Reportagens de além-túmulo

Capítulo XVI

Caridade e desenvolvimento



Num grupo de inquietas senhoras, após a reunião em que se haviam comunicado diversos Espíritos amigos, estalavam ruidosos comentários.

A palestra não interessava à vida alheia, segundo antiga acusação lançada às filhas de Eva; contudo, a nota dominante era a leviandade.

Falava-se entusiasticamente a respeito da prática e propaganda dos postulados espiritistas. Umas alegavam perseguições do Invisível, outras aludiam às aventuras dos maridos inconstantes, atribuindo as penas domésticas à influência dos maus Espíritos. Dentre todas, destacava-se a senhora Laurentina Cardoso pelo fervor sincero que lhe brilhava nos olhos. Divergindo da maioria, seus pareceres demonstravam singular interesse no assunto.

— Sinto-me transportada a região desconhecida dirigia-se, impressionada, à diretora da feminil assembleia —, o mundo invisível nos arrebata à compreensão nova. Quão enorme é o serviço do bem a realizar!

E cruzando as mãos no peito, gesto que lhe era característico em instantes de profunda impressão, continuava, bondosa:

— Que fazer para cooperar no trabalho sublime? Quanto desejava ser útil aos infelizes da esfera espiritual!…

— Sim, minha filha — explicava a presidente —, é preciso desenvolver-se, aproveitar suas faculdades no esclarecimento de nossos irmãos atrasados. Seja atenta ao dever e alcançará os mais nobres valores.

— Não poderia a senhora consultar os instrutores espirituais nesse sentido? — indagou dona Laurentina, ansiosa.

— Perfeitamente.

E, decorridos alguns dias, escrevia-lhe solícito o orientador da reunião:

— Minha irmã, Deus te abençoe o propósito de fraternidade e confiança. Continua devotada ao bem do próximo. A caridade é luminoso caminho de redenção. Não a esqueças na experiência humana e, a fim de estenderes a divina virtude, não desprezes o desenvolvimento próprio. Companheiros abnegados, no plano invisível, seguirão teus passos na edificação de ti mesma. Ora, vigia, trabalha, espera e sobretudo confia em Deus.

A Srª Cardoso estava radiante. Figurou-se-lhe a pequenina mensagem verdadeiro bilhete de luz, habilitando-a a conviver com os gênios celestiais. Leu, releu, dobrou a folha minúscula, guardando-a na bolsa de passeio; enxugou as lágrimas que a emotividade lhe trouxera aos olhos e agradeceu a dádiva jubilosamente.

Desde esse dia, transformou-se o lar de Joaquim Oliveira Cardoso. O marido de dona Laurentina, homem de negócios ativos nos círculos industriais e financeiros, notou a mudança, assaz surpreendido. A esposa dedicada e carinhosa multiplicava os pedidos de licença para comparecer às reuniões variadas e múltiplas, destinadas a experimentação mediúnica. Avolumando-se dessarte os pedidos, Joaquim lhe fez ampla concessão a tal respeito. A companheira nunca o desgostara em qualquer circunstância. Humilde e abnegada, auxiliara-o na construção da fortuna sólida. Jamais demonstrara a vaidade ridícula dos novos ricos. Sempre se conduzira à altura da sua expectativa de homem consagrado à cultura intelectual e às boas maneiras. Desinteressada de exibições sociais, distante do convencionalismo balofo, dividia a existência com ele e os quatro filhinhos. Por que lhe impor restrições ingratas? Não compreendia aquele Espiritismo que se instalara na mente da esposa, mas não encontrava razão para proibir-lhe manifestações de fé. Além disso, Laurentina se entregava a semelhante movimento em companhia de relações respeitáveis. Esses raciocínios o tranquilizavam, mas, no entanto, os dias se incumbiram de lhe carrear ao cérebro novas preocupações.

Laurentina parecia obcecada. Não lhe interessava a mudança de cortinas, a limpeza dos quadros, a proteção dos livros prediletos. Aranhas andavam à solta, os espanadores pareciam aposentados. O chefe da casa duplicou o número de criadas, temendo situações mais difíceis.

Decorreram um, dois, três anos. Preocupava-se agora o capitalista, não só com a indiferença da esposa, no tocante ao ambiente doméstico, como também com a conduta maternal. É que, ao nascer o quinto filho, Laurentina requisitou o concurso da ama de leite. Alegando falta de tempo, o petiz foi entregue aos cuidados de uma pobre senhora que se prontificou ao serviço, mediante remuneração adequada. O marido, todavia, atendeu ao problema, fundamente amargurado. Servidores a mais ou a menos não lhe alteravam o programa econômico, mas a disposição da companheira desgostava-o. Suportou, contudo, a situação, sem queixas que a pudessem magoar.

O panorama caseiro prosseguia sem modificações, quando o sexto filhinho alegrou o casal. Decorridos dois meses em que a ama regressara ao serviço ativo, Joaquim valeu-se de momento íntimo, na hora da refeição, e falou à esposa, delicadamente:

— Tens observado a saúde do pequenino? Não te parece disposto a anemia profunda?

Dona Laurentina não pôde disfarçar o desapontamento ante a observação inesperada, e explicou:

— Ainda ontem ponderei a conveniência de levá-lo ao médico.

Cardoso fez o gesto de quem não deve adiar soluções justas e acrescentou:

— Creio, Laurentina, que o caso não se prende a consultório, mas propriamente ao lar.

Ela empalideceu e o marido prosseguiu:

— Sinto ferir-te a sensibilidade, mas hás de concordar que o leite materno, sempre que possível, não deve ser negado à criança. Reconheço, todavia, que multiplicaste talvez excessivamente as obrigações sociais. Tão ligada aos filhinhos, noutro tempo, não hesitas agora em voltar sempre tarde, confiando-os quase absolutamente às criadas. Não firo o assunto no propósito de repreender; tuas companheiras são respeitabilíssimas; entretanto…

— É que desconheces o serviço da caridade, Joaquim — atalhou melindrada com a delicada repreensão diante dos filhos —, minha ausência de casa obedece a trabalhos importantes, com que procuro atender aos bons Espíritos.

A pequena Luísa, filhinha do casal, com a gracilidade espontânea dos seis anos, obtemperou com interesse e vivacidade:

— Papai, esses Espíritos devem ser maus, porque não deixam a mamãe voltar cedo. Sinto tanta falta dela!

O chefe da família sorriu significativamente e retrucou:

— Talvez tenhas razão, minha filha. Esses Espíritos podem ser bons para toda gente, menos para nós.

Dona Laurentina esforçou-se para que as lágrimas não caíssem dos olhos, ali mesmo, e retirou-se desolada ao seu aposento. A pobre senhora se desfez em pranto amargo. Sentia-se vítima de angustiosa incompreensão. Não atendia a serviços de caridade? Não tentava desenvolver faculdades mediúnicas por consagrá-las ao alívio dos sofredores? Nessa noite, porém, esquivou-se à sessão costumeira. Precisava orar, meditar, ensimesmar-se. Rogou fervorosamente a Jesus lhe permitisse receber inspirações da Verdade. E, com efeito, sonhou que se aproximava de amplo e luminoso recinto, onde pontificava generosa entidade a serviço do bem. Guardava, por isso, a impressão de haver encontrado um anjo de Deus. Ajoelhou-se aflita e confiou-lhe as mágoas da alma sensível e afetuosa. Não acusava o marido nem se queixava dos filhinhos, mas pedia socorro para que lhe compreendessem o intuito. Ao fim de confidências angustiosas, o amigo afagou-lhe a fronte e explicou:

— Volta ao trabalho, Laurentina, e não te percas em lágrimas injustas. O companheiro é digno e bom, os filhinhos são flores do coração. Atende ao dever, minha amiga.

A interpelada quedara perplexa. Pedia socorro e recebia conselhos? Sentindo-se incompreendida, voltou a dizer:

— Rogo, por amor de Deus, auxiliardes meu esposo, no concernente às obrigações doutrinárias.

— Joaquim não as tem esquecido — esclareceu o orientador. — De há muitos anos se vem ele revelando mordomo fiel. Responsável por numerosas famílias de empregados que o estimam, trata os interesses de todos com justiça e honestidade. Não o deixes sem amparo afetivo, em tarefa tão grave. Porque não atenda diariamente a problemas de ordem religiosa, no que toca a letras e cerimônias, não quer dizer que permaneça desamparado de Deus. Entende-se ele com o Pai, no altar da consciência reta, quando organiza os serviços de cada dia, proporcionando trabalho e remuneração aos operários do seu círculo, segundo os méritos e necessidades de cada um.

— Não estou eu, porém, ao serviço da caridade? pergunta Dona Laurentina, extremamente surpreendida.

— Sem dúvida, e por isso Jesus não te desampara a alma sincera. Entretanto, existem problemas que não deveriam passar despercebidos. Já observaste que, antes da caridade, permanece a primeira caridade?

Dona Laurentina esboçou o gesto de quem interroga sem palavras.

— A primeira caridade da dona de casa — continuou o mentor delicadamente — é atender ao lar; a da esposa é ajudar o companheiro; a da mãe é amamentar e nortear os filhos. Sem isso, o trabalho do bem não seria completo.

Fundamente admirada e sem ocultar o desapontamento que lhe ia nalma, a senhora Cardoso objetou:

— Mas o próprio orientador de nossas reuniões me aconselhou o desenvolvimento, sempre desejei atender a benefício dos que sofrem nas trevas e, por isso, tenho tentado o desabrochar de minhas faculdades mediúnicas…

— Quando o amigo espiritual te aconselhou desenvolvimento, procedeu sabiamente. Todos precisamos desenvolver sentimentos nobres, compreensões justas, noções santificantes. Quanto a faculdades psíquicas, é indispensável considerar que toda criatura as possui, em maior ou menor grau. Há, sim, trabalhadores com tarefas definidas, nesse particular; no entanto, não podem fugir à espontaneidade, como não escapaste à missão de mãe. E olvidaste, porventura, que ser mãe é ser médium da vida? Ignoras que o lar constitui sessão permanente, onde a doutrinação e a caridade com os filhos pedem, às vezes, sacrifício secular? Não abandones a cooperação de amor junto às amigas do mundo, prossegue servindo aos semelhantes, dentro das possibilidades justas, alivia o sofrimento dos que choram no Plano invisível, mas não esqueças a reunião permanente da família, onde tens evangelizações e testemunhos, a todos os minutos do dia e da noite. Para poder cooperar nos campos imensos da Esfera visível e invisível é preciso saber cultivar o canteiro da obrigação própria. Volta, minha amiga, e que Deus te abençoe.

Dona Laurentina acordou assombrada. Radiosa alegria estampara-se-lhe no semblante. Num transporte de júbilo contou ao marido a curiosa ocorrência.

Ele abraçou-a contente e exclamou:

— Agora, interessa-me de fato essa nobre doutrina. Nunca julguei que pudessem existir Espíritos tão sábios e tão bons.


(.Irmão X)