No ar abafado do entardecer serenavam as ânsias da Natureza.
Doces perfumes evolavam de miúdas flores derramadas nos flancos do aclive. As águas transparentes cantavam melodias ignotas, deslizando sobre o leito de pedras arredondadas.
O apelo pairava vibrando em derredor: — Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no Céu; vem, e segue-me!
Aquela voz penetrava como um punhal afiado e impregnava qual perfume de nardo.
Havia um magnetismo inconfundível naqueles olhos severos e profundos como duas estrelas engastadas na face pálida do amanhecer.
Tinha sede de paz.
Embora repousasse em leito de madeiras preciosas incrustado de ébano e lápis-lazúli, se banqueteasse em repastos opíparos, cuidasse do corpo com massagens de óleos e unguentos raros, envolvendo-o em tecidos de linho leve, e suas arcas estivessem abarrotadas de gemas e ouro, sabia-se infeliz, sentia-se infeliz. Faltava-lhe algo que não se consegue facilmente.
Hesitava, no entanto.
Sua vivenda era luxuosa, seus pertences valiosos, e vazio o seu coração.
Conquanto a juventude cantasse alegrias e festas em convites constantes ao prazer no corpo ágil e vigoroso, acalentava melhores aspirações, se disputava a posse total da paz. Era mais do que um tormento essa necessidade. Não que desejasse a tranquilidade aparatosa dos fariseus ou o repouso entorpecente dos mercadores opulentos, nem a serenidade enganosa dos cambistas abastecidos ou a senectude vitoriosa dos conquistadores em aposentadoria compulsória. Buscava integração harmoniosa, mas não sabia em quê.
Confrangia-se e angustiava-se, ignorando as nascentes da melancolia renitente que lhe dissipava sonhos e esperanças sob guante de inenarrável amargura.
Buscava as competições em Cesareia, todavia ignorava se essa busca representava uma realização ou uma fuga.
Agora, pela primeira vez, sentia-se arrebatado.
A meiguice e a ordem daquela voz, enunciada por aquele Homem, ecoavam como cascatas em desalinho nos abismos do espírito.
Interiormente gritava: "Irei contigo, Senhor, mas". . .
Hesitava, sim, e a hora não comportava dubiedades.
Uma roseira de flores rubras, que abraçava os ramos do arvoredo próximo, sacudida pelo vento, desgarrou-se e as pétalas da cor de sangue caíram-lhe aos pés, junto dele, no alpendre, como sinais. . .
Donde O conhecia? —, indagava, a medo, procurando recordar-se, com indizível esforço mental.
Tudo àquela hora era importante; mais do que isso: vital!
Ao vê-lO, de longe, era como se reencontrasse um amigo, um celeste Amigo.
Quando os seus descansaram nos olhos d’Ele, sentiu-se desnudado, o coração em descontrole sob violenta pulsação. Emoções inusitadas vibraram no seu ser, como jamais acontecera anteriormente. Desejou arrojar-se ao solo, esmagado por indômita constrição no peito.
Percebeu que o Estranho sorriu, como se o esperasse, como se o amasse, poderia afirmá-lo. . .
O tempo corria célere galopando as horas fugidias.
Seus lábios afiguraram-se selados, e frio impertinente gelava-lhe as mãos.
Lutava por quebrar aquele torpor que o imobilizava.
Retalhos de luar tímido prateavam nuvens soltas no firmamento, bordando de luz oliveiras altivas e loendros em flor.
— Permite-me primeiro — conseguiu articular, vencendo a emoção que o transfigurava — competir em Cesareia, logo mais, disputando para Israel os triunfos dos jogos. . .
— Não posso esperar. O Reino dos Céus começa hoje e agora para o teu Espírito. Não há tempo a perder.
— Aguardei muito essa ocasião e ela se avizinha, com a chegada do período das competições. . . . Exercitei-me, contratei escravos que me adestraram. . . . Aos partos comprei, por uma fortuna, duas parelhas de fogosos cavalos. . . . Os jogos estão próximos. . .
— Renuncia, e segue-me!
Quem era Ele que assim lhe falava? Que poder exercia sobre sua vontade? Por qual sortilégio o dominava?!. . . Gostaria de fugir ou deixar-se arrastar; estava perturbado; ignorada sofreguidão o aniquilava. . .
A horizontalidade das aflições humanas contemplava a verticalidade da sublimação divina; o cotidiano deparava com o infinito; o vale fitava o abismo das alturas e se perdia na imensidão.
O homem e o Filho do Homem se defrontavam.
O diálogo parecia impossivel, reduzindo-se a um monólogo atormentante para o moço diante daquele Homem.
— Não receio dar o que possuo: dinheiro, ouro, gemas, títulos, se possivel, pois sei que esses se gastam muito facilmente, mas. . .
— . . . . Dá-me a ti próprio e eu te oferecerei a ventura sem limite.
Que alto prêmio! Que pesado tributo! —, pensou desanimado.
Era muito jovem e muitos confiavam nele. Possivelmente Israel lucraria com os seus lauréis e triunfos. Príncipe, tinha pela frente as avenidas do poder a que se afervorava, poder que no momento destituía-se de qualquer valor.
Os bens, poderia ofertá-los, sim. Porém, a fortuna da juventude, os tesouros vibrantes da vaidade atendida e dos caprichos sustentados, as honras de família resguardadas pela tradição, os corifeus agradáveis e bajuladores, oh! Seria necessário renunciar-se a isso tudo? — Interrogava-se, inquieto.
— Sim! — Respondeu-lhe, sem palavras, com os olhos fulgurantes.
Sofria naqueles minutos a soma dos sofrimentos que experimentara a vida toda.
O ar cantava leves murmúrios enquanto as tulipas do campo teciam um manto sutil, rescendendo aromas.
O Rabi, em silêncio, aguardava. E ele, em perplexidade, lancinava-se.
O diálogo se tornara realmente impossivel.
Subitamente, o príncipe de qualidade, num átimo de minuto, lembrou-se que amigos o aguardavam na cidade. Compromissos esperavam-no. Deveria debater os detalhes finais para a corrida na grande festa da semana entrante.
— Não posso. . . . Não posso seguir-Te agora. . . . Perdoa-me, se me amas!
E saiu quase a correr.
Sopravam os ventos frios que chegavam de longe musicados pelo bulício das estrelas balouçantes.
A terra estuava sob a gramínea orvalhada.
O Mestre sentou-se e encheu-se de profundo sofrimento.
Era assim, sempre assim que Ele ficava após a deserção dos convidados ao Banquete da Luz. A expressão de mansuetude e perdão que lhe brilhava nos olhos mergulhava em lágrimas, agasalhada em leves tons de amargura.
— Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas!
Uma semana depois, Cesareia era a capital do ócio, do prazer.
Situada ao norte da planície de Sarom e a 30 quilômetros ao sul do Monte Carmelo, foi embelezada por Herodes que, no local, mandou erguer grande porto de mar, caracterizado por colossal quebra-mar, enriquecendo-a com imponente Templo onde se levantava descomunal estátua do Imperador.
Esse porto valioso sobre o Mediterrâneo era importante escoadouro de Israel e porta de entrada marítima onde atracavam embarcações de toda parte.
As vilas ajardinadas debruçavam-se sobre as encostas pardacentas da cidade, exibindo estilos arquitetônicos variados.
Pelo seu clima agradável, tornara-se residência oficial dos procuradores romanos em Israel.
Tamareiras onduladas pelo vento adornavam as ruas e odores exóticos misturavam-se no ar varrido pela maresia.
As anêmonas escarlates ou "lírios do vale", o narciso branco ou "rosa de Sarom" misturavam-se na planície.
Os festins de Cesareia pretendiam rivalizar com os de Roma, atraindo aficionados até mesmo da Metrópole longínqua.
Ao som alegre de trompas e fanfarras começavam as festas públicas.
Competições de bigas abrem as corridas ante a aflição de judeus, romanos e gentios que deixaram sobre as mesas dos cambistas pesadas apostas nos seus ases.
Gladiadores em combates simulados, tocadores de pífanos e flautas, alaúdes e címbalos enchem os intervalos de som e de cor.
As quadrigas estão na linha de partida. Os fogosos corcéis, adquiridos aos partos, oriundos da Dalmácia, de Tiro, Sidon e da Arábia empinam, lustrosos, ajaezados. Ao sinal, disparam sob estrondosa ovação.
Chicotes vibram no ar, mãos firmes nas rédeas, os guias e condutores dão velocidade aos carros frágeis. A celeridade prende a respiração em todos os peitos.
A expectativa fala sem voz na pulsação da tarde ardente e empoeirada.
Numa manobra menos feliz, um carro vira e um corpo tomba na arena, despedaçado pelas patas velozes em disparada.
O moço rico sente as entranhas abertas, o suor e o sangue em pastas de lama, a respiração estertorada. . .
Enquanto escravos precipites arrastam-no da pista, foge mentalmente à cena brutal que o esmaga, e entre as névoas que lhe sombreiam os olhos parece vê-lO.
— Renuncia a ti mesmo; vem, e segue-me!
— Amigo!. . .
Dois braços o envolvem veludosos e transparentes.
Apesar da face deformada e lavada pelas lágrimas, pelo suor e o sangue, ele dá a impressão de sorrir.