Primícias do Reino

CAPÍTULO 14

A MULHER HEMORROÍSSA



O coração arrítmico constringia-lhe o peito, e o ar que aspirava, pesado, parecia carregado de fumo. [30] Angústia incoercível dominava-lhe o Espírito desde as vésperas.

A noite fora difícil de ser vencida. Expectativa incomparável assaltara-a desde que soubera dos lamentáveis acontecimentos no Horto. . .

À traição de Judas sucederam-se a deserção dos amigos, a negação de Pedro e Ele, a sós, fora instrumento do escárnio e da arrogância de todos, levado à extrema humilhação por aqueles que, desde há muito, ambicionavam pôr-Lhe as mãos.

As notícias, em tom de cantilena cansativa, corriam zombeteiras por todos os lábios, até mesmo repetidas por bocas antes mortas e que podiam agora falar graças a Ele.

O dia começara com um Sol em brasa, queimando tudo. O vento quente, àquela hora da tarde, crestava.

A sinistra caravana que O empurrava na direção do Gólgota ainda não atravessara a porta de saída da cidade, aumentada cada vez mais por novos espectadores impenitentes que O saudaram poucos dias antes, quando Ele chegara a Jerusalém.

Ela os ouve gritar: Adiante! O chicote!

Sente o dilacerar do próprio coração.

A ladeira é de difícil acesso, e os motejos se sucedem, enquanto o chicote vibrando rasga-lhe as carnes ensanguentadas. . .

Ajudado pelo Cireneu, banhado de suor e sangue, Ele avança vagarosamente, com dificuldade.

Ela O amava, sim! Amava-O com todas as forças do seu coração, da sua vida. Vivia porque d’Ele recebera a vida.

Olhou em volta, lacrimejante. Ali estavam, entre outros, Maria, Sua mãe, Madalena com as mãos crispadas a chorar desesperadamente, Joana de Cusa, Maria de Cléofas, Salomé, Marta, João, todos dominados por dor inominável. Talvez, mais longe, estivessem outros: Nicodemos, Zaqueu, José de Arimateia, Lázaro, os cegos e paralíticos que recuperaram a saúde, estupefatos, vencidos. . .

Os gritos e imprecações redobram. . .

Abandonara sua cidade de nascimento, pela primeira vez, Cesareia de Felipe, na Decápole, desiludida, marcada pelo estigma humilhante.

Todos a consideravam impura e, consequentemente, malsinada.

Recorrera a todos os métodos curadouros. Consultara os sacerdotes, os médicos locais e os alienígenas, inutilmente. A enfermidade impiedosa resistia a todos os remédios.

Deixara-se exorcizar, usara os preceitos da Lei, submetera-se a experiências que a maltrataram interminavelmente, no entanto, tudo fora inútil. Seu mal era um castigo, um sinal de desventura imposto por Deus.

Sem mais esperanças, após ter gasto tudo quanto possuía, resolvera buscar a próspera Cafarnaum na vã tentativa de conseguir um remédio não usado ou conhecer um médico ainda não consultado.

O fluxo sanguíneo, porém, não a deixava.

Via-se constrangida a esconder-se, ocultando a marca da sua desdita.

Tinha, agora, pela primeira vez, a oportunidade de falar com Ele.

Seu nome, Seus prodígios, conhecia-os através dos que, de Suas mãos, haviam recebido a saúde como doação máxima.

E Ele ali estava, a alguns passos.

Demandava a casa de Jairo, o chefe da Sinagoga, cuja filha se encontrava nas malhas da agonia e toda a cidade lamentava aquela perda irreparável.

Amado pela sua bondade e compreensão dos problemas humanos, Jairo buscara o Rabi desde cedo, procurando-O em todo lugar. Recorrera à casa de Simão, procurara na residência dos filhos de Zebedeu e, por fim, fora busca-lO na praia, após a viagem que fizera ao outro lado do mar. Com Jairo uma grande e curiosa multidão O seguiu.

Também ela estava entre os que O seguiam, a dois passos, tomada por ansiedade incomparável. Faltava-lhe coragem para falar-Lhe, tantos eram os ouvidos atentos. Conheciam-na, e as marcas da sua miséria orgânica denunciavam-lhe o mal que a fizera pusilânime em excesso. Vencida pela anemia, descarnada, até mesmo diante dos médicos sentia o constrangimento que lhe impunha a doença.

Àquela hora, no entanto, se a perdesse, perderia o precioso minuto, o mais importante da vida.

Em turbilhão mental aproximou-se emocionada, a medo.

Cria n’Ele. Sentia-O invadir-lhe o íntimo, como se todo Ele se desprendesse uma força ignota, miraculosa. Nos Seus olhos, no Seu porte, em todo Ele havia uma tão grande serenidade e grandeza! . . .

A rua estreita, a multidão se adensando cada vez mais, o turbilhão íntimo, faziam-na gritar sem voz, pedir-Lhe socorro sem palavras.

Vencendo a agonia que a assaltava, com a visão turbada, num movimento irresistível, puxou-Lhe a fímbria dos vestidos, e. . . . . Oh!

Ventura! O sangue estancara; as hemorroidas deixaram de doer; toda ela experimentou uma estranha, inusitada sensação.

Ainda não recuperara o equilíbrio, ouviu-O indagar;

— Quem tocou nos meus vestidos?

E disseram-Lhe os Seus discípulos: — Vês que a multidão te aperta, e dizes: — Quem me tocou?

Ele olhou em derredor como a procurá-la.


Nesse momento, atirou-se-Lhe aos pés e bradou:

— Fui eu, Senhor, que era desgraçada! Sabia que, em tocando Tuas vestes, poderia recuperar minha saúde.

— Filha — falara-Lhe com ternura e bondade — a tua fé te salvou;

vai em paz, e sê curada desse teu mal.

As inefáveis emoções daquele instante! Ficaria ali, imóvel, vencida pela gratidão, em lágrimas de júbilo, adorando-O, se o pudesse.

Despertaram-na para a realidade os que lhe sindicavam o acontecido.

Depois, transcorridos alguns dias, volveu aos seus e aos sítios donde viera do outro lado do mar.

Todos queriam vê-la, ouvir-lhe a narrativa, constatar.

Com a saúde viera-lhe igualmente uma ânsia insopitável de vida nova. Recuperara a paz do corpo, mas perdera a paz do espírito.

Depois de conhecê-lO, encontrara a vida. Estar longe d’Ele significava perder a vida. Sabia-o, pois que algo lhe dizia ser Ele o Enviado. Necessitava abandonar tudo e segui-lO. . .

Depois de relutar algum tempo, despediu-se dos amigos e parentes — que antes a detestavam — e foi ao Seu encontro.

Desde então ouvia Suas pregações na orla do mar, nas cidadezinhas próximas, perdida na multidão.

Lentamente enchia o Espírito de paz, como Sol de luz que inunda a terra, quando chega o carro da madrugada.

Seguindo-O por toda parte, não ignorava os que O detestavam e, no coração, temia por Ele. . .


* * *

As maldições despertaram-na.

A realidade surgia dolorosa no clamor ostensivo do ódio e da intemperança generalizados.

Aquela subida cruel pela colina de Acra alquebrava-O sob o peso da cruz.


Subitamente Ele escorregou e caiu. Não se conteve: tomou de uma toalha que trazia, alvinitente e lisa, e correu-Lhe ao encontro. [31]

Não tiveram tempo de fazê-la retroceder.

Aquele semblante, ensanguentado e dorido, amargurava-a.

Envolveu a face no linho branco e enxugou-a carinhosamente.

Houve uma exclamação de estupor, quando retirou a toalha: nela se estampava o rosto d’Ele, tingido pelo sangue.


Gritou, então:

— Vede! Vós que passais, atendei-me!

O pranto lhe embarga a voz.

— O chicote! —, bradam os judeus — O chicote! Laceremo-LO!

Não tenhamos piedade!


Ele, no entanto, olha-a, demoradamente, naquele átimo de minuto. Os lábios entreabertos nada dizem. Porém, ela ouve no imo Sua voz, como antes:

— Vai em paz! Lembrar-me-ei de ti. . .

A caravana atravessa a Porta Judiciária, desce a encosta e começa a subida da colina da Caveira.

Ele tomba, novamente.

O clamor da angústia das mulheres se levanta e grita alto.


Macerado e trêmulo, Ele magnetiza a multidão com o olhar dorido, e diz:
— Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas, e por vossos filhos. Dias virão amargos e terríveis, em que clamareis: Bem-aventuradas as estéreis, e os ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram! Clamareis aos montes: Caí sobre nós, cobri-nos! Porque, se ao madeiro verde fazem isto, que se fará ao seco? [32]

Chegando ao topo da colina, começaram a despi-lo. . .

Logo depois estava morto.


Aos pés da cruz, rememorando-Lhe os feitos, recordou, então, as Suas palavras:
— E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim. [33]

Ele estava erguido.

A Humanidade segui-lO-ia depois.

Desceu o monte e saiu a servi-lO, acompanhando os que O amavam.