Desciam Jesus, Pedro, Tiago e João das culminâncias do Tabor, onde comungaram com as excelências de Deus, ao encontro das baixadas espirituais das criaturas.
Há pouco, resplandecente, o Mestre estivera envolto por uma esfera de poderosa luz e dialogara com os venerandos antepassados do povo: Moisés e Elias.
As emoções ainda não se aquietaram na horizontalidade do habitual, e a curva descendente das dores tomava forma chocante no terra a terra das contingências humanas.
No alto, a visão da vida verdadeira; ao sopé, as angústias junto aos sofrimentos.
— "Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai dele e não entres mais nele" — exortou Jesus com firmeza na voz, na qual a piedade se misturava à energia.
Não houve debate. Tudo simples. A cena breve culminou no declínio do jovem que ficara prostrado como morto, banhado por álgido suor, desfigurado.
O Mestre, comovido, curvou-se, tocou a fronte do ex-obsidiado e o levantou com gesto cativante.
Era quase um menino. . .
Sofria desde a mais tenra idade sob o jugo violento do impiedoso algoz desencarnado. As raízes do ódio nefando se perdiam nas sombras do passado, quando foram comensais da mesa farta da loucura e se enredaram em odienta cena de sangue. . . . Agora a lei soberana, que jungia o criminoso não punido à justiça desrespeitada, manifestava-se sobranceira.
O parasito espiritual se imanara ao sofredor e reproduzia nele os esgares epilépticos em que se consumia, vítima de si mesmo, escravo do ódio. Na volúpia da vingança, atirava-o de encontro ao solo, ateava-lhe fogo às vestes, tentava afogá-lo, subjugava-o.
As esperanças da família se apagavam na lâmpada sem lume das tentativas de cura, impossivel até aquele momento.
Seu pai ouvira falar do Rabi e o trouxera, na expectativa duvidosa de ver o filho recuperado, perdido como se encontrava no caminho do aniquilamento inexorável.
—Transcorreram oito dias [25] após a "confissão de Pedro", o Mestre tomou consigo Pedro, Tiago e João, e levou-os sozinhos, e à parte, para um alto monte.
Agosto, em plenitude, derrama sua taça de luz e calor sobre a terra. As papoulas e as margaridas jazem crestadas em hastes vencidas pela canícula. O céu muito azul e transparente concede visão infinita em todas as direções.
A medida que o Tabor [26] vai sendo vencido, os painéis se desenrolam: embaixo os campos de trigo ceifado, a mancha pardacento-prateada do Jordão, na configuração de imenso alaúde entre sebes; para as bandas do oriente erguem-se altaneiros os montes Galaad e ao poente cintilam as águas do Mediterrâneo, como imenso espelho refletido através da garganta natural entre o Monte Carmelo e os contrafortes altanados do Líbano; ao norte o Genesaré salpicado de velas coloridas e orlado por Tiberíades, Magdala, Cafarnaum, Betsaida, as cidades tão encantadoramente derramadas dos pequenos cerros na direção das praias, vestidas de palmeiras verdejantes. . .
Do acúmen a visão não se detém. De forma arredondada, a plataforma batida pelos ventos, às vezes coroada de zimbros, é a culminância dos 562 metros de altitude rochosa, sem vegetação, com destaque na imensa e formosa Galileia.
A noite ainda demora algumas horas para estender o seu manto imenso sob o céu. Os meses de agosto são de longos dias. O calor asfixia e requeima a rala vegetação.
A jornada é longa, na conquista do monte: mais de quatro horas de marcha lenta e cansativa, embora a beleza da paisagem deslumbrante em derredor.
Atingido o acume, o Mestre se põe em oração. Os discípulos, suarentos e cansados, adormecem à sombra dos arbustos escassos.
Um grande silêncio envolve tudo e todos. O mormaço quase asfixia. . .
A noite vence a natureza e o Mestre ora.
A madrugada alcança o Rabi em oração. Os companheiros dormem. Vozes percutem na monotonia. Os discípulos despertam, assustados e são dominados pela visão sublime da transfiguração do Mestre, com as vestes incendidas, dialogando com Moisés e Elias. As palavras vibram no ar; mas não são palavras como as que se ouvem comumente. . .
— Mestre, bom é que estejamos aqui, e façamos três cabanas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.
O Mestre fita-o compadecido.
— Este é o meu filho amado; a Ele ouvi!
Os discípulos ainda não refeitos são tomados de pavor.
A grandiosa revelação fora feita.
Jesus estivera em toda a sua glória e eles foram testemunhas silenciosas e emocionadas do acontecimento incomparável.
Os Céus foram cindidos e os discípulos tiveram o "conhecimento do Divino".
Pedro se reportará mais tarde a essa metamorfose do Mestre, testemunho insofismável em que fundamenta sua fé.
O Rabi, no entanto, exige-lhes silêncio.
A verdade tem que ser dosada para o entendimento da argila humana.
Mais tarde João, ao escrever os "ditos do Senhor", iniciará a sua narrativa evocando, certamente, a cena inesquecível: "Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; a luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam".
— Desçamos! —, alvitra o Mestre.
— Não poderíamos aqui demorar-nos? —, indaga Simão.
— E necessário descer — retruca Jesus. — Busquemos os que não dispõem de forças para subir. Os homens necessitam de nós. A nossa é a glória deles. Para eles sejam nossas alegrias e para nós as suas dores. Depois da comunhão com os Céus, a convivência entre os que se demoram na Terra. O paraíso seria para nós estranho presídio sem aqueles que, no ergástulo das aflições, anseiam pelo país da liberdade. Desçamos. Os homens, para quem eu venho, nos esperam.
— Rabi! —, indagam como receosos — dizem os escribas que é mister que venha primeiro Elias. . .
— Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo quanto quiseram. Assim farão, também, padecer o Filho do Homem. . . "Então entenderam os discípulos que lhes falara de João Batista".
A nova revelação de ser Elias, João Batista renascido, surpreende os companheiros que começam a compreender os inescrutáveis desígnios do Pai.
Os Espíritos estão estuantes de felicidade. Há festa em seus corações.
Jesus e os discípulos continuam descendo.
O dia esplende. Os acontecimentos são sóis em suas almas.
A plataforma do Tabor fica para trás.
A planície imensa se estende embaixo.
Lá estão as criaturas sofredoras e ansiosas, os companheiros aguardando.
Amedrontados, os discípulos se revezam.
— Afasta-te, Satanás! —, exclama Judas, irado, enquanto o obsesso ulula.
— Filho das trevas, semente de Belzebu — brada Tadeu, com a voz rouca e os olhos injetados — por quem és, abandona tua vítima!
— Decaído, imundo — vocifera, pálido e suarento, Natanael — eu te exorto a que retornes às geenas! . . .
Curiosos se acercam dos gritadores, enquanto o endemoninhado, como se multiplicasse as forças que o vampirismo espiritual consome, mais se debate no solo e corcoveia, exasperado, a ameaçar o débil corpo em convulsão, semivencido.
É o próprio Dibbuk - soluça, desanimado, Filipe.
— Nada conseguiremos! —, arremata o filho de Cléofas.
— Onde andará o Mestre — indaga, perturbado, Simão, o zelot e — que não vem socorrer-nos? Não saberá Ele de nossa aflição? . . .
Entreolham-se, estremecem, enquanto o obsidiado espumeja e se debate.
Falam todos de uma vez. Gritam inutilmente.
Vendo o Mestre e os companheiros, que chegam à charneca das misérias humanas, correm, aflitos e O saúdam.
— Que é que discutis com eles? —, interroga, sereno, o Senhor.
— Mestre, trouxe-te o meu filho, que tem um Espírito mudo. E este, onde quer que o apanhe, despedaça-o, e de espuma, e range os dentes, e vai-se secando; eu disse aos teus discípulos que o expulsassem, e não puderam!
— Se podes — apela o pai — salva o meu filho.
— Se tu podes crer, tudo é possivel ao que crê.
— Eu creio, Senhor! Ajuda a minha incredulidade.
O Rabi se comove. O semblante sereno expressa toda a angústia do seu Espírito.
Sem qualquer mágoa, fita os companheiros medrosos e os admoesta com veemência e compaixão. Compreende as fraquezas dos convidados a esparzir a semente da Boa-nova.
— Fizemos tudo quanto nos ensinaste e nada conseguimos. . .
— Até quando vos sofrerei e estarei convosco?
A indagação fica no ar, sem resposta.
A arrogância da fraqueza é mais petulante do que a vaidade da força.
O sinal do fracasso no orgulho é como chaga de fogo a requeimar.
— Espírito mudo e surdo. . .
Pálido e fraco, o moço sorriu. Havia gratidão sem palavras.
Osculou a mão do Rabi e, conduzido pelo pai em êxtase de alegria, seguiram ambos no rumo do lar.
— Por que não puderam eles expulsar o espírito imundo?
— Esta casta não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração e jejum — elucidou o Amigo.
— Antes de tudo é necessário compreendamos que os espíritos imundos viveram antes, homens que foram, homens que continuam sendo. Enganados, como se deixaram conduzir no corpo, prosseguem enlouquecidos, fora dele. A morte não os transformou. Viajores do tempo, são o que fizeram. Ligados mentalmente às reminiscências das ações, demoram-se, sofrendo-as, imanados aos que amaram, vinculados àqueles que os fizeram sofrer. . .
— Por essa razão a Boa-nova é um hino de amor e perdão. Amor indistinto e perdão indiscriminado.
Diante deles, nossos irmãos na sombra da ignorância, nenhuma força possui força senão a força do amor. Não apenas expulsá-los daquele convívio a que se agregam parasitariamente, mas também socorrê-los, enlaçando-os com amor. . .
— São nossos irmãos da retaguarda, perdidos na ilusão das carnes a que teimosamente pretendem continuar ligados. Não se prepararam para a verdade. E em razão disso que a Mensagem de Vida não se reveste das indumentárias fantasiosas tão do agrado geral. É semente de luz para fecundação no solo do espírito.
Diante, pois, deles — possessos e possessores — só a oração do amor infatigável e o jejum das paixões conseguem mitigar a sede em que se entredevoram, entregando-os aos trabalhadores da Obra de Nosso Pai, que, em toda parte, estão cooperando com o Amor, incessantemente.
Se amardes ao invés de detestardes, se desejardes socorrer e não apenas os expulsardes, tudo fareis, pois que tudo quanto eu faço podeis fazê-lo, e muito mais, se o quiserdes. . .
No leve ar da noite bailavam suaves brisas espraiando para o futuro a palavra do Rabi, como antevisão gloriosa para os dias porvindouros da Humanidade.