Suas praias e suas águas piscosas eram disputadas pelos pescadores; as redes demoravam-se abertas ao Sol, sombreando as pedras lapidadas pelo atrito das vagas; e, nas areias, figueiras velhas e tamareiras abriam os braços e leques balouçantes.
Cafarnaum era um poema de ternura com seu casario baixo, esparramado entre árvores frondosas, marchetadas por trepadeiras de miúdas flores coloridas.
Ele amava aquela cidade e a escolhera para o início do seu ministério de amor.
Maio desatava os raios ardentes do Sol e o arvoredo parecia de pedra, sem os meneios ondulatórios que os ventos lhe impõem.
Desde a véspera a notícia correra de boca em boca, atraindo curiosos e sofredores das cercanias.
Embora impusesse silêncio ao leproso que curara, e rogasse à sogra de Simão nada dizer do que lhe acontecera, o silêncio era quase impossivel.
Os olhos da necessidade e do sofrimento espiam na penumbra as mais débeis flamas da esperança e atiram os aflitos na sua direção.
Doava o seu amor àquelas populações ribeirinhas com estremecimentos, pois que ali, também, reencontrava o amor nos corações simples e ingênuos das gentes.
Chegara o momento de o Pastor levantar-se para conduzir o rebanho imenso, vencer rudes tratos de terra, ásperos caminhos e transpor abismos.
Era o prelúdio da Mensagem e o início das Suas dores. . .
As atividades foram febricitantes e variadas.
As queixas e dores da multidão encheram o ar de miasmas afligentes. Embora o número dos sarados, estes anunciavam, em alegria, a saúde recuperada e novos magotes chegavam em desalinho, a mercadejar as misérias em que se refugiavam.
A face do Rabi, serena, estava sulcada e o ar pesado na sala, sem ventilação, abafava. O tumulto não cessava, e os apelos e imprecações redobravam em todas as bocas. . .
De pé, à porta, Simão deixa-se arrastar por indizível felicidade.
Atrás, no quintal do lar, que se alongava até a praia, estava o mar que ele muito amava. A frente, no meio da multidão, Ele estava curando e consolando as aflições da Terra, como Embaixador dos Céus. E intimamente agradecia a Deus por ter sido escolhida a sua casa, ter sido chamado ao Seu rebanho. As horas escoaram-se sem que disso se apercebesse; as emoções eram tantas e de tão difícil explicação, que deixava-se arrastar docilmente entre os jogos de dor e da alegria que presenciava: esgares se transformavam em sorrisos, lágrimas em cânticos, feridas purulentas em tecidos lavados. . . ante a imposição das Suas mãos, ou a vibração da Sua voz, ou a luz dos Seus olhos. . .
Em Israel jamais se presenciara acontecimento parecido. Os Espíritos imundos fugiam, e a dor perdia a voz ante a ordem d’Ele. . .
Os olhos de Simão, faiscantes, se encontraram com os olhos d’Ele. Teve, por momentos, a impressão de que Ele lhe pedia auxílio.
A face parecia transparente, e o cansaço se Lhe estampava no rosto suarento e sofrido. . .
O rude pescador compreendeu: a multidão era insaciável, a dor não tinha limite; fazia-se mister ajudá-lO, retirando-O dali.
— O Mestre está fatigado!
Tomou-O pelo braço, carinhosamente, com ternura e O conduziu à praia.
As estrelas começavam a rutilar no firmamento vencido pelo crepúsculo, que deixava, além das montanhas do outro lado do lago, uma fímbria de ouro iriante.
Lufadas de vento morno chegavam à crista das vagas, e alvas rendas de espumas despedaçavam-se nas praias sequiosas dos beijos das águas.
O Rabi sentou-se sobre as raízes altas de velha árvore, que abria os braços em direção do lago e, em silêncio, perdeu-se em meditação.
Simão, como um amigo fiel, sentou-se ao lado e pôs-se a contemplar-lhe o rosto pálido, exaurido.
Os cabelos de cor âmbar, encaracolados, esvoaçavam em desalinho entre os pentes do vento, e os dois olhos pareciam profundos e misteriosos como o seio das águas a que ele se acostumara desde cedo.
Como era belo o Rabi! -, pensava Simão — possuindo uma beleza como os seus olhos jamais viram igual. Havia n´Ele qualquer coisa que O fazia diferente de todos os homens. Magro e bem constituído, não chegava a ser um atleta, mas não era também franzino, nem tíbio. Era dono de força grandiosa e de majestade invulgar. Simples e bom, era sábio e humilde. Profundo conhecedor das misérias humanas, procurava os oprimidos e sofredores para aliviá-los. Falava pouco e dizia muito, em palavras que todos pronunciavam, mas que ninguém pronunciava como Ele. Havia, no entanto, naquele Homem simples e puro, portador de invulgar beleza de corpo e espírito, tons de profunda melancolia! . . .
Simão perdeu-se em meditação também.
Somente a noite falava e acompanhando as vozes da Natureza.
Inesperadamente, como se chegasse de muito longe, Simão voltou a fitá-lO, e só então percebeu. Os olhos grandes e claros do Rabi estavam imersos em lágrimas.
— Rabi, estás chorando? . . .
— . . . de felicidade, suponho, em se considerando os eventos felizes deste dia, não é verdade?
A interrogação continuou no ar, na noite murmurante.
A velha árvore sacudia os ramos, e a voz do lago fazia um cantochão especial com ondas arquejantes nas praias imensas.
— Choro, Simão! — respondeu pausadamente. — Choro, sim, de tristeza, compadecido.
— Mas, Mestre, não compreendo. Hoje Te expuseste aos fariseus astutos e solertes, aos escribas ambiciosos e falsos, que vieram espreitar, à malta dos traidores e, à vista de todos, perdoaste pecados e curaste, silenciando-os com sabedoria e elevação. . . e choras?!
— Sim! Pois que não me compreendeis, tu e eles. Certamente que não espero ser entendido. Tenho, no entanto, piedade deles, os desassisados, e os lamento.
Natanael Ben Elias, numa estalagem da cidade, exultava entre bilhas de vinho capitoso e amigos truculentos.
— Aconteceu-me um prodígio na minha desdita — comentava com alacridade.
— Fala-nos, conta-nos o que te aconteceu, pois que duvidamos do que nos narraram! —, exclamaram diversos a uma só voz.
— Sucedeu-me tão repentinamente — prosseguiu — que me encontro ainda atordoado.
Como todos sabem — enxugou o suor do rosto alterado pela emoção — desde há muito tempo a paralisia e as febres me rondavam o corpo, terminando por imobilizar-me em total prisão, num leito infecto e detestável, impedindo-me qualquer movimento.
Transformaram-me num réprobo repulsivo.
Esquecido, no meu catre, até há pouco, era vítima de extrema miséria física e moral.
Aguardava a morte, que tardava, como uma libertadora.
Ouvi falar d’Ele e chorava por conhecê-lO. Secreta intuição informava-me que Ele poderia curar-me. . .
Hoje, sabendo-O aqui, em Cafarnaum, pedi a amigos que me conduzissem à Sua presença, e estes, carregando o grabato onde eu expungia minhas amargas penas, levaram-me à casa onde Ele se encontrava. A multidão era tão compacta que não me puderam levar pela porta.
Em derredor o alarido, o desespero e as altercações compunham cenas lamentáveis e dolorosas.
Ante a aflição que se desenhava na minha face descarnada e o desespero que me dominou, um dos amigos alvitrou erguer-me ao terraço e descer-me pelo teto à sala onde Ele estava. E assim o fizeram. Subiram os degraus laterais da vivenda de Simão, o pescador, e arrebentaram os adobes, rasgando nervosamente as esteiras e ramos de palmeiras entre uma e outra trave de segurança, até conseguirem uma abertura suficiente para passar minha enxerga, descendo-me por ela, atado a cordas, até Ele.
— Natanael Ben Elias, crês que Eu te posso curar?
A voz era veludada e forte, meiga, no entanto, firme.
— Sim — respondi-Lhe — creio-o!
Um estremecimento sacudiu-me. Houve um grande silêncio e mesmo o calor pareceu diminuir.
— Senhor! —, exclamei. — Como sabes o meu nome?
Conheces-me?
— Sim, eu te conheço, Natanael, desde ontem. Sou o Bom Pastor, e em razão disso conheço nominalmente todas as ovelhas que o Pai me confiou.
Não compreendi, confesso, o que Ele disse sobre o desde ontem.
Nunca O vira antes, nem jamais me visitara. . .
— Teus pecados — exclamou — estão perdoados!
Houve murmurações e uma exaltação de ódio na assistência. Eu próprio me perturbei.
Quantas vezes eu pensara em seguir uma vida limpa e decente se voltasse a movimentar-me, a acionar as pernas, não saberia dizê-lo.
No entanto, àquela hora, eu indagava: seria Ele capaz de perdoar pecados? Não estaria blasfemando? O suor corria-me em bagas pelo corpo sujo e macilento.
— Que é mais fácil? Dizer ao paralítico: Perdoados são os teus pecados; ou dizer: Levanta-te e anda?
E voltando-se para mim, distendeu os braços e alongou as mãos;
falando-me, imperioso:— Levanta-te: toma a cama, e vai para a tua casa.
Oscilei como uma cana ao vento, desejei falar algo e não pude.
Ergui a cama, explodi num grito de ventura: Salve, Rabi! E voltei dando hosanas, ante a admiração de quantos me conheciam.
Não compreendo, porém, o que me sucedeu; parece-me um sonho do qual receio acordar.
— Bebamos, em gáudio — gritaram todos em redor — comemorando a tua volta à saúde. . . e ao prazer. Exibe o corpo para que o vejamos sem marcas, sem feridas e mais o creiamos. . .
Música sensual, soluçando entre dedos de mulheres infelizes, arrendadas na Núbia e outras terras para o comércio carnal, a empunharem instrumentos de cordas e adufes, enchendo a sala ampla, que exalava odores exóticos.
Lá fora a noite espiava a Terra pela visão das estrelas.
— Por que dizes que não Te compreendemos, Rabi? Estamos todos tão felizes!
— Simão, neste momento, enquanto consideras o Reino de Deus pelo que viste, Natanael, com alegria infantil, comenta o acontecimento entre amigos embriagados e mulheres infelizes.
Outros que recobraram o ânimo ou recuperaram a voz, entre exclamações de contentamento, precipitam-se nos despenhadeiros da insensatez, acarretando novos desequilíbrios, desta vez, irreversíveis.
Não creias que a Boa-nova traga alegrias superficiais, dessas que o desencanto e o sofrimento facilmente apagam.
O Filho do Homem, por isso mesmo, não é um remendão irresponsável, que sobre tecidos velhos e gastos costura pedaços novos, danificando mais a parte rasgada com um dilaceramento maior. Seria um desastre depositar em vasilhas imundas e velhas o vinho novo e capitoso, que fermentaria com precipitação.
A mensagem do Reino, mais do que uma promessa para o futuro, é uma realidade para o presente. Penetra o íntimo e dignifica, desvelando os painéis da vida em deslumbrantes cores. . .
Eu sei, porém, que me não podeis entender, tu e eles, por enquanto. E assim será por algum tempo.
Mais tarde, quando a dor produzir amadurecimento maior nos Espíritos, eu enviarei Alguém em meu nome para dar prosseguimento ao serviço de iluminação de consciências. As sepulturas quebrarão o silêncio em que se guardam e Vozes, em toda parte, clamarão, lecionando esperanças sob os auspícios de mil consolações. . .
O Mestre silenciou por um momento.
Os olhos do velho pescador, faiscantes, expressavam as emoções que lhe cantavam no âmago do ser.
O ar leve perpassava entre as folhas do arvoredo, enquanto a preamar predizia uma grande parada na pulsação da Natureza.
— E quando o Consolador chegar — interrogou o discípulo emocionado — os homens o receberão compreensivamente?
— Não, Simão! —, respondeu Jesus. — Não a princípio.
Os métodos eficazes para curar e disciplinar são severos e, por isso mesmo, indesejados. No entanto, esse Enviado ficará indefinidamente ao lado da Humanidade, ajudará sem cansaço e lentamente elaborará a Era da Paz e da Alegria sem jaça.
Removerá velhos óbices, promoverá a reestruturação social à base do amor que, então, invadirá todos os departamentos da vida, inaugurando sentimentos de solidariedade em todos os corações. . .
A face do Mestre se transfigurara.
Simão não pôde sopitar as lágrimas que lhe correram espontâneas.
E os séculos correram ágeis através da ampulheta dos tempos.