O deserto da Judeia é uma área imensa de basalto calcinado pelo Sol ardente ou de rocha calcária em tonalidades pérola e marrom, onde a vida não frondeja, nem qualquer espécie de alegria permanece. Tudo é aridez e vazio, periodicamente varrido por ventos mornos e violentos, portadores da patética do desespero e da morte.
Antes de iniciar o Seus ministério Jesus o buscou, a fim de mergulhar no silêncio que a muitos aterroriza, mas que, para Ele, era pauta para que aparecesse notas melodiosas do Pensamento Divino, na ausência de ruídos, exceto o piar triste de alguma ave de rapina em voo longínquo, perscrutando algum despojo cadavérico, ou o sibilar do vento ligeiro.
No mais, é solidão profunda, é a visão das corcovas do dromedário de pedras lascadas que se superpõem, milenarmente cansadas do repouso a que foram destinadas.
Pela orla, à entrada onde começavam a escassear a vegetação e da vida, passam caravana que se beneficiam da sombra amiga de alguns sicômoros vestutos, de figueiras retorcidas pela idade, de tamareiras farfalhantes, de tamarindeiros em cujos ramos os pássaros gorjeiam e as flores miúdas desabrocham perfumes. . .
Uma fonte aqui e a terra levemente úmida mais adiante onde passou fraco o regato, vão cedendo lugar ao tormento do solo sem vida, às gramíneas escassas e crestadas sinalizando o ermo que se inicia até perder-se nos confins do mar morto.
Nada respira, nem se move, exceto nos infaustos momentos de tempestades de areia, eu arrancam do solo gemidos e gritaria infrene.
O deserto é sempre elegido pelos homens que necessitam de Deus, que se apartam momentaneamente dos outros homens, a fim de adquirirem forças para os suportar. Sem o encontro com Deus, não é possivel conviver com aqueles para quem têm a mensagem de amor e de vida.
Jesus busco o deserto para inebriar-se da Vida, e adaptado ao silêncio das pedras suportar o vozerio da ignorância humana vestida de vaidade cultural e presunção da exegese religiosa.
Mui provavelmente Jesus subira à região de Abara e Pela, onde se multiplicam as áreas desérticas em planaltos adustos e sucessivos, tombando para as regiões de Jacó e ampliando-se pelas montanhas de Peréia, aureoladas pelos elevados picos do Galaad.
Ali somente os espinhos pontiagudos oferecem pouso para os pés entre areias e seixos calcinados e tórridos.
Jesus refugiou-se em uma concha natural de pedra elevada e espraiou os olhos pela imensidão vazia assinalada pelas chapadas mortas e deixou-se perder em si mesmo.
Ficaram para trás Nazaré, os interesses da família, os hábitos que foram mantidos por quase três décadas, a simplicidade do lar e a singeleza dos Seus contemporâneos. Tudo isso tornou-se passado. A complexidade do compromisso humano cedeu lugar ao imenso mergulho no oceano da humanidade. Servir a Deus em toda a extensão da palavra, abandonando os labores dos homens, a fim de envolvê-los na Mensagem de libertação.
As construções até aquele momento foram realizadas na areia transitória da vacuidade terrestre, mas a partir de então serão realizadas na rocha perene da verdade para todos os tempos, e a solidão é que estabelece os primeiros alicerces, escavados no basalto duro dos corações, para que sobrevivam aos tempos. . .
A partir daquele momento, não terá lar, nem alforje, nem parentes, senão aqueles que estejam dispostos a associar-se à Sua empresa, a do reino dos Céus.
Embora as raposas possuam o seu covil e as aves dos céus tenham os seus ninhos, o Filho do Homem, porém, não possuirá nada que o aprisione, que limite, porque todas as noites imensas, o dossel de estrelas, as nuvens carregadas, os dias sem fim, os corações confiantes, e andará de porta em porta, por caminhos tortuosos, chamando e clamando até que se dê o triunfo do Amor.
Por isso tudo, o deserto é importante para a meditação, a busca interior, o Encontro. . .
Depois de vários dias Ele desceu e iniciou a maratona da fraternidade apoiada nos passos da compaixão pelos homens.
Chamou a alguns homens que haviam sido escolhidos antes de serem, e deu-lhes as primeiras instruções.
Um deles, Mateus Levi, o Filho de Alfeu, que era detestado, porque cobrava impostos, vira-O à porta da alfândega, na manhã de Sábado, muito próximo à sua porta. Não saberia explicarse porque, naquele horário fora até lá, onde lhe era habitual estar, menos nesse horário, nessa circunstância. Pôde ver o magote que se aproximava, tendo o Estranho que vinha à frente. À medida que se acercavam aqueles homens, Levi passou a sentir-se diferente, comovido, especialmente após sentir-lhe o relâmpago do olhar. Nunca mais O esqueceria, passando a segui-Lo, anotando os Seus ditos, os Seus feitos, Sua beleza. . .
Naquela mesma tarde, como de hábito, compareceu à Sinagoga e O ouviu, num timbre que o revigorava interiormente, trazendo indefiníveis ressonâncias ao seu coração tristonho, face ao desprezo que sofria do seu povo, por ser escrevente da coletoria. . .
Quando a multidão O acompanhou após o ofício religioso, ele se manteve a uma regular e prudente distância, a que se adaptara, embora anelasse por convivências saudáveis, sorrisos joviais, confiança, amizade, tão pouco e tanto de que necessitava.
Passava as horas com ansiedade e adormeceu sob lânguido torpor que o levara a estranho sono, no qual via-se carregando os livros da alfândega, mas, nos quais, além da inexistência de moedas, sestércios, denários e dracmas, apresentavam outros apontamentos sobre vidas e alegrias em promessas de luz.
No dia seguinte voltou à repartição e entregou-se sem estímulo ao trabalho rotineiro, escravizador, deixando que o pensamento voasse em busca daquele Homem peculiar.
—Levi, filho de Alfeu, segue-me!
Era mais do que um convite, tratava-se de uma ordem, uma convocação, doce e forte.
O cobrador não teve dúvidas, levantou e O seguiu.
As cidadezinhas da margem do lago de Cafarnaum esplendem ao Sol dourado, os seus muros estão carregados de trepadeiras de flores miúdas que colocam variação de cores, enquanto as borboletas bailam entre os festões e as folhas rasgadas das palmeiras ondulantes.
Há uma estranha festa, uma diferente alegria no ar, nos caules verdejantes das plantas, no estalido dos galhos secos a se arrebentarem no chão sob os pés andarilhos, como se fossem o pulsar do coração da Natureza em sorrisos de esperanças.
As caravanas se movimentam no rumo das terras, o vozerio dos pescadores se mistura à gritaria da infância, à exuberância do Dia.
Levi, o antigo publicano exulta, tendo saído do inverno dos preconceitos ao qual o haviam atirado para os júbilos do verão que passava a experimentar. Estava renascido e desejava demonstrá-lo. Sentia-se impulsionado a realizar algo diferente, que sensibilizasse a cidade, o povos, os conhecidos, os inimigos. . .
Já não se sentava no telônio, recuperara a cidadania. Estava quase feliz.
Convidou o Rabi a um banquete no seu lar, onde cuidadosamente preparou a mesa, repletando-a com bons vinhos, de Siquém, de Chipre, o precioso falerno em tons rubi, peixes assados e fritos, maçãs de Méron, romãs de Corazim, azeite e mel preciosos de Hébron. A toalha de linho branco mal comportava a abundância de taças, pratos, baixelas. . .
A porta da entrada, serviçais sustentavam vasilhames com água pura para as abluções.
Tudo estava preparado e o povo tomado de curiosidade se aglomerou na praia.
Subitamente, dentre os barcos que têm as velas enfumaçadas, destaca-se o de Simão Pedro e, à proa, com túnica brilhante e os cabelos do tom de mel emoldurando-lhe a face, surge Jesus.
Levi, tem vontade de gritar, estourar o peito em uma sinfonia de felicidade dantes jamais sentida.
Os seus amigos estão ali, todos aguardam o acontecimento com ansiedade e desconfiança.
Quando Jesus e grupo se aproximam, Mateus avança, curva-se e esfuziante de júbilo, abre os braços e envolve o nobre visitante.
—Mateus, és realmente muito feliz, porque hoje a felicidade se adentra pelo teu lar.
O banquete transcorre ao som de pífanos e flautas, pandeiros e delicados sinos, enquanto que o ar balsâmico da tarde está carregado de perfumes de madeiras preciosas que ardem em pequeninas piras fumegantes em volta da mesa farta.
Jesus fez a refeição ao entardecer com os convidados do seu convocado, publicanos como ele, da mesma alfândega, que se interessavam pelo reino que Ele traz. Esclarece uns e orienta outros, explica-lhes qual a estratégia e desenvolver, para que se implante o reino especial, e toda uma conversação afetuosa se estabeleceu.
—Por que razão vosso Mestre se senta à mesa e come com os publicanos e os pecadores?
A presunção egocêntrica faz que pensem estar isentos de pecados, somente porque são formais, pusilânimes - o que já é um pecado - e conservadores de superadas e vazias tradições.
—Não necessitam de médicos os sãos, mas sim os doentes.
A resposta verdadeira surpreende-os, desmascara-os, porque se sabem enfermos também, mas o desmedido orgulho os impedem de buscarem medicação. Assim são as criaturas humanas, presunçosas das suas pobres prerrogativas. Estão próximas da luz e evitam-na; sentem a presença da paz e recusam-na; experimentam o perfume da felicidade mas impedem-se a harmonia. . .
Doentes que também, eram no seu farisaísmo os inquisidores, Jesus deixou-os aturdidos e foise, tranquilo, na direção da noite formosa.
Mateus Levi mudara de atividade, encontrando sua real vocação - anotar almas para o banquete do reino de Deus.