Primícias do Reino

CAPÍTULO 16

A FAMÍLIA DE BETÂNIA



Cercada por imensos campos de cevada, pequenos bosques de olivedos e figueiras que sombreiam a estrada de Jerico serpenteante junto às muralhas, Betânia ficava a uma hora de Jerusalém. [36]

Da Porta Dourada, a via de Jerico atingia o Cédron e contornava o Monte das Oliveiras, antes de ganhar a direção de Bethfagé.

O cenário de Betânia diferia frontalmente da opulência barulhenta da cidade dos profetas.

Embora "as trovoadas de Marheswhan [37] tão semelhantes aos toques de trombetas" que desabam repentinamente, o ar translúcido e leve permitia, como ainda hoje, a visão a longas distâncias. Ao sul, na direção das terras de Moab, ou ao nordeste por cima dos montes Gerasianos, o céu tranquilo e o ar transparente sempre oferecem visibilidade incomparável.

A aldeia singela parecia contrastar no seu verdor com a áspera Judeia a que pertencia.

Tudo ali era bucolismo: tapetes de flores miúdas caíam sobre a relva verdejante, e a coroa do Monte das Oliveiras, ao longe, tingia com o verde-cinza das árvores a paisagem deslumbrante.

Os declives cheios de folhagens exibiam casas brancas de alpendres floridos.

Próxima à capital ficava, no entanto, muito longe em comparação ao fausto e à bulha da grande cidade.


* * *

O remanso que era Betânia fazia-se agradável refúgio após as afadigantes jornadas.

Diversas vezes Jesus procurara aqueles sítios para retemperar o coração e alentar outros corações.

Naquele outubro de 29, quando começavam as primeiras trovoadas e os ânimos em Jerusalém exaltavam-se, o Mestre procurou a encantadora Betânia.

A rede de intrigas apertava as malhas.

Sinedritas espreitavam e espalhavam espiões pela senda do Rabi.

Desejavam surpreendê-lO em blasfêmia.

Jesus, porém, imperturbável, continuava a sementeira da verdade. Ele sabia que os homens são "meninos espirituais", que o ódio é a consequência do amor selvagem atemorizado.

Se de um lado o despeito e a inveja trançavam as cordas odientas da perseguição implacável, o cendal de amores abria seus tecidos e envolvia muitos espíritos valorosos e dedicados.

Em Betânia, Lázaro e suas irmãs Marta e Maria são o atestado eloquente desse amor.

Sem medo dos fariseus ou das murmurações dos vizinhos tímidos e receosos, albergavam Jesus no seu lar cercado de rosas perfumadas e construído de paredes cobertas de plantas trepadeiras. Em derredor os cedros e pessegueiros em flor constituíam postal formoso, do qual se destacava a casinha cúbica de largo alpendre com colunas abraçadas por hera verde-escura.

Amavam Jesus e diziam-no abertamente. Fizeram-nO membro da família; e, recebê-lO em casa, representava o engastar de uma estrela nas paredes domésticas.

Muitos desses amigos amorosos entrariam entoando cânticos, em breve, em Jerusalém, seguiriam o cortejo da Cruz, subiriam o Gólgota, se deslumbrariam na Ressurreição; seguindo, por fim, à Galileia, para as últimas instruções antes de Ele ascender. . . E prosseguiriam heroicamente, avançando por sobre as pegadas deixadas, dilatando as esperanças do Reino. . .

Também a esses amigos aos quais muito amava, Ele ofereceu os mais expressivos tesouros de luz e vida.

A Lázaro, que o destacou através da amizade pura, arrancará das sombras da catalepsia, meses depois, quando chamado de longe, pelas irmãs chorosas, ao encontrá-lo no sepulcro entre os tecidos fúnebres, ressumando miasmas. . .

Coroados de ouro diáfano e violeta, os montes e as colinas se aquietam no abraço do ocaso. Do vale fresco sobem suaves aromas.

As vozes da Natureza entoam uma Pastoral.

O ar diáfano corre em lufadas leves.

As primeiras lâmpadas bruxuleiam com luz vermelho-amarelada nas casas.

Terminada a Festa das Tendas, em Jerusalém, e suportadas varonilmente as lutas, Jesus e os Seus necessitavam de repouso.

O Mestre não ignorava as dificuldades e os Doze se surpreendiam de quando em quando, amedrontados.

Confraternizando com o poente de ouro, a lua em prata bordava o firmamento.

Avisado por um discípulo que seguira à frente, Lázaro aguarda jovialmente o Rabi e os Seus, à porta da casinha risonha e franca.

— Paz se faça nesta casa — disse o Senhor.

— Paz convosco, Mestre — respondeu Lázaro em efusivo abraço, enquanto osculava o rosto do Hóspede querido.

As duas irmãs se apressavam em receber os visitantes, servindo-lhes água para as abluções e o lar emoldurava-se cheio da natural algaravia que se estabeleceu.

Marta, apressada, correu aos misteres domésticos: preparava o repasto, arrumava os leitos, dispunha a mesa. . . Ofegante, corre e se apresta, procura Maria, chama-a.

Enquanto lá fora o murmúrio de vozes apaga-se e a noite avança calçada de silêncio, o Rabi narra a Lázaro os últimos acontecimentos, e explana sobre o futuro.

Maria senta-se-lhe aos pés e fita-o docemente, acompanhando a narrativa com embevecimento.

— Maria! —, grita a outra.


E encontrando-a, reclama:

— Mestre! Manda-a ajudar-me. Enquanto me estafo, (sorriu afável) ela Te importuna, sem preparar a casa para o repasto.

— Marta, Marta! —, respondeu Jesus, sorrindo. — Estás afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; e Maria escolheu a melhor parte, a qual não lhe será tirada.


Enquanto Marta, desapontada, aquietou-se, o Senhor docilmente narrou:

— Um homem casado recebeu a notícia de que um Rei passaria pelo seu lar. Preparou a casa com a esposa. Quando o monarca chegou, dele acercou-se para ouvi-lo e homenageá-lo, enquanto a mulher correu a atenderas pequenas tarefas. Mas o Rei ali não podia ficar, e após o repasto ligeiro, partiu. Somente aquele que o escutou inteirou-se do programa do seu reinado, o que era mais importante. . .

— Desculpa-me — justificou-se Marta, — são os velhos hábitos muito arraigados.

— Para atingir a plenitude — acrescentou o Amigo — só uma coisa basta: espírito de luta capaz de arrebentar as velhas algemas e, renovado, entregar-se, totalmente, às coisas do Pai Celeste.

— Tens razão — concordou a anfitrioa.

— O pão, o agasalho — esclareceu Jesus — a terra no-los dá. O céu estrelado é cobertor excelente e o solo gentil é celeiro sagrado. A palavra, no entanto, é semente de vida. As preocupações sobre as coisas imediatas caracterizam a horizontalidade em que muitos se perdem, perturbados pela própria azáfama na luta em que se embrenham. A busca incessante da verdade, em permuta entre as coisas múltiplas pela aquisição de uma só paz interior com segurança espiritual, eis a vertical libertadora.

O homem afadiga-se inutilmente e perde-se a si mesmo, como se estivesse em labirinto cruel por ignorar as diferenças capitais entre os valores imaginários e os reais.

Uns se aferram à posse e são vencidos pelo que possuem. Outros se encastelam nas paixões e sucumbem soterrados ao peso delas.

Inumeráveis se agarram às ambições e enlouquecem percorrendo as sendas escabrosas.

O Mestre relanceou o olhar em derredor.

A sala iluminada apresentava a moldura da noite.

Atentos e curiosos, os donos da casa e os discípulos ouviam silenciosos.


Após a breve pausa e com maior ênfase, o Rabi prosseguiu:

— Os vencedores do mundo enquanto vivem estão inquietos e quando atravessam o umbral do túmulo estão sempre vencidos e sofredores, atados às amarras da retaguarda. Somente os que conseguem vencer o mundo e suas alucinações ascendem verticalmente no rumo da glória espiritual sem infortúnio. Por essa razão, "o Filho do Homem não possui uma pedra para repousar a cabeça, embora as aves dos céus tenham ninhos e as serpentes e os lobos possuam covis". Desdenhando todas as coisas, a uma apenas se atém: amar a todos, indiscriminadamente, a fim de que o reino de entendimento em perfeita comunhão de ideias prontamente se estabeleça entre as criaturas da Terra.

— Senhor — indagou, emocionado, João — demorará muito a chegar essa hora de entendimento humano?

— As sementes — respondeu o Interlocutor — estão sendo lançadas nestes dias. A floração e a colheita pertencem a Nosso Pai.

Semeemos todos, amando-nos uns aos outros, incansáveis e sem pressa e, fascinados pela verdade, avancemos resolutos, pois que só isto, realmente, é necessário.

Fora recendiam suaves aromas ao vento brando que derramava leve bulício no arvoredo, enquanto as estrelas espiavam de muito longe, quais vigilantes atenciosos com a curiosidade aguçada. . .