Acontecera repentinamente.
Vira-O ao longe descendo a montanha e a multidão com Ele.
Parecia nimbado de estranha luz.
Pairava à sua volta um halo de serena tranquilidade. Algo se passara nele.
Inusitada coragem impelira-o à frente.
Até ali fora um animal desvairado, caçado e foragido. Proibido de entrar nas cidades, vagava pelos campos, quase sempre misturado à farândola dos desgraçados do seu jaez.
Quando afloraram as primeiras manchas roxas na pele tostada e as pústulas nauseabundas e doridas começaram a apodrecer o corpo, também principiara a morrer. . .
Todos o escorraçaram.
Os vínculos da família se arrebentaram e os sonhos da juventude converteram-se em trevas hediondas.
Acossado, fora expulso.
Nome, procedência, ficaram para trás.
Agora, era somente um imundo!
As dores acerbas lhe mataram a fé como trucidaram todas as esperanças.
Apátrida no berço de nascimento.
Foragido sem crime.
Confundido aos animais, cobria-se com o manto das noites estreladas e os trapos infectos, e ante o açoite dos ventos e a queda das chuvas, disputava as furnas com as feras e os detritos com os cães. . .
Perdera a faculdade de chorar.
Insensibilizara-se.
Sentia apenas sua própria dor, profunda e cruel, vergastando-o sem cessar.
— Senhor, se Tu quiseres, bem podes limpar-me! Eu creio que és Aquele que todos esperamos. Dize: quero! . . .
As lágrimas aljofraram pela vez primeira nos olhos, depois de muitos anos. A voz se estrangulou na garganta intumescida.
— Quero: sê limpo!
Um estertor nervoso sacudira-lhe todas as fibras. Um imenso descontrole tomou-lhe o organismo alquebrado.
Desejou gritar; não pôde fazê-lo.
Experimentava a sensação de uma transformação geral e violenta.
Estupefato, sem o domínio da razão, àquela hora, acompanhava, atônito, a renovação dos tecidos febris e apodrecidos que se operava celeremente.
O corpo era, novamente, um diamante na ganga dos trapos miseráveis.
— Que queres . . . que eu . . . faça? . . .
Oh! Infinita alegria!
Todo o seu ser fremia de júbilos.
— Não o digas a ninguém. Vai, mostra-te ao sacerdote, e oferece, pela tua purificação o que Moisés determinou, para que lhes sirva de testemunho.
O Estranho Rabi tornara-se diáfano. Uma beleza incomparável d’Ele se irradiava. Parecia sorrir.
A turba acercou-se, muda de espanto, e constatou-lhe a cura.
Estuante, emoções em desalinho, saiu a correr.
Mente em torvelinho, coração descompassado, voltava à cidade. . .
Antes, a pedradas fora expulso. Agora, cantando felicidade, retornava.
Pelo caminho, no entanto, sem poder guardar silêncio, contava o prodígio de que fora objeto.
A noite caíra sem preâmbulos.
A luz das estrelas longínquas o Mestre reuniu os discípulos, em agradável aconchego.
— Seria necessário que o leproso pagasse o tributo?
— A lei, os respeitos de justiça, respondeu Jesus.
— Legalmente, ele estava morto. Trazido à vida, por mercê de Nosso Pai, deverá ser reconhecido por aqueles que representam a tradição. O tributo, não o entendamos como pagamento ou louvor, puro e simples, mas como expressão de testemunho de reingresso nos estatutos dos homens.
— Será justa a recomendação de silêncio? Não se faz necessário que todos identifiquem os sinais da Mensagem de Vida, para que se disponham ao Reino de Deus que está próximo?
— Não transcorreu muito tempo, eu vos falei que sois o sal da Terra. . . . Para que serve o sal, se perde o sabor? Diluindo-se no repasto, o sal se faz presente sem alarde e todos o podem identificar. . .
— O Reino dos Céus não se fará notado pelas atrações externas.
A Terra sempre foi rica de homens e mulheres prodigiosos, profetas e rabis, curadores e adivinhos. Acima deles todos, no entanto, o Filho do Homem há velado.
— O leproso de hoje contaminou-se espiritualmente em pretérito próximo. Ontem, soberbo e egoísta, banhou-se nas lágrimas dos oprimidos, abusando do corpo como os ventos bravios das tamareiras solitárias. Retornou aos caminhos de tormento em si mesmo atormentado, para ressarcir penosamente. O legado que hoje recebeu é de responsabilidade antes que de merecimento. O Pai misericordioso não deseja a punição do filho rebelde ou ingrato, mas a sua renovação. . .
— Nem todos, porém, podem isto compreender.
Neste momento, apalpando as carnes refeitas, exibe o corpo aos curiosos e fala sobre Aquele a Quem desconhece com alegria e leviandade. A cura mais importante não a experimentou: é aquela que não se restringe à forma, e sim, ao Espírito. Lavada a morfeia, ele continua leproso. Acautelai-vos do contágio das misérias que os olhos não veem, mas que entenebrecem a razão e perturbam o coração. . .
— Rabi, se o doente não se pôde beneficiar com a cura, ter-lhe-ia sido esta de utilidade?
— Simão, — respondeu, bondoso, Jesus — o Reino dos Céus é uma mensagem de amor para todos: desalentados e sofredores, atormentados e enfermos, todos receberão o convite de acordo com as suas necessidades. A nós compete espalhar as dádivas de luz e bênçãos, sem a preocupação imediata de como serão recebidas ou utilizadas. Cada coração é responsável pelas sementes que recolhe.
Fruindo a dádiva de luz, pode escolher onde entesourar as esperanças. O Sol espraia vida em todo lugar, indistintamente e, embora o pântano continue pútrido, o astro-rei insiste sobre o seu dorso, semeando a esperança onde a peste e a morte se agasalham. . .
Levantou-se e, afastando-se do grupo, em silêncio, mergulhou na noite e desapareceu.
A montanha continuava envolta em sombras, ao fundo.
Enquanto as gemas dos minutos formavam o colar dos séculos, os acontecimentos daquele dia passavam para os dias do amanhã sem-fim. . .