Nos derradeiros anos da existência, meu velho amigo Edmundo Figueiroa deixara-se absorver por incessante preocupação. Convencera-se da vizinhança da morte inelutável, desejava conformar-se, mas, doía-lhe fundo a ideia de ficarem a esposa e duas filhas relegadas ao torvelinho das lutas materiais.
Acumulara fortuna sólida, esforçara-se anos e anos por amealhar recursos financeiros, com vistas ao porvir, e conseguira vencer nesse capítulo da experiência terrestre; entretanto, era demasiado sensível para manter-se calmo nas circunstâncias difíceis. Profundamente aferrado ao ambiente doméstico, não sabia como afastar-se da convivência familiar. A enfermidade longa dispusera-o a meditações graves e tristes, e embora a companheira fosse pródiga em gentilezas, Figueiroa permanecia intimamente exasperado.
De quando em vez, o velho Noronha, veterano espiritista daquele remoto vilarejo nortista, vinha visitá-lo, interessado em esclarecê-lo.
— Edmundo — dizia solícito —, você deve convencer-se de que a decadência orgânica é caminho indicado a nós todos, neste mundo. Mais tarde ou mais cedo, precisamos desfazer laços, retificar atitudes espirituais. Que é o corpo senão a veste mutável da criatura imortal?
O doente fitava-o atencioso e replicava firme:
— Compreendo a lei inelutável que nos rege os destinos; entretanto, o pai dedicado não poderia abandonar o reduto doméstico sem resistência. Se somos compelidos à defesa contra os ladrões, por que não combater a morte? Não será ela, porventura, o derradeiro ladrão a roubar-nos a vida? Não duvido que as transformações constituam fatalidades necessárias; todavia, mesmo em espírito, continuarei ao lado de minha mulher e das filhas.
O Noronha sorria e explicava situações de além-túmulo, consoante as experiências de várias sessões de intercâmbio com o invisível. Edmundo escutava e respondia:
— Suas opiniões confortam-me sobremaneira, mas, de qualquer forma; quando me desprender do corpo, velarei no ambiente doméstico, enquanto o Criador me renovar energias. Não me abandonarei ao desapego em circunstância alguma.
O Noronha percebia que a conversa não deveria continuar naquele tom lúgubre e ensaiava outros temas.
Dona Rosalina, a esposa de Edmundo, relativamente moça ainda, aproximava-se e a conversa tornava-se menos triste. Falavam então de política, de costumes, de esperanças no futuro.
Os cuidados da companheira, porém, não logravam dilatar a resistência orgânica do enfermo querido e chegou o dia em que Edmundo Figueiroa se transportou para a outra margem da vida, sem qualquer bagagem material, tal como viera ao encarnar.
O quadro doméstico, nessa emergência dolorosa, não podia eximir-se aos gemidos, lágrimas, protestos de eterno amor e saudade eterna. As coroas preciosas que rodeavam o cadáver davam, à cena, triste tonalidade de apoteose fulgurante. Ninguém se referia a Edmundo senão com palavras santas e gestos solenes. Lembravam suas virtudes, os exemplos de carinho e solidariedade. Até os velhos inimigos da política municipal descobriam-lhe qualidades superiores, até então ignoradas.
Pouco depois dos funerais, Figueiroa acordou tomado de surpresas angustiosas. Compreendeu, sem dificuldade, a transformação operada. Atingira outra modalidade de vida, a morte atirara-o a plagas diferentes, mas o apego ao lar era tamanho que não pôde ouvir amigos velhos e atentos, à sua espera. A retina espiritual não conseguia fixar a nova paisagem afetiva, e como Deus permite experimentarmos nossos caprichos até o fim, desde que nosso impulso não afete a ordenação da Obra Divina, voltou Figueiroa imediatamente ao ninho inesquecível.
Espantado, surpreso, observou que ninguém dava conta de sua presença nos lugares queridos.
Era noite.
Sentou-se ao lado da esposa, que trajava então rigoroso luto, e fazia-lhe pedidos comoventes. Dona Rosalina, que tricotava tranquila, sentiu de repente a imaginação perturbada. Nada ouvia, mas sentia os pensamentos confusos, recordando o companheiro sob impulsos fortes. A certa altura, aumentaram as impressões psíquicas e ela gritou para o interior:
— Lilica! Lilica!…
Veio a filha mais velha, assustada, explicando-se a genitora aflita:
— Estou a lembrar-me excessivamente de teu pai… Tenho medo, muito medo!… Que será isto? E se Edmundo nos aparecesse?!…
— Que horror; mamãe!… — bradou a moça, muito pálida — tenho pavor do outro mundo!
Aproximou-se o pai, cheio de saudade, e quando lhe tomou as mãos esclarecendo que era o mesmo, que a morte do corpo não o transformara, a jovem alarmou-se e bradou:
— Sinto arrepios! estamos sós neste quarto… Vou chamar Titina e a empregada.
Saiu a correr, a fim de buscar a irmã e a cozinheira, e as horas restantes da noite registraram cenas penosas, no visível e no invisível. Figueiroa desenvolveu o máximo esforço para acomodá-las devidamente, e, no entanto, cada gesto de carinho era retribuído com observações rudes e ingratas. Rezaram em voz alta, cantaram hinos religiosos. A criada chegou a tranquilizar a patroa, asseverando que, se o patrão aparecesse, teria coragem de mandá-lo para o inferno, e essa declaração sossegou Dona Rosalina e as filhas, que se aquietaram devagarinho. Tão grande, todavia, foi o sofrimento moral de Edmundo que o desventurado se retirou a um recanto esquecido do quintal, para desabafar à vontade.
A luta, porém, começara e Figueiroa não era Espírito irresoluto. Longe de atender às inspirações que o bafejavam de Mais Alto, permaneceu firme no reduto doméstico. Dona Rosalina recorreu a missas, novenas e orações particulares. Contudo, cada noite lhe renovava os receios sem conta. Indignado com a situação, Edmundo insistiu energicamente, tentando senhorear o organismo da filha mais velha, ansioso de ministrar esclarecimentos à companheira. Mas a moça, exibindo singulares perturbações nervosas, apenas lhe assinalava a presença em gritos estentóricos:
— É meu pai, estou a vê-lo! Oh! Deus, tende piedade de nós!
E, olhar esgazeado de louca, prosseguia com acento impressionante:
— Ei-lo que chega!… Abraça-me, diz que não morreu… Tenho medo! Donde vens, papai? Não estás, porventura, com Deus? Ah! eu morro, eu morro!…
Dona Rosalina, aterrada, chama o médico, este ministra injeções violentas, aconselhando a internação em Casa de Saúde. Edmundo vê a oportunidade perdida. Nada mais conseguiu, senão prostrar a filhinha amada.
A situação complica-se cada vez mais. O médico, ativo, passou a frequentar-lhe a casa, e, quando soube que a viúva Figueiroa era proprietária de algumas centenas de milhar de cruzeiros, passou a fazer-lhe a corte escandalosamente.
Agravaram-se os padecimentos do atribulado Figueiroa. À maneira do homem invisível de Wells, o mísero passava o tempo a gritar, gesticulando a esmo, sem que ninguém o notasse em casa. Observando que o segundo matrimônio de Dona Rosalina era fato a consumar-se em breves dias, acentuou-se-lhe a desesperação. Voltou novamente a influenciar a filha, obrigando-a então a recolher-se ao leito, por mais de dois meses. Nas primeiras crises nervosas, alarmara-se extremamente o coração materno. Dona Rosalina chamou o padre para exorcizar, e como não bastasse a providência, requisitou as doutrinações do Noronha. Quanto mais se multiplicavam tais medidas, pior se tornava Edmundo, premido de inenarráveis angústias.
Chegado, porém, o dia das segundas núpcias da viúva Figueiroa, meu velho amigo Cantidiano procurou-me com intimação afetuosa:
— Humberto, providenciemos hoje nova situação para o Edmundo. Se as coisas continuarem no pé em que se encontram, não sei até onde poderá ir esse infeliz.
Pus-me à sua disposição e acercamo-nos do velho companheiro. Depois de enorme esforço, conseguimos que o desventurado nos avistasse. Estava em condições de meter pena ao coração mais endurecido. Quando deu conosco, correu ansioso ao nosso encontro. Abraçado a Cantidiano, seu antigo colega de letras primárias, desenrolou as desditas de dois anos de incompreensão. O amigo escutou-o pacientemente e falou bem-humorado:
— Mas, afinal, que queres? Rosalina casar-se-á hoje, pela segunda vez; tuas filhas terão padrasto; mas olha que há maridos e meninas sem-número, nestas condições.
— Sei, bem sei — replicou Edmundo, lacrimoso —, mas a ingrata da minha mulher teve coragem de chamar o sacerdote para excomungar-me e até o Noronha, veja bem, o Noronha veio doutrinar-me a seu chamado. Poderá você compreender tudo isto?
E, notando o sorriso manso de Cantidiano, acrescentava:
— Por que não se exorcizou o intruso nem se doutrinou a Rosalina? O tratante é o diabo em pessoa e minha mulher demonstrou coração endurecido e indiferente à minha dor. Ambos também são Espíritos e Espíritos excessivamente perturbados.
O companheiro abraçou-o e esclareceu:
— Resigna-te, Edmundo! A maioria dos nossos amados na Terra não nos podem compreender senão como fantasmas. Para eles, quem partiu pelo túnel da sepultura não ama, não vibra, não mais sente. Por enquanto, isso é fatalidade em nossos círculos evolutivos. Esperemos o crescimento mental das criaturas. É indispensável conformarmo-nos aos desígnios divinos.
O interpelado meditou aquelas ponderações sensatas e indagou:
— Como esclarecer Rosalina e explicar às filhinhas que eu não morri? Que fazer para demonstrar minha repugnância ao explorador que me invadiu a casa?
Cantidiano estreitou-o mais carinhosamente nos braços acolhedores e respondeu:
— Sossega! Irás conosco a Esferas diferentes, onde alcançarás trabalho redentor e vida nova. Quando os amados nos não podem entender, não seria justo recorrer à violência. É preciso entregá-los à vontade de Deus e partir em demanda de outros rumos. Teu apego ao lar resultou de louvável dedicação, que Deus abençoa. Tua casa, porém, não conseguiu continuar ao teu lado, após a morte do corpo. Dada essa impossibilidade, da qual não tens culpa, tua tarefa de esposo e pai está finda, para começar a de irmão, no “amai-vos uns aos outros”. (Jo
E, para finalizar mais simplesmente, acrescentou sorrindo:
— A mulher, o médico e as filhas serão protegidos de Deus, esclarecidos pela vida e, sobretudo, não te esqueças de que, hoje ou amanhã, eles serão igualmente fantasmas para os que ficarem no mundo.
Pela primeira vez, após a morte física, Edmundo Figueiroa sorriu e, sem mais dizer, seguiu-nos resoluto.