A lua nova marca o início de um novo mês. É o começo de março, ano 761 da fundação de Roma (7 d.C.).
Em Nazaré, passam-se os meses e apenas se modificam os ritmos da natureza.
Após longa procissão de chuvas desde outubro, o inverno chega ao fim.
É sexta-feira.
A madrugada se embalsama dos perfumes silvestres. A estrela da manhã já empalidece.
O menino acorda e sai.
No futuro, registrarão seu hábito peculiar: “De madrugada, estando ainda escuro, Ele se levantou e retirou-se para um lugar deserto, e ali orava”.1 (
MARCOS 1:35.)
Pouco além dos limites da aldeia, uma rocha se projeta do monte e abaixo surge um vale.
As manhãs costumam encontrá-lo ali, absorto. O menino conta 12 anos.
Daí a pouco, rumores nas casas próximas recordam-no de que é tempo de voltar às obrigações cotidianas.
Nazaré — que significa aquela que guarda, um lugar de sentinela — formou-se nas encostas da colina, entre as muitas e salientes pedras de seu solo, a despeito da terra fértil.
As ruas começam a ser ocupadas, sobretudo por mulheres indo à fonte com seus potes. A manivela ajuda os braços femininos a puxarem os vasos com água, e, durante a tarefa, as mulheres conversam. O poço é um local de aproximação social.
O menino encontra sua mãe tirando leite da cabra. Em instantes, o leite estará balançando numa bolsa de pele, para coagular e produzir coalhada; ou fazer queijo, depois de drenado o soro por um pano de linho.
Sua casa é típica do lugar — três cômodos, de tijolos de barro, pedra e cal, com um terraço feito de ramos entrelaçados, apoiados em madeira e cobertos de argila. Quase tudo está no chão. Peças de cerâmica, de utilidades variadas, estão por perto. Num tear rústico, lã e linho são tecidos. O moinho manual produz a farinha para o alimento básico: o pão. Lá fora, um forno portátil de barro serve para cozinhar.
As crianças auxiliam suas mães nas atividades domésticas, do amanhecer ao pôr do sol. Contudo, há momentos para brincar. Bonecas, animais de estimação... e bolas de couro. A ideia é manter uma bola (ou duas) em movimento, jogando um para o outro, com as mãos, até cair e se definir, assim, o vencido. Há, ainda, os brinquedos de madeira.
Nazaré é o povoado dos carpinteiros.
Para Israel, o trabalho manual é sagrado. Os rabinos ensinam que o artesão dedicado a sua obra não precisa se levantar diante do mais importante dos doutores.
Os carpinteiros, em particular, fruem de elevada consideração e ocasionalmente são chamados à condição de árbitros em questões judiciais, talvez pelo hábito de operarem em seu ofício com medidas exatas.
Jesus atravessa uma fase de novas responsabilidades familiares e sociais. Em algumas semanas, irá à Jerusalém para a peregrinação anual da Páscoa. Aos 13 anos, será um homem. Diminuem suas tarefas domésticas e agora passa mais tempo na oficina do pai. Vai-se iniciando no ofício da broca e do martelo, do formão e do serrote, conforme a tradição familiar. Ele aprende os rudimentos da preparação de portas, móveis, carroças, rodas e ferramentas agrícolas, trabalhando com tal disposição o pequeno carpinteiro de Nazaré, que enche a casa de ânimo com sua alegria.
Quando o sol vai alto, uma parcela dos quase 500 habitantes já ocupa as ruas de chão batido de Nazaré. Esteiras e tendas se estendem pelas margens, seja para as ofertas de serviço seja para as de comércio, em especial, de frutos e legumes. É uma aldeia agrícola. Mas há, também, os utensílios da olaria: panelas, bacias, tigelas, potes, lamparinas; como ainda o artesanato de cestas trançadas de junco ou dos filamentos que crescem entre as tâmaras. O linho é outra especialidade — a Galileia é rica em campos de linho e hábeis tecelãs.
A permuta é o método frequente das transações, e restrita é a circulação do dinheiro.
Sob uma tenda, um escriba formaliza negócios, casamentos, redige cartas.
À chegada da tarde, porém, as pessoas se apressam um pouco. Logo, ao poente, iniciará o Shabat (descanso), que durará até o poente do dia seguinte.
Enquanto Maria prepara as três refeições do repouso sagrado, Jesus arruma a oficina de seu pai, garante uma provisão suficiente de água para a casa e limpa seus cômodos modestos.
Trombetas soam três vezes. Suspende-se o trabalho.
Com o crepúsculo, Maria acende duas lamparinas, cujas chamas dançarinas deverão arder até o amanhecer, quando a família se apresentará à sinagoga. Das lamparinas, fumaça e cheiro característicos se espalham pela casa.
Maria desdobra as roupas festivas e coloca dois pães sobre a mesa.
José está na sinagoga, recitando orações e lendo textos sagrados. Depois de um tempo, ele volta para casa, onde lhe espera a família e os convidados para a refeição ritual. Na mesa, ele declama o kiddush (uma oração de santificação) sobre uma taça de vinho, evocando o repouso de Deus após a criação e a santificação do sétimo dia, e conclui: Bendito sejas tu, ó Eterno, que santificas o Shabat. O pão é partido entre todos, untando-se as porções com sal. Salmos e versículos do Antigo Testamento são entoados. E Jesus tudo observa.
O Shabat é um rico caminho para o crescimento interior. O ser humano medita em Deus, contempla sua Criação, relaciona-se fraternalmente com parentes e amigos, descobrindo que não só de pão vive o homem.
A partir dos 5 ou 6 anos, os meninos podem frequentar a escola, iniciando a alfabetização. Um professor, de estilete à mão, usa uma pequena tábua coberta de cera para escrever as letras, nomeando-as até que sejam dominadas. O próximo passo será conhecer os cinco livros da Torah, mas o programa abrangerá leitura, geografia, história, cálculo, regras sociais e religiosas. De versículo em versículo, lido, explicado, recitado várias vezes, as Escrituras são praticamente memorizadas. À medida que os estudantes crescem, outros textos são acrescentados, inserindo-os no universo dos profetas e dos livros de sabedoria. Na adolescência, penetrarão nas questões orais de interpretação das escrituras, aprendendo a aplicar a Torah na vida diária.
A sinagoga é o centro da vida social e religiosa. Não é só o templo para o qual o judeu piedoso deve voltar-se em oração três vezes ao dia. Abriga a escola, é o espaço de reunião da comunidade, um local de estudo das escrituras e um lugar de esperanças.
Nazaré estava fundada havia mais de dois mil anos.
O franciscano Bellarmino Bagatti (CROSSAN, 1994, p.
50) realizou escavações no centro da aldeia, entre 1955 e 1960. Encontrou tumbas de meados da Idade do Bronze (2000–1500 a.C.), cerâmicas da Idade do Ferro (900–539 a.C.), cerâmicas e construções do período helenístico (332–63 a.C.). Em relação ao período de Jesus, encontrou uma fonte, cisternas para água, prensas de azeitonas, tonéis de óleo e silos para grãos nos subterrâneos das moradias, onde as colheitas eram guardadas.
Flávio Josefo, historiador judeu, citou 45 cidades da Galileia. O Talmud mencionou 63 delas. O Antigo Testamento relacionou inumeráveis cidades dessa província. Nenhuma dessas fontes, curiosamente, registrou Nazaré. A aldeia foi ignorada, de tão pequenina. A primeira referência a ela, fora dos documentos cristãos, foi descoberta em 1962, nas escavações de Cesareia: um pedaço de mármore com a inscrição de seu nome. Mas sua aparição na história ocorreu no dia em que o Espírito Gabriel foi enviado a ela, à procura de “uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi”. (
LUCAS 1:27.)
Nazaré foi construída no topo do monte mais ao sul da Baixa Galileia. De lá se vê o Monte Carmelo, a oeste; o vale do Jordão, a leste; a planície do Esdrelon, ao sul; defrontando-se, a nordeste, com o lago de Genesaré. Vê-se, também, o Monte Tabor, e quase se pressentem, por trás das montanhas da Samaria, as muitas colinas ressequidas da Judeia.
Ernest Renan (2003, p.
124) escreveu, com inspiração:
Aquelas montanhas, aquele mar, aquele céu de anil, aqueles planaltos no horizonte foram, para ele (Jesus), não a visão melancólica de uma alma que interroga a natureza sobre seu destino, mas o símbolo certo, a sombra transparente de um mundo visível e de um novo céu.
A aldeia de Jesus se distanciava cerca de 150 quilômetros de Jerusalém. Mas Séforis estava a apenas uma hora de caminhada de Nazaré.
1 Nota do autor: As transcrições da Bíblia não identificadas quanto ao tradutor foram extraídas da Bíblia de Jerusalém. (São Paulo: Paulus, 1996.)