Altas horas da noite.
Alguém bate à porta da casa onde Jesus está hospedado, em Jerusalém.
Entra um venerando rabino da sinagoga de Israel, embuçado no seu manto, com medo de ser reconhecido por seus colegas, que não simpatizavam com Jesus.
E inicia-se, entre o profeta de Nazaré e o rabi de Israel, aquele misterioso diálogo noturno sobre o renascimento espiritual.
Nicodemos, o visitante, não viera propriamente para ouvir tal coisa. O seu objetivo era outro. Estava impressionado com os prodígios que Jesus realizava no meio do povo. Por isto, abre a sua consulta com as palavras: "Mestre, nós sabemos que vieste da parte de Deus para ensinar, porque ninguém pode fazer os prodígios que tu fazes a não ser que Deus esteja com ele". "Nós sabemos" – nós, quem? Ele mesmo, mais outros rabinos? "Mestre" – esta primeira palavra de Nicodemos revela que viera como discípulo, embora também ele fosse "mestre em Israel", e Jesus, oficialmente, não era rabi, como consulente, que, humildemente se senta como discípulo aos pés de um verdadeiro mestre, que, talvez tivesse apenas metade da idade do encanecido discípulo.
Mas, não obstante essa humildade, Nicodemos se move ainda no plano horizontal do "fazer algo"; parece nada saber ainda da ignota vertical do "ser alguém", essa nova dimensão em que se moverá todo esse colóquio noturno.
Prodígios, milagres, fenômenos – é isto que impressiona Nicodemos, como impressiona sempre os homens-ego, mesmo os de boa vontade. Fazer algo, dizer algo, ter algo. . .
Jesus, porém, não reage com uma só palavra a essa mania fenomenológica do visitante. Silenciosamente, passa a conversa para outra dimensão. E inicia a sua resposta com um duplo "amen", como todas as vezes que procura dar grande ênfase a suas palavras: "Em verdade, em verdade (amen, amen) te digo: quem não nascer de novo pelo espírito não pode ver o reino de Deus. " Nascer de novo? Nicodemos acha tão impossivel esse processo de renascimento que reage com uma pergunta meio pilhérica: "Como pode um homem nascer de novo, quando é velho? Será que pode outra vez entrar no ventre de sua mãe e tornar a nascer?" Evidentemente, Nicodemos só pensa em renascimento material, numa reencarnação física. O Nazareno não nega a possibilidade desse fato, mas não está interessado em fatos, e sim em valores. Pensa como, séculos mais tarde, escreveu Einstein: "Do mundo dos fatos não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores; porque estes vêm de outra região. " Que adiantaria se o homem reencarnasse fisicamente, 10, 20, 100 vezes? Seria apenas um acontecimento objetivo, produzido por outras pessoas, homem e mulher, mas não seria uma creação de valores subjetivos, única condição válida para ver o reino de Deus. Fatos físicos não interessam a Jesus, somente valores metafísicos. O reino de Deus não é algo que aconteça ao homem, por obra e mercê de terceiros – é algo que ele mesmo produz de dentro de si, pelo poder do livre-arbítrio, pela íntima substância do seu ser, e não é algo que lhe aconteça pelas circunstâncias da natureza ou dos outros homens. O reino de Deus é uma autêntica creação do Eu espiritual, e não uma fortuita produção de egos alheios.
O rabino mergulha num longo silêncio, afagando pensativamente a sua barba branca, por fim murmura: "Como pode ser isto?". . .
Responde-lhe o Nazareno: "Como? Tu és mestre em Israel e ignoras isto?" Que é que um mestre espiritual deve ensinar senão o caminho para esse nascimento espiritual? E como pode ele mostrar o caminho aos outros, se ele mesmo o ignora? E Jesus repete, com grande ênfase o que dissera, acrescentando mais uma palavrinha: "Em verdade, em verdade te digo: Quem não renascer pela água e pelo espírito, não pode entrar no reino de Deus. " É tão misterioso esse binômio "água e espírito" que desafiou a argúcia de quase dois milênios. E os teólogos de quase todas as igrejas cristãs concordaram na interpretação de que Jesus se referia ao batismo feito com água e com uma fórmula sacramental. O espiritismo entende pela palavra "água" o líquido que envolve o corpo do nascituro, relacionando as palavras do mestre com um renascimento físico.
Em tempos antigos, na Grécia, era a água considerada como a matéria-prima de todos os elementos físicos, que constituem o mundo e o nosso corpo. E, como o homem integral é bipolar, alma e corpo, o renascimento pela água e pelo espírito significa o renascimento do homem total, a transformação do seu Eu espiritual e do seu ego material, transformação essa operada não por agentes alheios ao seu ser individual, mas por sua própria individualidade, pela onipotência do seu livre-arbítrio, pelo despertamento do seu Cristo interno.
Esse despertamento não depende da matéria, mas sim do espírito; quer o homem tenha corpo material quer não, o seu livre-arbítrio pode realizar esse renascimento "pela água e pelo espírito", aqui na terra ou em qualquer outra morada da casa do Pai celeste, em qualquer outra zona do Universo.
Enquanto Jesus e Nicodemos estavam submersos num profundo silêncio, sentados na varanda da casa, passou uma ligeira brisa pelos leques duma palmeira defronte à varanda, e ouviu-se ligeiro sussurro. E o Nazareno, contemplando as flabelas da palmeira, disse, vagarosamente: "O sopro sopra onde quer; bem lhe ouves a voz, mas não sabes donde vem nem para onde vai. Assim, também acontece com todo o homem que nasceu pelo espírito. " Tanto no original grego como na tradução latina, há um jogo de palavras que poucas traduções reproduzem. Sopro e espírito são sinônimos, e têm o mesmo radical. Em grego pneuma pnei, em latim spiritus spirat. Procuramos imitar esse jogo em português, traduzindo sopro sopra. Na parte do símbolo Jesus se refere ao sopro ou vento material que agita as folhas da palmeira e produz ligeiro ruído; vê-se o movimento, e ouve-se o ruído, mas não se percebe a causa invisível desses efeitos visíveis. Na segunda parte da alegoria, Jesus se refere ao simbolizado, fazendo ver que a causa do nascimento espiritual do homem é tão misteriosa como a do movimento e do ruído da palmeira;
ninguém sabe da origem desse renascimento, nem sabe o fim do mesmo;
ninguém sabe porque um homem renasce pelo espírito, e ninguém sabe de que é capaz esse homem; para ele são possíveis as coisas mais impossíveis – ele é capaz até de fazer bem aos que lhe fazem mal, e amar aqueles que o odeiam. Ninguém sabe donde vem esse sopro espiritual e para onde vai esse sopro. . . Visível é a ética do homem que sentiu o sopro da mística – mas que é esse sopro místico? Donde vem? Para onde vai?. . .
Quando Nicodemos se retirou era meia-noite passada.
Mas nos horizontes da sua alma clareava um novo dia; ainda agora, tênue luz de alvorada; mais tarde, o zênite do sol meridiano. Três anos mais tarde reencontramos esse tímido rabino transformado em corajoso discípulo do Mestre divino. Esse mesmo Nicodemos que, nesta noite, tinha medo de ser discípulo do Nazareno, ainda alvo de admiração, mais tarde, no Calvário, tem a coragem de se professar publicamente amigo do crucificado, de um homem execrado como blasfemo pela autoridade religiosa de Israel, e sentenciado como um criminoso pela autoridade civil do Império Romano.
Realmente, o sopro sopra onde quer. . . Não se sabe donde vem nem para onde vai. . .
Houve um renascimento espiritual, sem que interviesse nenhum renascimento material. Esse renascimento começou nas trevas da noite, em Jerusalém, e culminou em plena luz meridiana, nas alturas do Gólgota, onde reaparece Nicodemos e se oferece para sepultar condignamente o corpo do crucificado.
O sopro sopra onde quer. . .