A inquietação assumia proporções de desespero que a dominava lentamente.
O Sol irisava as nuvens pardacentas, e o vento frio sacudia as poucas anêmonas e raras rosas por entre os arbustos.
Na mente ecoavam, sonoras, as vozes dos mancebos de vestes alvas, que lhe disseram: — Não tenhas medo, pois eu sei que buscais a Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui, porque já ressuscitou. . .
Ela cria que o Mestre, conforme dissera, ressuscitaria dos mortos.
Temia, no entanto, que os judeus houvessem roubado o corpo.
Atemorizadas, Joana de Cusa, Maria, mãe de Marcos, e as outras companheiras desceram à cidade para anunciar o desaparecimento do corpo do Rabi.
Pedro e João subiram o monte ansiosos e constataram os fatos: os lençóis com as substâncias aromáticas do embalsamamento no túmulo vazio, o lenço, a pedra afastada. . .
Estarrecidos, os dois discípulos retornaram à cidade, com as tristes novas; ela ficara chorando.
Os acontecimentos daqueles últimos dias foram muito dolorosos e surpreendentes. Não conseguia compreender nem concatenar os sucessos.
Uma saudade feita de pungente dor estrangulava-lhe o peito.
Foi muito rápido. Teve a impressão de uma aragem que perpassou levemente perfumada.
— Mulher, por que choras? Quem buscas? . . .
Aquela voz, aquele perfil! Não pôde concluir o raciocínio.
— Maria! . . .
— Raboni!
O deslumbramento dominou-a. O Mestre vivia e ali estava, radioso como a madrugada nascente!
— Não me detenhas! . . . vai para meus irmãos, e dize-lhes que eu sigo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus!
A luz de ouro do amanhecer incidia sobre as suas vestes, que fulguravam, e miríades de pequeninos sóis pareciam incrustadas n’Ele.
Ficou esmagada de felicidade. Desejou traduzir com palavras as impressões incomparáveis como as dores vividas até há pouco. Não pôde fazê-lo; a voz estava morta na garganta hirta e constringida. — Vai para meus irmãos e dize-lhes. . . Reboava-lhe nos refolhos do Espírito.
Pôs-se de pé. Sorriu e, sem mais delongas, tomou o rumo da cidade que despertava, com a alma em cânticos de excelsa alegria.
O leve ar da manhã embalsamada com os últimos perfumes da quadra, o verde dos campos de Acra e Bezeta, a paisagem emoldurada de Sol com o píncaro dos montes debruado a ouro - eis a tela sublime em que Ele volvera.
Venceu a distância com febricidade e atingiu o cenáculo onde os companheiros se acolhiam constrangidos e receosos.
Pairavam no ambiente triste as sombras do desgosto.
— Eu O vi, vi o Rabi! O Mestre voltou aos que O amam!
— Mandou-me anunciá-lO aos seus irmãos. Elevar-se-á ao Pai.
Ouvi bem: Jesus vivei Todas as suas fibras tremiam, como se fossem disjuntar.
Sua voz vibrava harmonias que não encontravam receptividade no coração dos companheiros. Àqueles ela conhecia da convivência diária naquelas últimas semanas.
— Conta-me, filha — falou Maria, ansiosa, aquela que era mãe d’Ele. — Fala-me, tudo. Meu filho voltou?
A voz tremia de compreensível emotividade.
— Não o creio — bradou alguém dentre eles. — O Mestre morreu e deixou-nos nesta dificuldade, a sós. . . . Não creio na sua volta. Só mesmo vendo-O. . . .
Ela relanceou os olhos muito brilhantes pelo recinto, procurando o contraditor.
— Mesmo que Ele viesse. . .
Interrompeu-se numa pausa.
— . . . iria apresentar-se a quem? Certamente que a Simão que Ele elegera para conduzir-nos; ou a João, a quem sempre distinguiu com o Seu amor; ou à Sua mãe. . .
Transparecia no tom sarcástico e zombeteiro da palavra cortante todo o azedume do seu Espírito atormentado e infeliz.
— . . ., mas a ti Ele apareceu? Não, não o creio. Não creiamos. Não é possivel que Ele tenha aparecido exatamente a ela. Não estiveram outras no sepulcro? João e Pedro lã não foram? Por que a ela? . . .
Foi como uma chuva de gelo e mal-estar que caísse sobre todos.
Um silêncio incômodo invadiu a sala.
Ela recuou.
As indagações finais foram cruéis punhaladas. "A ti? " "Por que a ela? " Eram ácidos queimando e requeimando.
— E verdade! Mesmo que não o creias, eu O vi. Apesar da minha antiga e infeliz condição — balbuciou humilhada — a mim me apareceu há pouco o Rabi. . .
— Eu o creio, filha — acentuou a Sua saudosa mãe. — Secreto pressentimento diz-me que meu filho vive. Eu o creio, porque sei que a nossa dor e saudade estão com Ele, como a Sua saudade se demora em nós.
Envolveu-a docemente e procurou ouvi-la com atencioso carinho.
Mentalmente ela refez os caminhos percorridos — longos e tortuosos!
Muitas vezes a bofetada lhe estrugiria em plena face. Era mesmo natural que lhe duvidassem da palavra. Ela se sentia toda podridão.
Não fora o chamado do Rabi e estaria, talvez, na enxerga da infinita descompostura ou na total destruição. E muitas vezes, no futuro, verteria o pranto da recuperação, até às fezes, por ter sido louca.
E comum proclamar-se virtude, meditava, e impedir-lhe a propagação.
Quantas novas tentações procurava sublimar, só ela o sabia.
Facilmente se impreca contra o erro, mas bem poucos são aqueles que alongam as mãos convertidas em alavancas de soerguimento para ampararem as vítimas da ignorância e da criminalidade.
Não que desejasse justificar-se.
Sua conduta fora inclassificável. Ela fora abjeta, sim, reconhecia-o.
Em Magdala, seu nome e sua vila faziam parte integrante do roteiro de degradação da cidade.
Ali se estabelecera. . .
Magdala era um centro de comércio e indústria de muita prosperidade. Para lá acorriam mercadores e aventureiros de todo o Oriente. Reclinada sobre as bordas do mar, gozava de clima ameno e desfrutava de águas piscosas privilegiadas.
Estação de repouso, recebia viajantes ilustres e nobres gregos, romanos, babilônios, fenícios, medos, que lhe disputavam as amenidades, conseguindo negócios rendosos e prazeres fáceis.
Compreensivelmente afluíam, também, aventureiros e cortesãs de corpos cansados que exibiam em luxuosas residências a mercadoria do próprio sofrimento, em noites de orgia e loucura, no caminho da queda total nas valas morais.
Depois de dolorosas e rudes experiências, ela conseguira adquirir, na cidade famosa, luxuoso palacete, favorecido com jardins e pomar imenso onde sicômoros antigos e vetustos confraternizavam com plátanos, roseiras e madressilvas pequeninas.
Em sua casa recepcionava os homens mais requestados que transitavam pela urbe agitada.
Era muito jovem; o licor da mocidade corria capitoso e sedutor, atraindo compradores ricos que se disputavam a vaidade de consegui-lo.
A noite sempre lhe fora comparsa discreta, pois que, ao cair das sombras e ao acender das lâmpadas e tocheiros, a velha porta de carvalho, nos muros externos, dava acesso àqueles que, na via pública, por preconceitos e hipocrisia, exibiriam a honra de apedrejá-la logo houvesse ocasião. . .
Possuía na sua vivenda de linhas gregas, sóbrias, tudo quanto a ambição pode cobiçar: joias exóticas de alto preço, perfumes raros e essências originais em vasilhames de alabastro trabalhado, tapetes persas e babilônios, arcas abarrotadas de sedas e damascos, móveis de mogno artisticamente lavrados, moedas de todas as procedências, servos originários de vários países. . . . Tudo quanto a vaidade diz que produz felicidade. Mas não se sentia feliz nem ditosa.
Na imensa residência rica, cheia de preciosidades, sentia-se vazia, vulgar e atormentada.
A sua condição de mulher rica não lhe mudava o caráter infame de pobre meretriz, mercadora dos perfumes da ilusão.
Sofria indizível amargura.
Em longas e tristes noites de soledade, parecia escutar vozes zombeteiras que lhe chicanavam a desdita e quase sempre experimentava os incomparáveis tormentos da obsessão pertinaz na mente e carnes cansadas e doloridas.
Diziam-na endemoninhada e temia sê-lo.
As mulheres, talvez mais felizes, além de seus muros, invejavam-na, detestando-a ao mesmo tempo e os homens inquietavam-na, perseguindo-a.
Tinha ânsia de paz no imenso cairei do abismo das paixões aniquiladoras e desejava o amor - um estranho amor - um estranho amor que ambicionava secretamente, sem que o encontrasse.
O amor que conhecia era, em verdade, luxúria e dissabor.
Acreditava no amor que fosse feito de paz e ternura, doação plena e tranquilizante. Não esperava fruí-lo, todavia. Era sumamente infeliz e aguardava, um dia não muito longe, a selvajaria de algum guerreiro déspota impiedoso ou as pedras da falsa pudicícia, na praça. . .
De coração generoso, gostava de ajudar e por ser infeliz compreendia a dor dos sofredores e se apiedava da aflição dos desditosos. Suas mãos e dedos adereçados derramavam moedas e ofertavam pães, e se as portas da sua casa se fechavam frequentemente aos servos do prazer, seus servos tinham severas ordens de abri-las à dor e ao sofrimento que buscasse ajuda ou guarida.
Quando a serenidade lhe possuía a mente, voltava à infância risonha, como em sonhos e enlevos festivos, surpreendendo-se, depois, com a realidade causticante.
O nome d’Ele soava na acústica dos corações como a melodia suave de uma harpa tangida ao longe.
A dor foge, ao contato das suas mãos, e a luz dilata pupilas mortas; uma alegria espiritual invade aqueles que convivem com Ele e uma esperança estranha e doce empolga os corações, onde Ele se encontra — comentavam todas as vozes.
As servas falavam sobre Ele com estranho fascínio no olhar, antes mortiço e sem vitalidade. Chamavam-nO Libertador e completavam que não era um libertador comum, quais aqueles que prometem quebrar as algemas de ferro da escravidão política e social, mas um singular salvador, que oferecia paz perene e libertação total: tranquilidade e segurança íntima, independentes da situação física em que transitassem.
Nas praças ou nas praias, pelos caminhos as multidões seguiam-nO fascinadas, como se Ele exalasse felicidade, naqueles dias rudes de provanças e misérias.
Numa noite de perfumes primaveris, instada por uma serva de confiança, dedicada e fiel, permitiu um diálogo sobre Ele.
Trazia o coração opresso e sentia a álgida constrição das forças ignotas que lhe atenazavam o Espírito, perturbando-lhe a razão e amargurando-lhe as horas.
— Senhora, hoje Ele pernoita perto daqui, em Cafarnaum. Ide vê-lO, senhora!
A voz era quase súplice.
— Receber-me-á, o teu Rabi? — Dissera com desprezo de si mesma. — Os Rabis são puros e detestam os infelizes, levantando a voz para ameaçar com castigos e punições aqueles que, iguais a mim, tombaram nas rampas da desgraça. . .
— O Rabi — esclareceu a jovem, entusiasta, — ama os sofredores e confabula com todos, informando que as impurezas muitas vezes estão ocultas e ninguém as vê, dignos todos, no entanto, de compreensão e ajuda.
— Mas, eu sou diferente. Tu sabes que sou. . . . Lágrimas fluíram quentes e confortadoras como há muito não expunha.
— Senhora, Ele diz que veio encontrar o que estava perdido.
— Sou uma condenada. . . dominada por Espíritos imundos!
— Ele é a Porta de redenção.
— Hã?. . .
— Vamos, senhora! Ele vos receberá!
A noite balouçava luzes miúdas no firmamento escuro, quando uma embarcação singrou as águas, no rumo de Cafarnaum.
O diálogo fora breve. Toda uma vida, porém, perpassou nele. . .
Ao retornar não era a mesma.
Estranha e poderosa transformação imprimira no seu íntimo, esperanças e ideais novos, dantes jamais sonhados.
Sentira-se morrer enquanto O ouvia e sentira-se viver enquanto retornava.
Na manhã seguinte Magdala soube, pasmada, a notícia da conversão da pecadora. Distribuíra tudo quanto possuía e, com o estritamente necessário, iniciara vida nova.
— Retornará — zombavam uns.
— Sempre foi louca! —, mofavam outros.
— A cidade não a perderá; voltará às noites de prazer! —, arrematavam os mais cínicos.
Transcorridos poucos dias. . .
Magdala era uma cidade paradoxal.
Rica e deslumbrante, hospedava esses caracteres exóticos e atrabiliários que pululam em todas as cidades de luxo e lazer, em todos os tempos.
Havia em Magdala um homem de hábitos estranhos. Chamava-se Simão e permitia-se o devaneio de recepcionar pessoas ilustres que transitavam pela urbe famosa. Simão era fariseu, tendo o orgulho de zelar pelas tradições e exibir a fortuna pessoal.
Pelo seu palacete passaram respeitáveis figuras das artes e do pensamento, gênios das guerras e das leis, sacerdotes e magos itinerantes. E os banquetes com que os homenageou, homenageando a si mesmo, foram comentados por toda a cidade dias a fio.
Simão, como todas as pessoas de Magdala, ouvira falar sobre Jesus. Empolgado com a notoriedade do Galileu, teve a ideia de recebê-lO em seu lar, apresentá-lO aos amigos, dialogar com Ele.
Talvez, pensava Simão, Ele fosse o Esperado Libertador, conforme lhe afiançara um rico mercador, e seria prudente ser-Lhe amigo para estar em triunfo à hora do seu triunfo; se fosse um Rabi autêntico, ser-lhe-ia honroso receber um homem santo, naqueles dias de franco profetismo em Israel.
Sabendo que o Mestre se encontrava perto de Magdala, enviou emissários com o convite auspicioso.
Tendo-o aceitado, no dia aprazado, o Rabi e dois discípulos, ante a curiosidade dos que acorreram à estrada por onde deveriam passar, chegaram à casa engalanada e foram recebidos com risos de júbilo e mal disfarçado motejo.
Introduzidos à intimidade doméstica, o repasto teve início.
Os divãs espalhados receberam os convidados confortavelmente e os servos, que conduziam as pequenas mesas com iguarias e frutos secos, puseram-se, obsequiosos, a servir.
Harpas dedilhadas suavemente enchiam a sala ampla, entre colunas esguias, de melodia triste.
O ar, porém, pesava.
Simão olhava de esguelha o Estranho que parecia distante.
Silêncio incômodo entre os convidados tornava a festa insípida, desagradável.
As motivações de palestras redundavam em respostas monossilábicas, sem interesse.
Quase ao fim do banquete, ouviram-se gritos e vozes em altercação violenta, quando, subitamente, irrompeu sala a dentro a figura desgrenhada e chorosa de estranha mulher.
Os cabelos desnastrados colavam-se à larga testa banhada de suor; os olhos brilhavam com intensidade, fora das órbitas; os zigomas salientes, corados, pareciam maçãs maduras; as vestes desalinhadas. . .
Ela olhou em derredor, como se procurasse alguém e, semienlouquecida, arrojou-se aos pés do Rabi, que permaneceu, impassível, na posição em que se encontrava.
Tudo fora tão rápido, que Simão hão tivera tempo de tomar qualquer atitude.
Estava estupefato! Conhecia, sim, aquela mulher. Visitara antes sua casa e lá participara de alguma noite orgíaca. . .
Estranha sensação visitou-o num átimo.
Suor frio e abundante começou a escorrer, desagradável.
Seu lar honrado acolhia uma mulher de má vida.
Desejou expulsá-la. Intentou mesmo fazê-lo. Temeu, porém.
Conhecia a coragem dela, a sua audácia, pois que se atrevera a chegar até ali. . .
Era Maria!
Transtornada pela vitória que experimentara desde o encontro com o Rabi, sentira-se liberta dos sete Espíritos demoníacos que a infelicitavam. Era outra, inteiramente renovada.
Quanto sofrerá sob o jugo deles!
Mortificações, desesperos sem nome, crises terríveis de languidez e pavor experimentara nas suas malhas cruéis.
Desde, porém, que os Seus olhos claros incidiram sobre ela, na noite que O fora ver, que se sentia libertada.
Uma alegria nova, como jamais dantes experimentara, dominou-lhe o Espírito aturdido e sofredor.
Sentia-se esperançada, embora recém-saída do pantanal.
Conjecturando, recordava-se das palavras d’Ele, no encontro inolvidável: "Há flores perfumadas e de brancura imaculada que espalham aroma sobre o lodo que lhes segura as raízes. . . " Refaria os caminhos. Lutaria!
Após libertar-se da canga da posse, desejou, publicamente, apresentar os sinais inequívocos do seu renascimento.
O banquete na casa de Simão, que ela conhecia, significava sua oportunidade.
Não trepidou. Poderia ser expulsa ou mesmo lapidada. Não tinha de que recear. Mesmo que fosse necessário resgatar com sangue suas culpas, estava disposta a lavar a própria vergonha.
Animada por tais pensamentos, seguiu arrebatada com a mente em febre de esperanças.
Ei-la, agora, ali. Todos a fitavam com desagrado.
As lágrimas saltavam-lhe dos olhos e caíam sobre os pés d’Ele.
Enxugava-os com a basta cabeleira. Quebrou o gargalo do vaso de alabastro que conduzia e derramou o unguento nos pés do Rabi, que foram balsamizados com piedoso carinho. O perfume de rara essência invadiu o recinto e ela prosseguiu repetindo generoso gesto.
Ele não dizia nada, como se nada sentisse.
O almoço foi encerrado friamente. Os demais convidados faziam questão de não ocultar o falso constrangimento.
— Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que o tocou, pois é uma pecadora.
— Simão, uma coisa tenho a dizer-te.
— Dize-a, Mestre.
Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos e outro cinquenta dinares. Não tendo eles com que pagar a dívida, perdoou-lhes a ambos. Dize, pois, qual deles o amará mais?
Simão sorriu pela primeira vez. Era astuto, hábil nos negócios.
— Tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou.
— Julgaste bem.
— Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta regou-me os pés com lágrimas, e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com unguento. . . . Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.
Simão estava estarrecido. Não compreendia aquelas palavras claras, talvez pelo impacto das desordenadas emoções que estrugiam no seu Espírito atormentado e pusilânime.
Abriu desmesuradamente os olhos e fitou o Rabi.
— Os teus pecados te são perdoados. . . vai-te em paz!
Ela levantara-se de um salto, exuberante de felicidade, explodiu sonora gargalhada saiu, como chegara: a correr.
Desapareceu de Magdala.
Todas as tardes, porém, na multidão, ajudava crianças enfermas, oferecendo olhos a cegos e mãos a trôpegos, arrependida e ansiosa pela própria renovação total, pôs-se a seguir Jesus de cidade em cidade, por onde Ele fosse. . .
Há poucos dias entrara com os demais galileus, jubilosa, em Jerusalém.
Havia, porém, tanta tristeza n’Ele, ao cavalgar com o jumento, que se entristecera, também.
Continuou repassando os acontecimentos pela mente atribulada.
A denúncia de Judas, a prisão d’Ele, o julgamento arbitrário, a caminhada para o monte da Caveira. . .
Daria a vida para ter-Lhe diminuído os sofrimentos.
Quando, com as outras mulheres que O seguiam, O vira cair, correra a sustentá-lO.
— Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas, e por vossos filhos. Porque eis que hão de vir dias em que dirão: Bem-aventuradas as estéreis, e os ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram! Direis aos montes: caí sobre nós; e aos outeiros: cobri-nos. Porque, se ao madeiro verde fazem isto, que se fará ao seco?
Gargalhadas zombeteiras estrugiram na multidão. . .
Por fim a dolorosa hora da Cruz.
Ante as lágrimas de Sua Mãe, fizera o legado da fraternidade universal, entregando-a a João e este àquela.
Ele ficara no madeiro da infâmia.
Fitando-o exangue, já exânime, nos instantes extremos, receara enlouquecer de dor, ao lado de Sua Mãe, quando notou que a cruz, símbolo tradicional de punição, se tornava rota eloquente de sublimação, após Ele: uma ponte para a Imortalidade.
Quando a cabeça d’Ele pendeu, desejou cingir-lhe outra vez os pés e osculá-los com ternura, mas se sentiu imobilizada. . .
Abriu os olhos doridos de chorar ante as recordações.
— Bom ânimo, filha! — Falou ternamente a Mãe sublime. — As nossas dores estão com Ele.
— Eu O vi, mãe! —, gaguejou.
Os dias passavam agora feitos de saudade e recordações. Voltou com os companheiros à Galileia franca e generosa, às águas inquietas do mar que Ele tanto amara.
A frase terrível, com que o companheiro invigilante a satirizara, continuava a persegui-la mentalmente.
Lá Ele reapareceu e falou longamente a todos, quase quinhentos, e concitando-os à pregação dos seus "ditos" e à edificação do Reino da Luz nas fronteiras do espírito.
Ide e pregai a todas as gentes. . .
No mundo só tereis aflições. . .
Lembrai-vos de mim, eu venci o mundo. . .
Eu vos mando como ovelhas mansas. . . " Soavam no ar os novos ensinos. . .
Ontem foram as notícias trazidas pelos jornaleiros dos caminhos de Emaús; hoje é a pesca incomparável. . . Ausente, Ele jamais estivera tão próximo, e continuava a inundar os corações com sua presença inconfundível.
Era o ministério que para eles começava. . .
Quarenta dias depois dos terríveis acontecimentos, Ele apareceu à sua Mãe e aos Onze, que estavam em Jerusalém, e levou-os até a Betânia. Todos O seguiram ansiosos, felizes, como nos dias idos. . .
Não era porém, a jornada, como outrora. Entre eles havia felicidade e também temor. A felicidade do reencontro e o temor da fraqueza de que deram mostras.
— Senhor, restaurarás Tu, neste tempo, o reino a Israel?
O Mestre olhou-os com aquela tristeza do passado.
Os amigos ainda não compreendiam qual era o Seu Reino, Reino sem dimensão geográfica nem política, a perder-se nas galáxias do firmamento. . .
— Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder.
— Recebereis as virtudes do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judeia, Samaria, e até aos confins da Terra.
Todos estavam com os olhos fitos n’Ele e, só então, perceberam que Ele ascendia lentamente, as mãos voltadas para eles num gesto de afago, as vestes luminosas, até desaparecer nas alturas. . .
Depois de lutas tiranizantes consigo mesma, experimentou a soledade e o abandono, quando todos se foram a pregar e viver a Mensagem.
Estando a sós, a pervagar pelas praias longas que O recordavam, encontrou leprosos que vinham de longe a buscar socorro nas mãos d’Ele e, como chegassem tarde, abraçou-os como irmãos e partiu para o vale dos imundos, cantando salmodias de felicidade. . .
Rediviva desde quando O conhecera, ao morrer às portas da cidade de Éfeso, demandou a Vida nos braços de Jesus aquela, cuja experiência e amor total ao Mestre são lições vivas vencendo os séculos. . .