O velho operário, em companhia da filha, identificou a placa brilhante no saguão do enorme edifício e galgou a escada, de olhos serenos e confiantes. Depois de bater respeitosamente à porta, atendido por distinto cavalheiro, apresentou a jovem enferma e explicou:
— Doutor, minha filha há muito vem apresentando sintomas perturbadores. Frequentemente apresenta-se tomada por forças estranhas, absolutamente incompreensíveis. Parece alucinada e, no entanto, patenteia o dom da adivinhação, com elementos irrefutáveis. Uma carta, um cofre fechado, não lhe oferecem segredos. Já procuramos ouvir alguns médicos, que, afinal de contas, apenas me agravaram as preocupações. Soube, porém, que o senhor é espiritista, e como já temos recorrido aos préstimos de alguns vizinhos, estou certo de que a sua ciência nos dará a solução necessária.
O Dr. Matoso Dupont fixou o olhar percuciente na doentinha e apressou-se a esclarecer:
— Não sou propriamente espiritista, mas um observador dos fenômenos comuns; sou metapsiquista…
O consulente, naturalmente acanhado, guardou silêncio, enquanto o médico atacava a enferma numa saraivada de perguntas. E revelava, no olhar, a alegria do pescador quando fisga o peixe inocente, ou do experimentador que encontra uma cobaia preciosa. O pai acompanhava a cena com interesse. O Dr. Dupont esfregava as mãos, visivelmente surpreendido. Após cerrado interrogatório, procedeu a experiências com resultados positivos. Objetos, cartas, livros, foram trazidos à prova. O médico não dissimulava o enorme assombro.
Homem do trabalho e de horas contadas, o velho operário resolveu intervir e perguntou, respeitoso:
— Doutor, que me diz o senhor? Que conselhos nos dá para o caso?
O profissional coçou o queixo e falou solene:
— Sem dúvida, estamos diante de um caso espantoso de criptestesia pragmática.
O cliente esboçou um gesto de timidez, como que a desculpar-se da própria ignorância, e aventurou:
— Não poderá o senhor fornecer-me esclarecimentos mais simples? Leio muito pouco, o trabalho não me dá folgas…
— Trata-se de manifestação metapsíquica.
O pobre homem, diante da complicada terminologia científica, mostrou-se algo desanimado e pediu licença para sair, a fim de trazer um amigo ao consultório. O Valdemar, rapaz inteligente, versado no Espiritismo e empregado na farmácia próxima, ajudá-lo-ia a interpretar os pareceres médicos. Fora tão difícil conseguir ensejo para a consulta ao Dr. Matoso; tão elevado o preço da mesma, que o amoroso pai não hesitou. Não deveria perder a oportunidade. Precisava recolher as opiniões da Ciência. O ensejo era único.
Daí a minutos, regressava ao gabinete, com o amigo prestativo e diligente. O doutor compreendeu as preocupações paternais e passou a esclarecer o assunto com todas as cores científicas da respectiva técnica. Referiu-se aos investigadores do Psiquismo mundialmente consagrados; às experiências europeias; falou do ectoplasma, do magnetismo, do subconsciente desconhecido, dos distúrbios orgânicos, rodando pela neurologia, pela fisiologia, pela psicologia experimental.
Enquanto a jovem conservava uma expressão de idiotismo e o genitor esboçava gestos de justificável assombro, Valdemar aguardou a pausa do falastrão e ponderou com inteligência:
— Doutor, estou convencido de que o senhor tem suas razões; mas, não concordará que estes fenômenos são velhos quanto o mundo? Não admite que o caso da pequena se resuma em simples manifestações de mediunidade?
— Ah! naturalmente deseja aludir às novas descobertas — ao sexto sentido —, tornou o esculápio como quem necessita fazer uma retificação indispensável.
— Sim, pode ser, referindo-nos à Ciência atual — esclareceu o rapaz serenamente —, todavia, há milhares de anos a Índia e o Egito conheciam os iniciados, os judeus reverenciavam os profetas. Há vinte séculos o mundo assistiu à iluminação do Pentecostes. Não concorda que todas estas manifestações sejam formas diversas da revelação espiritual, espalhando no mundo a luz de Deus?
— Ora — retrucou o metapsiquista contrafeito —, que motivo nos levaria a meter a Religião em problemas desta natureza?
E a palestra animou-se vivamente. Valdemar prosseguia tranquilo, enquanto o Dr. Matoso atingia o auge da exaltação. O primeiro defendia a lógica da fé raciocinada; o segundo acusava os espiritistas de beócios, doentes, histéricos, fanáticos.
Ao terminar a discussão, o velho retirou-se desalentado, levando a menina enferma e resolvido a contentar-se com o processo lento da cura, mediante as instruções evangélicas da água efluviada e dos passes ao alcance da família, no grupo dos vizinhos.
Tal ocorrência constituía, porém, pequenina amostra do investigador renitente. O Dr. Matoso não saía nunca dos seus domínios de experimentador. Visitava núcleos doutrinários, atormentava os médiuns; fazia questão de exibir o cartaz de inimigo declarado de todas as expressões religiosas. Afirmando-se discípulo de Richet, adotava a dúvida com atitude preceitual. Em qualquer observação, preocupava-o a possibilidade da fraude e, fosse onde fosse, preferia comentar a exploração grosseira, o charlatanismo, a má-fé. A sociedade o conceituava entre as grandes inteligências do meio e ninguém lhe negava títulos de competência. Entretanto, à força de contato com os detalhes anatômicos, ele enrijara as fibras emotivas. Mero caçador de fenômenos, tratava as mais belas sugestões da Espiritualidade à maneira de fatos banais, sem maior significação. Não suportava as reuniões onde se fizessem rogativas a Deus, e aos companheiros de índole religiosa preferia os amigos levianos, prontos ao comentário científico, entre um sorriso de mulher sem escrúpulos e um trago de vinho capitoso.
Nada obstante, em todos os acontecimentos os homens dispõem o jogo da vida, mas Deus é que distribui as cartas. Ninguém vive sem contas, indefinidamente. Chegou, afinal, o dia em que o Dr. Matoso foi compelido a recolher a bagagem material ao cofre vasto da Terra, entrando em nova modalidade de existência. Achava-se, porém, atônito, estarrecido. Em vez de experimentar, sentia-se agora objeto de observação, por parte de gigantes ocultos e intangíveis. Ele que tanto falara de ectoplasma e subconsciente, via formas indescritíveis, completamente estranhas às suas tabelas de classificação. Aqueles fantasmas que despertavam tamanho sensacionalismo, nas sessões de materialização, passavam-lhe ao lado, sorridentes e tranquilos, sem lhe dispensarem a mínima atenção. Estaria louco? Que forças misteriosas o haveriam arrebatado àquela região sombria e desconhecida? Perseguira materiais de observação durante a existência inteira, dilacerara instrumentos da verdade, procurara fraudes e proclamara desafios e, agora, ali, sem qualquer intermediário, verificava ele próprio a multiformidade de revelações da vida. Tentava manter a atitude do experimentador que dispensa a cooperação religiosa, mas os reinos psíquicos multiplicavam-se, os materiais novos excediam a qualquer possibilidade de exame. Sozinho, sem o estímulo de companheiros com quem pudesse trocar impressões, o antigo investigador experimentou enorme cansaço. Ele que sempre fora avesso a orações andava desejoso de recolher-se ao mundo íntimo, a fim de solicitar a contribuição do Mais Alto. No fundo, admitia que semelhante atitude representava capitulação; entretanto, a seu ver, não rogaria à maneira de outros crentes. Formularia simplesmente um pedido de auxílio; mas… a quem? Na secura das experimentações do mundo, jamais cultivara afeições quaisquer. Agravando-se-lhe, porém, as necessidades no meio de situações que não conseguia definir nem compreender, sentiu-se fraco e implorou a Deus lhe concedesse luz para os enigmas que o cercavam.
Não demorou muito e um orientador generoso fez-se visível, atendendo a súplica:
— Amorável benfeitor — solicitou humilhado —, por quem sois, não me negueis mão amiga no labirinto em que me encontro.
— Escuta, Matoso — respondeu o interlocutor com intimidade —, que fizeste de tanto material precioso concedido à tua alma no mundo?
— A Ciência transformou-me num investigador inconsciente — explicou, evidenciando grande embaraço.
— Não desejo saber que títulos gratuitos te proporcionou a Ciência convencionalista e sim o que fizeste da cultura enorme, e como usaste os patrimônios vultosos que te foram conferidos na Terra.
O interpelado impressionou-se com a profunda observação e, ganhando alguma coragem, relacionou as antigas inquietações, aludindo aos grandes cientistas do século e às rigorosas preocupações que adotara pessoalmente nas pesquisas efetuadas.
Ao termo da longa exposição, o orientador espiritual falou, bondosamente:
— Falas de Crookes, de Flournoy, de De Rochas, de Lombroso, de Richet, mas esqueces que precisas de construção própria. Tanto vacilaste no Planeta, que terminaste a última experiência duvidando de ti mesmo. Quando procuravas ansiosamente a fraude nos outros, não vias que fraudavas a própria alma. Desafiaste médiuns e trabalhadores; entretanto, não atendeste aos desafios que a luta nobre te facultou em cada dia terreno.
— Não, não é bem isto — contestou Dupont, buscando justificar-se —; o que nunca pude tolerar foi a manifestação religiosa.
— Por quê? Detestavas a Religião, malsinavas a prece, zombavas da fé; contudo, em que lugar do Universo a vida não é ato religioso? Considerando-se o laço imperecível que une o Criador às criaturas e às coisas do caminho evolutivo, tudo é permuta e atividade divina. O sapo coaxando no pântano, a estrela enfeitando o céu no deserto, o diamante oculto nas pedras abandonadas não estão à procura de admiração humana, mas de identificação com a Divindade. Anotaste, pesaste, classificaste como simples escravo da estatística, mas a cultura espiritual não se constitui apenas de terminologia técnica. A cor é aspecto, nunca o objeto em si mesmo. É incontestável que sabedoria e amor representam as asas sem as quais é impossível ascender aos cumes da perfeição eterna; mas, sabedoria não significa cristalização no círculo individual, antes é penetração no país infinito da verdade divina, cuja luz palpita no maravilhoso plano de unidade, através de todos os seres. Não te detenhas no exterior. Busca o teu mundo de belezas ignoradas e observa a ti mesmo. Meu amigo, meu amigo, Deus é Amor, Vida, Suprema Luz!…
Nesse momento, o benfeitor desapareceu numa torrente de claridades infindas. Sem explicar o que se passara, Dupont achou-se de joelhos, face lavada em lágrimas abundantes. O cérebro febril banhava-se em energias desconhecidas. Pela primeira vez, sentia a grandeza divina e parecia constituir, ele próprio, harmoniosa nota de amor no cântico universal. Por quanto tempo demorou em adoração indefinível? Não poderia responder.
Quando, porém, examinou a necessidade de integração no trabalho redentor, uma voz carinhosa e familiar lhe timbrou brandamente aos ouvidos:
— Vamos, meu filho! o Pai jamais regateia a oportunidade de retificação e serviço. Voltemos para o mundo. Tu que observaste tanto os semelhantes, sem finalidade justa, regressarás agora a fim de seres observado.