A saudade pairava como ar misterioso em toda parte. [39] Na Galileia tudo eram evocações: o cenário do mar cantante e generoso, imenso e piscoso, que Ele tanto amara; as cidades ribeirinhas adornadas de sebes verdejantes e ricas de pomares; as rechãs coroadas de trigo que Lhe inspiraram as inconfundíveis parábolas!. . .
Tudo, lá, na romanesca Região das almas simples do povo, estava assinalado pelos selos da Sua mansidão. Mesmo os montes serenos e cansados de permanecerem sob ventos, Sol e chuva, pareciam recordá-lO. O Jordão na cantilena das suas águas, murmurejantes, carreando sal para o Mar Morto, igualmente O evocava! Todos os recantos, naquela querida Galileia de amores simples e gente apaixonada, de fé abrasadora e coração de criança, guardavam as marcas vivas das suas pegadas. Seus caminhos, Ele os percorrera, e os seus cenários Ele emoldurara com as mais tocantes expressões de carinho.
Caná fora assinalada pelo admirável fenômeno da transformação da água em vinho; Magdala acolhera-O mais de uma vez, na antiga residência da mulher atormentada que Ele libertou; Naim fora contemplada com a recuperação da criança, aparentemente morta; e Cafarnaum, Tiberíades, Nazaré, as cidadezinhas da Samaria, todas elas eram recordações dele, impregnadas da sua presença.
Na Judeia, raras exceções, as cenas evocativas da traição, da paixão, da soledade, do presídio, do suplício, da morte. . . e da ressurreição!
Fora, no entanto, nos sítios formosos e queridos daquela Galileia singela que Ele elegera para ascender, diante do mar inolvidável, ao entardecer. . . . Galileus eram os discípulos, exceto Judas, que nascera em Karioth, na Judeia. . .
Jerusalém, agora, parecia mais cruel. Seu ar era difícil de ser respirado.
Mantinham-se ali, porque para ali foram designados, ao todo, quase cento e vinte daqueles "quinhentos irmãos", testemunhas vivas da ascensão d’Ele. . .
Reuniam-se frequentemente no cenáculo, onde alguns residiam, aqueles que com Ele conviveram amiúde, e que aguardavam respostas que lhes clareassem as iriquietudes.
Embora a comunhão mantida com o Rabi, não se sentiam preparados para o ministério. Sabiam-se inseguros.
Até há pouco os alentavam reencontros inesperados, as notícias constantes, as visões, os diálogos incomparáveis. . .
Agora, porém, mergulhados em saudades incoercíveis, abatiam-se, sem saber como ou por onde começar.
Reconheciam a própria ignorância e limitação.
Nem se atreveram, sequer, a reorganizar o grupo desfalcado com a deserção de Judas, o companheiro enganado.
Aquela era uma Cidade poliglota.
Dificilmente eram entendidos ou entendiam, mesmo entre os compatriotas.
A língua hebreia era "santa", porque nela estavam escritos os Livros, herdeira de todas as tradições da raça e consagrada às questões do Senhor. Para eles, porém, homens muito simples e mesmo ignorantes, o dialeto da sua região era mais fácil e canoro.
Como enfrentar dificuldades de tal monta?
Reuniam-se para evocá-lO, discutirem os Seus feitos, enriquecerem-se de piedosa comoção e chorarem de saudades, de júbilos por se saberem escolhidos, conquanto. . .
O Pentecostes [40] guardava uma significação toda especial para o povo, para toda a Israel.
Reuniram-se naquele dia consagrado ao Quinquagésimo com o Espírito festivo.
Matias ingressara no Colégio, após o lançamento de "sortes", por inspiração superior, cuja escolha fora recebida por unanimidade.
Sentiam-se, naquele dia, mais saudosos que nos dias anteriores.
Experimentavam a impressão de que algo estava por acontecer.
A Cidade regurgitava de peregrinos.
A bulha da rua atingia o recinto cenacular em que se congregavam.
Guardavam no coração emoções que não conseguiam traduzir.
—Subitamente "veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. Foram vistas por eles línguas de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, começando a falar em outras línguas". . .
Parecia-lhes terem caído escamas dos olhos e soerguidas sombras que os envolviam mentalmente. Discernimento vigoroso dominou-os a todos, lucidez e segurança irromperam em palavras que, atropeladas, a princípio fluíam dos lábios, qual se êxtase singular deles se apossasse.
Abriram as janelas, saíram à porta, dominados por impulso indomável que os guiava, falando sem mesmo saberem o quê, nem o porquê daquelas expressões que lhes eram estranhas.
Mentalmente experimentavam a impressão de um suave velejar por além dos rios insondáveis, onde anteriormente jamais deslizaram.
Aragens brandas perpassavam, conquanto o coração estivesse preso de indescritível ventura e aceleração. As veias, nas têmporas, alteadas, mal detinham o comportamento circulatório. Os olhos, brilhantes e parados, palidez mortal, suor abundante e o verbo vertido em catadupas sob estranho e vigoroso comando.
Atraídos pelo inusitado acontecimento, os transeuntes se acercaram e, curiosos, puseram-se a comentar.
— Não são galileus — interrogavam — estes que assim nos falam? Como se assenhorearam dos nossos idiomas tão diversos e tão complexos?
— Acabemos com o aranzel.
Eles, porém, incorporados pelos Espíritos Superiores, Embaixadores de Jesus, pregam, transfigurados, dão começo à Era Nova do Espírito Imortal, já inaugurada pelo Rabi Ressurreto.
A xenoglossia [42] , irrompendo nos continuadores do Mestre Crucificado, pasmava.
Os glossólalos [43] prosseguiam imunes à ironia, quando Simão, vivamente mediunizado, com o semblante irradiando suave claridade, adiantou-se e, tomando a palavra, exorou, eloquente.
Não parecia o antigo homem do mar.
Não mais o pescador das águas de reflexos prateados, hábil manipulador das redes. Sua palavra, seu coração, agora, eram rede e barco sublimes em mar de esperança. Estava em pesca nova: a de criaturas para o Reino de Deus.
— Varões judeus, e todos os que habitais em Jerusalém. . . A palavra ardente vibrava com força e beleza. Mentalmente revia-se no Tabor, recordava a Transfiguração do Mestre. A cena inesquecível repassava-lhe pela mente com incoercível celeridade. Os olhos umedeceram-se ante a visão psíquica do Senhor, acolitado por Moisés e Elias, em vestes resplandecentes. . .
— Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Isto é o que foi dito pelo profeta Joel: Nos últimos dias acontecerá, diz Deus: que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne;
vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, vossos mancebos terão visões, os vossos velhos sonharão;
E também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as minhas servas naqueles dias, e profetizarão. . .
Fez uma pausa. O silêncio era total. Respeito natural fizera-se e o ar transparente deixava a descoberto o azul cintilante do firmamento.
Os galileus recordavam os cenários onde Jesus pregara, as anêmonas vermelhas, tingindo os campos verde-escuros. . . Farei aparecer prodígios, em cima, no céu; e sinais, embaixo, na terra, . . .
O Sol se converterá em trevas, a Lua em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor!
E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.
Varões israelitas, escutai estas palavras: a Jesus Nazareno, varão aprovado por Deus entre vós. . . todos vimos a realização de prodígios, na semeação da Verdade por esse Embaixador e Excelente Filho de Deus. Depois da crucificação infamante que Lhe impusemos por nossa leviandade, ressuscitou dos mortos e nos apareceu, elegendo-nos para manter vivo e claro o Sol do Seu amor na rota dos espíritos.
Saiba, pois, com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes, Deus O fez Senhor e Cristo. Meditai e arrependei-vos, libertando-vos das hienas da cobiça, da cólera e de todas as paixões que vos seguem famélicas e impiedosas. . .
A palavra se alteava, alcandorada e incomparável e, enquanto modulava, impregnava os Espíritos e os corações.
Quantos a escutavam e em deslumbramento se deixavam tocar, como se estivessem transformados em harpas vivas que fossem tangidas por mãos invisíveis de invulgar destreza.
Comovidos, muitos dentre os ouvintes, se aproximaram, ansiosos e sequiosos de paz deixando-se conduzir pelas vibrações imponderáveis que os visitavam, enquanto a palavra, a flux, concluía em peroração comovente.
Demorava no recinto o impregnante hálito da paz.
Cantavam no imo de todos em inarticuladas mensagens, as alegrias da hora.
Os Espíritos da Luz conduzi-los-iam pelos caminhos do mundo doravante, levantando os alquebrados, consolando os aflitos, libertando os obsidiados e pregando, esparzindo a luz, todos eles, na verdade, como o próprio Mestre fizera.
Dali marchariam, como o fizeram, para a Terra toda, entoando e vivendo a excelsa canção das Boas-novas, que agora volta a vibrar em todos os rincões do Mundo, reconduzindo o homem ao coração do Altíssimo, através de Jesus, O Rei Inconquistado.