Reportagens de além-túmulo

Capítulo XXXV

Proselitismo de arrastamento



Virgulino Rocha era médium de qualidades apreciáveis no serviço do bem, no entanto, não conseguia furtar-se à preocupação de insistir com os amigos para que lhe seguissem os passos na interpretação religiosa.

Na oficina do ganha-pão, era trabalhador corretíssimo, considerando o caráter sagrado de suas responsabilidades e obrigações, mas, na vida comum, discutia a mais não poder, no intuito de intensificar o proselitismo. Quando surgiam conhecimentos novos, nas atividades diárias, revelava imediatamente a posição extremista. Tratava-se de alguém com opinião igual à dele, em matéria de fé? Estava disposto a todos os favores. Caso contrário, porém, Virgulino se retraía. Não odiava, mas também não dispensava às novas relações o menor interesse fraternal. Em se aproximando de alguém estranho aos seus pontos de vista, deixava-se dominar firmemente pelo espírito de discussão e disputa. Nesse capítulo, não esclarecia, nem convidava. Preferia arrastar. Em vão os amigos espirituais ofereciam-lhe novas diretrizes. Por vezes, contra todas as suas expectativas, o orientador invisível tomava-lhe a mão e escrevia sem rebuços:

“Virgulino, meu amigo, cada árvore tem condições diferentes para produzir. No que se refere à fé religiosa, procede à maneira do agricultor inteligente. Fornece adubos, protege as plantas tenras, não olvides a irrigação, mas não exijas fruto antes da época adequada. Será justo insistamos pela obtenção de pêssegos, de um pessegueiro mirrado, em terrenos desertos? Antes da colheita substanciosa e perfumada, não será razoável ministrar à planta elementos de vida, concedendo-se-lhe tempo indispensável, a fim de que se verifique a produção?”

Recebia o médium a mensagem sem esconder a própria admiração e inquiria naturalmente:

— Como pode ser isso? Replicava a entidade generosa:

“O nobre cumprimento do dever com Jesus e com os homens é a melhor pregação. O discípulo que execute semelhante programa é o cultivador previdente e amigo da Natureza.”

— Mas o Divino Mestre — observava Virgulino, contrafeito —, no próprio Evangelho, não determina que se deve pregar as verdades do Céu a todas as criaturas?

“Sim — tornava o benfeitor amorável —, mas o Cristo expôs o ensinamento sem violentar a ninguém, convidou ao banquete da Boa-Nova, mas não arrastou a quem quer que fosse. Além disso, deixou bem claro que a prédica eficiente não é problema de palavras apenas e sim de exemplificação. O aprendiz leal do Evangelho é uma carta viva do Mestre. Todos poderão ler-lhe os caracteres e afeiçoar a experiência própria pelo padrão da conduta dele. Por isso mesmo, o homem honesto e trabalhador, em todos os gestos do dia, está pregando a criaturas que o veem.”

O companheiro inquieto anotava ligeiramente as considerações recebidas, mas, certa vez, quando os conselhos se repetiam 5irgulino acentuou:

— Afinal de contas, não sei como proceder. Sinto-me animado das melhores intenções. Se encontrasse uma lição mais explícita ao menos…

O bondoso amigo espiritual não o deixou terminar e traçou no papel levemente: — “Tê-la-ás.”

O médium manifestou estranheza, em face da resposta lacônica e continuou nos mesmos hábitos, sem emprestar maior atenção ao prometido. Passou um ano e as observações criteriosas não se repetiram. Em razão disso, o nosso amigo prosseguia mais ardoroso no trabalho de arrastamento ao proselitismo doutrinário.

Os antigos conselhos já estavam quase integralmente esquecidos, quando Virgulino conseguiu o que representava para ele uma vitória de apreciável importância. O Jerônimo Castro, seu vizinho, com quem discutira durante dez anos, rendera-se-lhe às opiniões. A cura dum garoto doente inclinara-o ao Espiritismo, afinal. E o antigo companheiro, seguido da mulher e nove filhos, colocou-se à inteira disposição do médium, para o que desse e viesse, submetendo-se-lhe completamente aos pontos de vista. Virgulino não cabia em si de contentamento. Humilde operário em cidade grande, cooperando no seu grupo de realizações doutrinárias, ao lado de outros inúmeros trabalhadores, não saboreara ainda alegria igual àquela, trazendo às suas ideias mais de dez pessoas de uma só vez.

Não pudera perceber que semelhante satisfação era fogo-fátuo de vaidade mal dissimulada, e que o triunfo fictício era somente agravo de responsabilidades na bagagem de deveres a lhe pesarem nos ombros. Incapaz de compreender o que reputava agradável sucesso, dava largas ao júbilo infantil e comentava:

— Ah! o Jerônimo, vocês hão de ver. A Doutrina efetuou notável conquista. Recordemos que por trás de sua figura existe enorme bloco de criaturas a considerar. Os filhos, os parentes todos, enfim, serão chamados à luz da verdade e do bem!

E as esperanças lhe brilhavam nos olhos claros e ingênuos.

Em breve tempo, contudo, a realidade surgia diversamente. Jerônimo Castro e os seus não se interessaram pelos ensinamentos que a Doutrina lhes oferecia, qual manancial abundante e inestancável. Em vão, Virgulino Rocha trazia livros, anotações e esclarecimentos. Os neófitos não queriam saber senão de vantagens. Não desejavam certificar-se de que haviam chegado à zona espiritual de trabalho e realização pelo esforço individual, apenas saboreavam gostosamente a perspectiva de haverem encontrado Guias invisíveis para a solução de todos os problemas do caminho humano.

À noite, quando o médium visitava a família, a conversação era quase sempre a mesma:

— Jerônimo — indagava Virgulino, curioso —, leu você aquelas apreciações evangélicas que mandei?

— Ainda não consegui — esclarecia o vizinho —, não posso saber o que ocorre. Tão logo torno a leitura, sobrevém o sono imediatamente. As letras baralham-se diante dos meus olhos e as pálpebras se fecham, sem que eu possa atinar com a causa. Um verdadeiro fenômeno!

A essa altura, a esposa intervinha:

— Estou convicta de que se trata de influenciação dos maus Espíritos. Jerônimo não era assim. Antes das noções espiritistas, estava bem disposto para divertir-se, sem esquecer o cinema e o teatro. Mas agora…

E antes que a mulher terminasse, voltava Jerônimo exibindo expressão de vítima:

— São coisas da vida!…

Virgulino compreendia bem a ausência de atenção sincera e, tentando imprimir novo aspecto ao quadro de impressões, perguntava, afetuoso, à dona da casa:

— E a senhora, Dona Ernestina? qual é a sua opinião referente à leitura?

— Oh! quem me dera tempo ao menos para rezar respondia a interpelada, evidenciando dificuldades íntimas —, quanto mais para ler! Então o senhor julga que a casa me concede ocasião? Quando não é a cozinha que me requisita, é a sala que me pede atenção. Dum lado, está Jerônimo cheio de exigências; do outro, os meninos cheios de caprichos. Ah! estes pirralhos!… quanto sofrem as mães neste mundo! já não sei como resistir.

E cruzava os braços, dando mostras de esgotamento.

Ante a paisagem sentimental, repleta de sombras e obstáculos, com desapontamento ensaiava o médium outro gênero de conversação. Comentavam-se as notas do dia. Todos haviam lido os jornais. As crianças aproximavam-se. Estavam a par do suicídio na vizinhança, do crime que se verificara no bairro, relacionavam amarguras de famílias diversas. Conheciam detalhes ignorados do repórter sagaz. A palestra vibrava. Nem Jerônimo sentia sono, nem Dona Ernestina experimentava angústia de tempo. E Virgulino, computando a bagagem de suas boas intenções, retirava-se entristecido. A situação, todavia, apresentava complicações crescentes. Na residência dos Castros, Espiritismo era recurso para aplicações de menor esforço. Guardava-se mesmo a impressão de que a família vagava em plano de profunda indiferença, no que dizia respeito à fé religiosa. Se um filho se tornava desatento, pela ausência de governo doméstico, chamavam o Virgulino; se Jerônimo atritava com os chefes de serviço pela própria ociosidade, buscavam o Virgulino; se uma das jovens da casa se excedia nas festas sociais, recorriam ao Virgulino. O médium não ocultava o doloroso abatimento. Não se passava um dia sequer, sem que os supostos convertidos apresentassem indagações intempestivas e inconvenientes. Dona Ernestina queria conhecer a intenção dos noivos que surgiam para as filhas, esclarecer intrigas da vizinhança, assinalar as pessoas defeituosas que lhe frequentavam o ambiente doméstico, enquanto Jerônimo se interessava pelas promoções fáceis, pelos favores da sorte e condescendência dos seus chefes de serviço. De quando em quando, reclamavam do Rocha certas explicações, como se Virgulino fosse obrigado a se responsabilizar por todos os assuntos e questões da família. Por que o Espiritismo era doutrina tão perseguida das demais confissões religiosas? Por que se restringia às reuniões, sem espetáculos para demonstrações públicas? Segundo os Castros, as procissões e outros ajuntamentos populares faziam falta. Via-se o médium em apuros na elucidação daqueles Espíritos preguiçosos.

Decorreram quatro anos. A situação, entretanto, piorava gradativamente. Jerônimo e os seus começaram a buscar Virgulino em sua oficina de trabalho.

— Agora, não posso — explicava-se o rapaz muito pálido, tentando desvencilhar-se.

— Oh? não foi o senhor quem nos levou para a Doutrina? — interrogava a jovem mais inquieta.

E lá se ia o nosso amigo para atividades mediúnicas sem propósito sério. Finalmente, certo dia, o chefe imediato de trabalho chamou-o, com bondade, para admoestação justa:

— Virgulino — disse, em tom grave —, sempre estimei em você o auxiliar competente e honesto. Jamais interferi nas crenças religiosas de meus subordinados, mas a sua ficha de serviço vem sendo prejudicada pelas saídas sem justificação. Desde muitos meses, suas obrigações passaram a ser olvidadas, na maior parte do dia. Acredito chegado o tempo do reajuste. Sempre ensinei a todos que esta é uma casa de trabalho e realização.

O médium baixou os olhos, envergonhado, e respondeu tímido:

— O senhor tem razão.

Nessa noite chegou a casa, humilde, trancou-se no quarto e chorou, em longo desabafo. Implorou sinceramente o socorro dos amigos espirituais. Foi quando reapareceu o antigo benfeitor invisível, exclamando:

— Por que choras, meu amigo? Cada qual recebe o que pede. Não desejavas uma lição prática?

Respondeu o médium, mentalmente, em lágrimas:

— Sempre fiz a propaganda da Verdade com sincera intenção de fazer o bem.

— Sim, Virgulino — voltava a dizer a amorosa entidade —, ensinar exemplificando é seguir os passos do Cristo, mas arrastar é perigoso. Além disso, Nosso Pai Celestial concedeu pés a todos os homens. Não será indispensável que cada um caminhe por si mesmo? Quem espalha a verdade, amando como Jesus amou, edifica na vida eterna; mas quem arrasta uma criatura suportará naturalmente a carga pesada. Continua adubando e amparando as plantas que vicejam nos teus caminhos, mas não cometas o disparate de arrancá-las com violência!…

No dia seguinte, muito cedo, antes que Jerônimo se dirigisse à repartição, Virgulino bateu à porta dos Castros e, valendo-se do ensejo que reunia a família para o café matinal, explicou resoluto, em voz muito firme:

— Meus amigos, venho solicitar-lhes grande favor. Não me procurem, doravante, na oficina do meu ganha-pão. Tenho ordens terminantes para não relaxar o serviço.

E antes que os ouvintes voltassem a si do espanto enorme, prosseguiu serenamente:

— Não é só isso. Valho-me da oportunidade para apresentar-lhes minhas despedidas. Circunstâncias imperiosas obrigam-me a transferir a residência.

— Que é isso, homem? — respondeu Jerônimo, pasmado — não podemos dispensar-lhe a companhia.

— Não é possível! — exclamava a filha mais velha — que será de nós todos doravante? Não foi o senhor quem nos levou para a doutrina dos Espíritos?

O médium não se deixou impressionar e esclareceu:

— Desfaçamos equívocos enquanto é tempo. Não precisam manter determinadas atitudes religiosas tão somente para meu agrado. São livres para o caminho que melhor lhes pareça. Quanto a mim, devo conhecer minhas próprias necessidades. E nunca devemos esquecer que todos precisamos união cada vez mais intensa com o Cristo. Ele, sim, é a nossa companhia indispensável.

— Entretanto, são mais de quinze anos de vizinhança e convivência — aventurou Dona Ernestina, chorosa —, então isso não se levará em conta?

— Deus opera a mudança para o bem — esclareceu o visitante ao sopro de elevada inspiração.

E antes que os Castros acordassem do assombro, o vizinho esboçou um gesto de adeus e concluiu:

— Não tenho tempo a perder. Jesus os abençoe.

E depois de longas correrias pelos subúrbios 5irgulino Rocha contratou a cooperação de vários veículos de transporte e lá se foi com a família para os confins de Cascadura.


(.Irmão X)