seu sono e sonho, esse homem sobe ao plano da consciência mental – e mais uma vez está convencido da realidade de tudo que, nesse novo plano, se lhe apresenta como sendo real, isto é, todo esse mundo de matéria e forças; dinheiro, terrenos, casas, arranha-céus, fábricas, automóveis, prazeres, prestígio social, autoridade política, realizações científicas e técnicas – tudo isso é para o sonhador mental um mundo solidamente real, e, enquanto permanecer envolto e submerso nesse oceano de matéria e forças veiculadas pelos sentidos e pelo intelecto, ninguém o pode convencer de que está sonhando. É absolutamente certo que o mundo dos objetos e das quantidades tridimensionais não é um mundo real. Verdade é que esse mundo do tempo e do espaço também não é propriamente irreal, como pretendem certos sistemas filosóficos. Não é real nem irreal. Entre o real e o irreal há um terceiro, o realizado, quer dizer, o efeito causado por uma causa real. Esses efeitos não possuem a realidade da causa que os produziu;
são apenas realizados, causados, efetuados, e, portanto, inferiores à causa causante.
Real é só Deus.
Irreal é o nada.
Realizado é tudo que a causa real realiza.
De maneira que o mundo dos objetos quantitativos, onde o homem profano localiza os seus tesouros, e de cujo material os fabrica, não é um mundo solidamente real, senão apenas precariamente realizado. E, por isso, todos os tesouros feitos desse material precário são tesouros de precária realidade, e podem desvanecer-se a qualquer instante.
Por isso, o homem realmente sábio, o vidente da suprema e única realidade, não perde o seu tempo em acumular tesouros nessa zona incerta e com esse material duvidoso, porque sabe que esses tesouros não estão sob o seu controle, mas sujeitos aos azares das adiversidades da natureza e das perversidades dos homens; sabe que a ferrugem e a traça podem destruir esses tesouros, e os ladrões os podem roubar. Tesouro que não dependa integralmente dele, e que possa ser destruído e roubado por fatores que independem do homem, não é um tesouro solidamente possuído.
Acumular tesouros dessa natureza afigura-se ao homem sábio como colecionar zeros, zeros pequenos e zeros grandes, para formar um capital.
Só quando o homem descobre dentro de si mesmo a zona da realidade, isto é, a divindade de seu Eu, sua alma, é que ele começa a interessar-se por produzir tesouros de qualidade, em vez de quantidade, porque a qualidade é invulnerável e está para além de quaisquer azares da parte do mundo externo e objetivo. Nenhuma adversidade da natureza, nenhuma perversidade dos homens lhe pode roubar esse tesouro. O "reino dos céus", onde ele acumula esses tesouros, está dentro dele; é a sua íntima essência divina.