Jesus e o Evangelho (Série Psicologica Joanna de Ângelis Livro 11)

Espada e paz - Ev. Cap. XXIII - Item 11

Espada e paz - Ev. Cap. XXIII - Item 11



Não penseis que eu tenha vindo trazer paz à Terra. . .


Mateus 10:34

A sombra imensa que pairava na sociedade existente, estabelecendo os seus parâmetros de vitórias sobre as criaturas humanas, já o esclarecemos. Os conceitos éticos ainda não estruturados vicejavam num contexto eminentemente hedonista e perverso. A predominância do direito da força sobre a força do direito constituía valor relevante na cultura geral. O ser humano estorcegava na canga da escravidão política, social, econômica, de raça, de credo, destacando-se como triunfantes as personalidades impiedosas e violentas e os poderosos de um dia, herdeiros das tradições ancestrais e dominadores no grupo social.

A família submetia-se ao patriarcado soberano e, não poucas vezes cruel, sob qualquer aspecto considerado. Os interesses giravam em torno da posse, terrível mecanismo egoico para preservar as paixões ainda asselvajadas. Não obstante, na face do comportamento religioso, ocorriam transformações acentuadas. O paganismo no mundo entrava em decadência, em relação aos cultos transatos e formalistas; os holocaustos humanos, objetivando aplacar a fúria divina, já haviam cedido espaço para os sacrifícios de animais em Israel, transformados em recursos valiosos para absolvição de pecados e oferendas gratulatórias.

A razão rompia a noite da ignorância e colocava os pilotis do discernimento e da valorização da criatura, que passava a ser vista como a imagem e a semelhança de Deus, em detrimento da conceituação anterior, na qual não passava de instrumento servil. Certamente esse processo, que ainda continua em desenvolvimento, teria que superar todos os impulsos agressivos que constituem a natureza humana, vitimada pela herança animal resultante do seu processo de crescimento antropossociopsicológico. Não obstante, apresentavam-se as primeiras diretrizes de segurança para aquisição da consciência individual e coletiva, e Jesus chegou nesse instante decisivo para auxiliar e facilitar a grande transição da barbárie para a civilização.

A Sua doutrina, feita de amor, contrapunha-se a todos os valores estabelecidos, nos quais a supremacia do orgulho e da hediondez de conduta delineava as regras a que todos se deveriam submeter sem qualquer discussão.

Acostumados às injunções severas, os indivíduos conduziam-se conforme o estabelecido, sem coragem ou ideal para romper as amarras fortes da dominação externa e das torpezas morais internas às quais se entregavam.

Enfrentar a sombra coletiva e, ao mesmo tempo romper a interior, exigia decisão firme.

Aquela era, portanto, uma doutrina toda feita de compreensão e bondade, ternura e compaixão, que não podia ser comparadaàs atitudes de agressividade interna ou externa, de ostensiva ou disfarçada hostilidade. No entanto, nunca Lhe faltara a energia e o valor moral para enfrentar os desafios que surgiam objetivando obstaculizar a marcha da Sua revolução espiritual.

Era, sim, uma revolução espiritual como a Terra jamais experimentara outra semelhante.

Essa era a diretriz que sempre seguiria, e nunca deixaria de proclamar como motivo primordial da Sua estada entre os homens.

Jesus-Homem, não é um símbolo mitológico, mas um Ser real desafiador, que superava todas as condições adversas e todas as situações dramáticas em favor do ministério a que se entregava, sem afastar-Se das metas estabelecidas.

Esse comportamento exige decisão imbatível e coragem superior, vigor especial e brandura incomum, a fim de não serem utilizados os mesmos instrumentos que pertencem aos opositores.

A doutrina por Ele pregada e vivida suplantava os códigos éticos e religiosos vigentes, apresentando uma nova e estranha moral, que rompe o aceito, apontando facetas superiores que se encontram em estágios mais elevados, e que, para serem alcançados, seus seguidores devem derrubar todas as barreiras, mesmo que ao preço do sacrifício da própria vida.

Em momento algum Ele temeu os acontecimentos graves, os enfrentamentos apaixonados e traiçoeiros, mantendo-se sereno e seguro dos resultados que esperava.

Como romper com as estruturas vigorosas do passado em governo nas condutas e nos interesses servis? Outra alternativa não haveria e continua não existindo, senão a utilização da espada para separar uma da outra proposta, a mentira da verdade, a usurpação ignóbil da conquista honrada.

Era natural, pois, que todo aquele que se vinculasse ao Seu estratagema de amor, logo se definisse em relação às condutas mundanas, rompesse com a acomodação e mesmo se tornasse vítima da espada sanguinária do ódio adverso.

A História inscreveria o nome dos mártires e santos, heróis da fé e místicos em páginas fulgurantes de amor e de coragem, mediante as vidas ceifadas pelas lâminas guerreiras, pelaslabaredas devoradoras, pelas feras que estraçalharam as carnes, pelos incomparáveis sacrifícios experimentados por todos eles. . .

No lar, na família, seriam solapadas as construções rígidas do egoísmo, do patriarcado sombrio, do orgulho de clã e de raça, quando alguém começasse a vencer a própria sombra e trabalhasse as bases do ego para que cedesse lugar às manifestações do Self.

Uma luz nova como a Sua mensagem teria que cindir as trevas e proclamar a claridade, libertando as consciências e os comportamentos dominantes, enfrentando o maquiavelismo político, as arbitrariedades governamentais, as intrigas farisaicas de todas as épocas, implantando pela qualidade o seu conteúdo especial.

A espada, referida por Jesus, não seria utilizada pelos adeptos da doutrina, mas por aqueles que se lhes oporiam, separando-os de tudo quanto amassem, de todos os laços e raízes emocionais, inclusive os da afetividade. Aqueles que antes lhes partilhavam as ideias, a convivência, os exprobariam em face da decisão tomada, se separariam, abririam feridas profundas nas suas almas, dilacerando-lhes as carnes dos sentimentos. . . E eles a tudo aceitariam por honra e dedicação ao ideal abraçado.

Porque a sombra coletiva governasse os destinos humanos por muito tempo, alguns dos discípulos, desassisados e violentos, atormentados pelas compulsões obsessivas, empunharam-na através de diferentes épocas para impor o pensamento de Jesus, quando Ele preferiu sofrer as consequências da Sua decisão, deixando-se martirizar. Ele sabia que o sacrifício é mais poderoso do que o comando de um exército equipado para matar. A voz silenciosa do martírio conclama com mais vigor do que os brados de vitória sobre os cadáveres daqueles que deveriam ser conquistados e não vencidos, havendo estabelecido o período negro e perturbador do desenvolvimento histórico desenhado para a disseminação do amor.

As marcas da alucinação ficariam na trajetória do pensamento cristão como fruto apodrecido da sombra coletiva e do impositivo psicológico; numa visão mais profunda, a espada teria que ferir fortemente a ignorância, o orgulho, os preconceitos de cada adepto novo. Isso significaria a vitória sobre a própria sombra pre-valecente no ser, não obstante tomando contato com a generosa fonte de sabedoria que foi Jesus.

Logicamente, surgiriam opositores ferrenhos ao enunciado revolucionário inserto nos discursos d'Ele. Esses opositores não seriam apenas os externos, representados pelos detentores do poder terreno que o temeriam perder; pelos exploradores da credulidade geral, receando ser desmascarados; pelos usurpadores dos bens e dos recursos do próximo, que se veriam a braços com o impositivo da devolução da rapina; pelos famigerados perseguidores de todos os ideais de enobrecimento humano. Também estariam no imo das criaturas que desejassem a vinculação com Ele, inscrevendo-se nas fileiras do idealismo, entregando-se ao movimento em instalação na Terra. E, sem dúvida, esses oponentes interiores, ocultos pelo ego, seriam muito mais impiedosos, necessitando ser passados pelo fio da espada, do que aqueloutros, que vêm de fora e podem ser contornados, vencidos ou suportados, porque são de rápida persistência. Os adversários, porém, internos, cuidados pelos sentimentos egoicos, esses constituiriam sempre impedimentos mais difíceis de vencidos pela espada da decisão de os superar e deles libertar-se.

Literalmente, Jesus separa pais de filhos, cônjuges, irmãos, momentaneamente, quando alguns se opõem à decisão daqueles que se entregarem às transformações morais apresentadas, ao trabalho de abnegação em favor do próximo, aos compromissos de construir o mundo de solidariedade que surgirá dos escombros da sociedade rica de moedas e pobre de sentimentos de fraternidade. Mas essa ocorrência seria também a ponte quetraria de volta aqueles mesmos que os expulsassem, quando a sua sombra cedesse lugar ao conhecimento dos legítimos valores humanos e sociais, auxiliando-os na lídima fraternidade que, em vez de impor os laços de família consanguínea, estabelecem como fundamentais aqueles da fraternidade universal.

A espada, por fim, favorecerá a verdadeira paz.

(. . .) Não penseis, pois, que eu vim trazer paz à Terra, essa modorrenta paz que é feita de ócio e de cansaço, mas a paz dinâmica e gloriosa que é conquistada com a espada flamejante da autoconsciência que dilui a sombra teimosa.