Quem poderia definir a perturbação do desventurado Léo Marcondes, confinado em tenebroso círculo de angústia? Seria difícil relacionar-lhe as lágrimas e padecimentos. Comerciante abastado, no Rio de Janeiro, nos derradeiros anos do século XIX, não pudera furtar-se ao portal escuro do suicídio. Temperamento fogoso e personalista, nunca se acomodara ao benefício da fé religiosa e, atirando-se às teorias do materialismo demolidor, dera-se aos mais estranhos distúrbios ideológicos, como quem se perde na sombra, caminhando a esmo pela noite a dentro. Sempre fizera questão de espalhar os princípios dissolventes. Em casa, na rua, nos cafés, tornara-se proverbial sua atitude iconoclasta e desrespeitosa. Saturado de conceitos dos filósofos pessimistas, destacava-se-lhe a palavra pelas afirmativas ingratas e impróprias, a respeito da Providência Divina. Longe de suspeitar dos escritores cépticos, verdadeiros doentes intelectuais interessados em seduzir atenções alheias ao catre de ideias enfermiças, internava-se, sem maior exame, no cipoal das mentiras brilhantes. Ao seu ver, o mundo era vasta casa de miséria e trevas sem limites. À menor contradita, desmanchava-se ele em considerações amargas e venenosas:
— Valores na Terra? Onde o desgraçado que poderia manter a perigosa ilusão? Não tivessem qualquer dúvida. Se existisse um Criador — e acentuava essas palavras ironicamente — deveria ser expulso da Natureza. Que viam na Humanidade infeliz senão loucura, desolação e sombra impenetrável? Tudo caminhava para a morte, para a eterna extinção. Flores apodrecidas disfarçam os túmulos, que escarnecem da esperança mais pura. A carne moça era fantasia ocultando caveiras de amanhã, nos mais belos rostos. Vemos cadáveres em toda a parte. Raia o dia para transformar-se em noite; cresce a árvore por sepultar-se na terra, ou para queimar-se em terrível desolação. Que é nosso destino senão a cópia burlesca desses movimentos viciosos e destruidores? Que seria a alegria humana senão a luz frágil que se apaga no vendaval das trevas? E que seria a existência senão jornada angustiosa para o continente de cinzas sepulcrais?
Era inútil qualquer esforço por subtraí-lo de semelhante estado mental. Léo reduzira-se à condição de cego voluntário, segregado em sombras, apesar da alvorada permanente de luz. Desprevenido de socorro íntimo, em vista da situação de miséria moral a que se votara, num momento de excitação profunda cometeu incompreensível homicídio, eliminando antigo companheiro de infância. Dominado de cegueira fatal, não resistiu ao remorso incoercível e suicidou-se pouco tempo depois.
Anos amargosos e escuros abateram-se-lhe sobre o espírito desventurado. Embalde chamava familiares queridos, invocando auxílio espiritual. Tinha a impressão de neblinas geladas cercando-lhe o caminho, no meio de trevas indevassáveis, caindo… caindo sempre.
No círculo de angústias em que se via algemado, recordava a Terra, experimentando revolta infinita. Atribuía ao Planeta a causa de todos os fracassos, a fonte de todas as amarguras.
Na sua desdita, jamais pôde, entretanto, esquecer a esposa, alma simples e generosa, inteiramente consagrada ao bem-estar dele, nos mínimos incidentes da jornada humana. Lembrava-lhe a figura humilde e meiga, com verdadeiros transportes de amor e reconhecimento. Essa recordação se convertera na única estrela a lhe brilhar no abismo de sombras indefiníveis.
Mais de cinquenta anos assim decorreram, de padecimentos incalculáveis, quando o mísero foi convocado a reorganizar caminhos, referentemente ao futuro.
Enfrentando o sábio instrutor que o atendia afetuoso, o infeliz exclamava, angustiado:
— Conscientemente, devo dizer que nunca fui homem perverso. A Terra, todavia, deprimiu-me e inutilizou minhas forças, com fatalidades tremendas e paisagens tenebrosas!
— Cala-te, amigo! — observou a entidade generosa — a queixa no serviço divino nem sempre será rogativa honesta. Por vezes, não passa de manifestação de revolta ou indolência de nossa escassa compreensão do dever sagrado. Aqui estou para atender-te, à face do porvir.
— Abomino a Terra!… — soluçou o desventurado.
— Esclarece teus projetos quanto às oportunidades futuras. Não nos percamos em lamentos ou palavras ociosas.
Após meditar longos minutos; Léo interrogou hesitante:
— Magnânimo instrutor, poderei reencontrar a inolvidável companheira de luta?
— Por que não? Deus nunca nos fechou a porta da bondade infinita.
— Oh! — gemeu o infeliz, quase esmagado por um raio de júbilo — concedei-me a possibilidade de procurá-la no Paraíso que terá merecido pela imensa virtude; dai-me a ventura de esquecer, por momentos, os quadros escuros da Terra, a fim de acariciar a ideia do reencontro… Em que estrela maravilhosa permanecerá minha santa?
O venerável orientador contemplou-o, benigno, e explicou intencionalmente:
— Tua companheira se encontra numa escola de Esperança.
— Ah! informai-me relativamente às grandezas dessa paragem sublime! Poderei penetrar-lhe as estradas formosas?
Depois de um gesto afirmativo, que o desventurado recebeu com transportes de alegria, continuou o bondoso mentor:
— Trata-se de primorosa região de Esperança, onde Nosso Pai tudo preparou, facilitando a edificação das criaturas. Dias deslumbrantes enfeitam-lhe continentes e mares, repletos de vida sublime e vitoriosa. Árvores amigas lá estendem seus ramos pejados de frutos suculentos e saborosos. Água divina corre gratuitamente de mananciais cantantes, e na atmosfera embaladora a claridade e a melodia não encontram obstáculos… Lá se reveste a alma de fluidos adequados ao trabalho, qual operário a receber o traje de serviço, segundo as próprias necessidades, sem preocupação de retribuir a mão dadivosa e oculta que lhe concede o benefício. No aprendizado de todos os dias, ouvem-se risos infantis, observam-se esperanças da juventude, recebem-se bênçãos de anciães coroados de alvinitentes lírios. São manifestações sagradas de companheiros que ali permanecem, prosseguindo na grande romagem para Deus, cada qual representando nota de amor e trabalho no cântico universal…
Em razão da pausa mais ou menos longa que o mentor interpusera nas considerações, Marcondes, enlevado, solicitou, a demonstrar novo brilho nos olhos:
— Falai, falai ainda desse Plano prodigioso!…
— As noites nessa Esfera — continuou o benfeitor — são cariciosas estações, destinadas à prece e ao repouso. Astros luminosos povoam o céu, chamando os Espíritos a meditações divinas. Constelações fulgurantes passam no infinito em sublime silêncio. Luzes brandas dão novo colorido às paisagens. Ainda há, por lá, pobres e sofredores, pois que se trata duma escola de Esperança; ninguém, contudo, está abandonado por Deus, que manda distribuir as lições segundo as necessidades dos filhos bem-amados… Tudo ali é promessa de vida, caminhos de realização, oportunidades sacrossantas!…
— Benfeitor inesquecível — rogou Léo Marcondes, agora sem lágrimas —, poderei, ao menos, visitar esse Plano divino?
— Não somente visitá-lo como também procurar a companheira, em seus caminhos, e unir-se novamente a ela, no trabalho de Deus, na elevação e resgate justo — esclareceu o instrutor, mostrando carinhoso sorriso.
O mísero não sabia traduzir o próprio júbilo.
Tomando-lhe a destra, o amigo espiritual guiou-o carinhosamente através de sombras e abismos. Daí a algum tempo, divisavam larga esfera que, embora sem claridade própria, se movimentava num oceano de luz. A essa altura, Marcondes prorrompeu em gritos de alegria:
— Salve planeta celeste, santuário de vida, celeiro das bênçãos de Deus!…
— Definiste com sabedoria — acrescentou o mentor sorridente.
Mais alguns minutos e penetraram numa cidade alegre e bulhenta. Observou o pobre Léo que o local não lhe era de todo desconhecido. Os morros, o casario, o mar, identificavam a paisagem. Desapontado, hesitante, premiu a mão do generoso amigo e indagou:
— Será que estamos na Terra? Não é esta cidade o Rio de Janeiro?
— Justamente.
— Nunca observei antes tanta magnificência e beleza!…
— Eu bem o sabia — disse o mentor bondosamente —, mas é que nunca procuraste a escola de Esperança que o Pai oferece às criaturas neste plano. Escutaste os filósofos pessimistas, mas foste surdo aos cânticos da vida; observaste as letras envenenadas que embriagam o cérebro dos homens de teorias aviltantes, mas foste cego ao traço das charruas no solo. Porque preferias a indolência das almas rebeldes, o frio te incomodava, a chuva aborrecia, o calor sufocava, o trabalho constituía angústia constante. Em vez de localizar os próprios males, agradava-te identificar os males alheios. Voluntariamente enceguecido às lições diárias, tropeçaste no crime e na amargura; guardavas conceito irônico para o ignorante, repreensões ásperas para o infeliz, olvidando a disciplina de ti mesmo. À força de viver na contemplação dos defeitos e cicatrizes do próximo, nada mais viste em torno do coração, além de ruínas e trevas. Deus, porém, é infinitamente bom e te concede nova oportunidade de elevação no caminho da vida. Outras experiências te aguardam nos dias vindouros. Renascerás no mesmo lugar onde levantaste, inadvertidamente, o braço homicida. Transforma as algemas pesadas em laços de amor. Procura a companheira abnegada, que te seguirá os passos amorosamente, na senda redentora. Não olhes para trás. Acende a lâmpada generosa da fé e não temas o assédio das sombras.
Enquanto o interpelado o observava, reconhecidamente, surpreendido e silencioso, o magnânimo instrutor concluiu batendo-lhe afetuosamente no ombro:
— Vai, Marcondes! recomeça a viagem, toma novamente o vagão da experiência humana, mas não atires o corpo pela janela do comboio em movimento e espera, resignado, a estação do destino.
O ex-comerciante agradeceu num gesto mudo.
Enquanto o mentor solícito voltava às esferas elevadas, Léo Marcondes era conduzido por outras mãos a uma singela choupana, modestamente erguida num dos bairros mais pobres.