Naquele território residiam os descendentes cananitas também chamados sírio-fenícios, de modo a diferenciá-los dos fenícios da Líbia, pois que desde os dias de Pompeu, o triunfador, a Fenícia fora incorporada à Síria.
Com as constantes migrações trazidas pelos conquistadores desde os tempos dos Macedônios, dos Ptolomeus, dos Lágides, os povos cananeus mesclaram-se com os invasores e promoveram a proliferação do culto das diversas deidades que se misturavam a Moloc, Baal, Tanit. . . E os deuses do Egito e da Hélade.
Enquanto na Judeia os propósitos de helenização experimentaram a mais rigorosa reação, preservando-se o país qual oásis de vida com o culto ao "Deus Único", na Fenícia, como na Síria, a miscigenação estendera-se igualmente à religião, ensejando ao paganismo orgíaco desenfreado curso.
Ao tempo da universalização dos cultos por decreto imperial em Roma, entre os cananeus já havia uma perfeita assimilação das ideias disseminadas pelas crenças e tabus dos que deambularam pelas suas províncias.
As cidades de Tiro e Sidon, que Jesus e os Doze seguiam a conhecer, eram famosas pela manufatura de artigos de luxo e conhecidas pelas lendas que povoavam a mente ocidental em torno do oriente.
Os templos pagãos ali esplendiam, majestosos, entre bosques perfumados. As construções de mármore lavrado se levantavam formosas, destacando-se no panorama de relva verdejante.
Os ânimos naqueles dias estavam exaltados.
O desatavio das palavras vigorosas do Rabi não permitia equívocos. Seus ensinos eram sementes da verdade.
Interrogado, respondia com lúcida segurança. Seus conceitos não se coadunavam com as estranhas práticas em voga nem se subalternizavam às legislações correntes.
Instituindo um sentido de direção firme aos que O seguiam, estabeleciam Seus comentários o paralelo inevitável entre o farisaísmo e a Boa-nova.
Integérrimo, jamais se curvaria à bajulação ou ao despotismo.
Tendo enfrentado com estoicismo os que vieram de Jerusalém para inquiri-lO, resolvera, logo depois, demandar outros sítios.
Chamou os discípulos e rumou a noroeste, seguindo o curso do Jordão como se lhe buscasse as nascentes. . .
Não era a primeira vez que iria encontrar-se com o gentio. . .
O Seu nome já atravessara os limites estreitos da Galileia e muitos foram ouvi-lo, informados por viajantes e caravaneiros que venceram as distâncias.
Próximo, o mar refletia os céus esfogueados do entardecer e a brisa corria ligeira carregada de aromas exóticos.
Os discípulos, embora silenciosos, inquiriam-se, mentalmente, sobre os objetivos que os levavam àquelas cidades pagãs e gentias, impenitentes.
Para trás ficaram o Grande Hermon, as cordilheiras, as terras abençoadas. . .
Os cultos execrandos dos pagãos respiravam sordidez. Que vieram ali fazer?
O Judaísmo era a revelação, e o Mestre representava a resposta de Deus aos aflitivos apelos dos homens, sabiam-no. Seria justo que se mesclassem aos desafortunados adoradores de ídolos?
Vencidas as distâncias, caminharam por largas horas da noite, até chegarem a Tiro. Atravessaram a cidade sem qualquer incidente e buscaram repouso.
— Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim, pois que minha filha está miseravelmente possuída de espírito demoníaco.
Alguns dos companheiros voltaram-se e contemplaram a mulher aflita que rogava socorro.
Era, porém, uma estrangeira. . .
Mesmo que fosse descendente de Israel, pois que ela O identificava como "Filho de Davi", professava, naqueles termos, religião execrável, abjeta. Não lhe deram importância.
— Despede-a, pois que vem gritando atrás de nós.
— Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.
A voz era enérgica, embora traindo doçura no timbre e piedade na expressão.
A mulher, num átimo, recuou mentalmente e recapitulou a vida.
A filha era o seu tesouro, fortuna que lutava por preservar. A desventura tudo lhe tomara ao longo dos anos: felicidade, esposo, amigos. Lutava destemidamente por futuro melhor e nele, a filhinha ocupava o centro. Não se recordava de uma falta contra os Céus.
— Senhor, socorre-me! . . .
A dor e a extrema confiança eram-lhe patentes.
Jesus fitou-a demoradamente, como se ponderasse o que iria argumentar.
Sabia do alto quilate de fé que vitalizava aquele coração, conhecia, porém, o orgulho israelita e o desprezo que se votava ao estrangeiro.
De outras vezes, ao lado dos que eram detestados ou socorrendo os não tutelados de Israel, era visto com desconfiança, senão com desagrado. Agora, no entanto, estava diante de alguém que portava amor e fé como gemas de luz no íntimo.
— Não é bom pegar no pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos.
Cães, eram aqueles que não participavam da eleição israelense.
A expressão cachorrinhos soava como terna admoestação. A imagem forte falava por si mesma.
A cananeia entendeu que a sua condição não lhe ensejaria outra oportunidade. Sofria e resignava-se.
— Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores.
A mensagem d’Ele destinava-se a Israel, sem dúvida, onde a dureza da Lei e o orgulho preponderavam; mas o Seu Reino abrangeria a Terra toda. . .
Desejava, através daquele diálogo, lecionar o poder da humildade, como ensinamento que se insculpisse no Espírito dos discípulos.
— Oh! Mulher, Grande é a tua fé! Seja isso feito para contigo, como tu desejas.
Era estranhável a atitude inicial do Justo, ignorando a aflição de quem lhe rogava socorro. Naquele gesto de aparente indiferença, Ele anelava tocar o coração dos amigos que, todavia, não intercederam a favor da sofredora, hábito infeliz, aliás, que pareciam cultivar.
A doçura, porém, a fraqueza e a desproteção daquela mãe tocaram o Senhor.
Exalando misericórdia, o Rabi, a distância, expulsou o Espírito obsessor da jovem mediunizada em processo de longo curso e prosseguiu impertérrito.
O exemplo, que também se encontra na cura a distância, dispensada ao filho do Centurião, é alimento para todos os povos, para os homens do futuro.
A palavra forte e a vivência austera de Jesus penetrariam as multidões de todas as épocas não felicitadas, como Israel, pela Sua presença. Os judeus, no entanto, que O não receberam, por sua vez experimentariam longas etapas de provações rudes como efeito da própria insanidade — látego de fogo na consciência a fazê-los expungir.
E chegando a casa, a mulher, encontrou refeita, em gozo de saúde, a filha amada.
A semente da esperança que o Rabi depositou no seu coração transformou-se em lâmpada radiosa que a clareou intimamente a vida inteira.