Da Manjedoura A Emaús

CAPÍTULO 28

Sepultamento

E José, tomando o corpo, envolveu-o num fino e limpo lençol, E o pôs no seu sepulcro novo, que havia aberto em rocha, e, rodando uma grande pedra para a porta do sepulcro, foi-se. (Mateus 27:59-60)

Desde as mais antigas tumbas da Mesopotâmia, até as pirâmides e as gigantescas câmaras subterrâneas do Vale dos Reis; e os túmulos em forma de calotas do famoso templo budista Borobudur, em Java; passando pelos túmulos cartagineses e pelo monumento exuberante construído por Artemisa II para Mausolo;23 até o Taj Mahal, palácio funerário que o imperador Shan Jahan ergueu em homenagem à sua favorita, Mumtaz Mahal; sem esquecer os túmulos renascentistas, que transformaram as tumbas em obras de escultores e não mais de arquitetos; os sepulcros e outras estruturas funerárias, de ricos ou de pobres, de ontem e de hoje, marcaram e marcam a preocupação do homem para com os restos mortais do homem, a fim de protegê-los da ação dos elementos naturais, e sobrenaturais, ou perpetuar a memória dos mortos.
Os povos da Antiguidade atribuíram extraordinária importância à sepultura e às honras fúnebres. Dominic Crossan (1995b, p.
189) registrou que a “hierarquia do horror era a perda da vida, das posses e do sepultamento, isto é, a destruição do corpo, da família, da identidade”. Por isso, as penas mais graves do direito romano eram a fogueira, o lançamento às feras e a crucificação, pois nas três circunstâncias normalmente nada restava para ser sepultado: a incineração destruía os corpos, os animais os devoravam e os crucificados alimentavam os corvos, os abutres e cães carniceiros.

O homem moderno não pode compreender a desonra máxima que significava a ausência de sepultamento. A tragédia grega de Antígone, de Sófocles, retrata essa cultura. A filha do rei Édipo, de Tebas, é condenada à morte por haver enterrado o cadáver de seu irmão rebelde, Polinices, e lhe prestado ritos funerários, em exemplo de comovente amor fraternal, embora afrontando a proibição do cruel rei Creonte. Há um instante em que o diálogo entre a ré e o rei beira o sublime.
Creonte:
— Não é justo dar ao criminoso tratamento igual ao do homem de bem.
Antígone:
— Quem nos garante que esse preceito seja consagrado na mansão dos mortos?
Creonte:
— Ah! Nunca! Nunca um inimigo me será querido, mesmo após sua morte.
Antígone:
— Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor! (SÓFOCLES, 1985, p. 88.)
Entre as consequências da pena de morte no direito romano advinha ao infrator a privação do sepultamento.
Dominic Crossan (1995b, p.
198) relatou:
Da prática romana, espera-se que o corpo crucificado seja deixado na cruz para os abutres e os animais. Os sítios das crucificações, tais como os do Gólgota, em Jerusalém, ou do Campo Esquilino, em Roma, com seus postes permanentes, esperando as vítimas que levavam as suas próprias travessas para o local, eram focos horríveis para predadores atraídos pelo cheiro de suor e sangue, urina e fezes. O próprio local, com as moscas, corvos e cães, era um aviso duradouro contra a subversão das classes inferiores.

Após a morte de Jesus, um notável entre os judeus interveio para que o corpo do Nazareno tivesse sepultamento: José de Arimateia, discípulo secreto de Jesus (JOÃO 19:38), foi aquele que requereu a Pilatos autorização para retirar o corpo da cruz.
O texto joanino observou: “[...] muitos chefes creram nele (Jesus), mas, por causa dos fariseus, não o confessavam, para não serem expulsos da sinagoga”. (JOÃO 12:42.)
Mais um notável participou das atenções dadas ao corpo de Jesus, Nicodemos, fariseu e integrante do Sinédrio, aquele que ouviu Jesus falar sobre a ciência do “nascer de novo”, e que durante a Festa dos Tabernáculos começou a defendê-lo (JOÃO 7:51): “Acaso nossa Lei condena alguém sem primeiro ouvi-lo e saber o que fez?”
Nicodemos auxiliou no sepultamento, fornecendo 100 libras — cerca de 33 quilos, à época — de uma mistura de mirra e aloés.
Foram os antes vacilantes que se tomaram de coragem para proporcionar um sepultamento digno.
O corpo de Jesus foi envolvido em linho perfumado e conduzido rapidamente para um jardim próximo, onde um sepulcro novo o receberia.
LUCAS 23:50-53 relatou que José de Arimateia era integrante do Sinédrio. Justo e bom, ele discordara da sentença de seus pares. O texto lucano informou que José de Arimateia foi acompanhado, além de Nicodemos, pelas mulheres vindas da Galileia, até um túmulo talhado na pedra, que ainda não abrigara corpo algum.
O texto marcano salientou que o túmulo de Jesus foi selado por uma pedra, tendo Maria de Magdala e Maria de Cléofas, irmã de Maria, a mãe de Jesus, presenciado o momento em que o corpo foi guardado.
Somente MATEUS 27:62-66 fez alusão à guarda militar do túmulo, reivindicada pelos chefes dos sacerdotes e fariseus a Pilatos, sob o argumento de que os discípulos poderiam subtrair o corpo, a fim de sustentarem a predição da ressurreição.

José, da cidade de Arimateia (Haramathaim), situada entre Jerusalém e o Mar Mediterrâneo, era rico o suficiente para fruir do raro privilégio de possuir, ao norte de Jerusalém, um jardim com um túmulo de família recém-talhado na rocha e um jardineiro que cuidasse do local. (JOÃO 20:15) O nobre judeu ousou entrar na residência de Pilatos (MARCOS 15:42-45), casa pagã, especialmente na Páscoa, transgredindo a regra de pureza, mas colocando o dever referente ao corpo do amigo acima das formalidades. Foi ele que disputou a honra de descer o corpo de Jesus da cruz, aspergi-lo com expressiva quantidade de essências aromáticas e o envolver em precioso lençol novo e, enfim, guardá-lo em seu próprio sepulcro.
Sem a intervenção de José de Arimateia, Jesus teria uma sepultura comunitária, utilizada, na época, para duas categorias de pessoas: os pobres e os condenados; aqueles por ausência de recursos, estes por imposição da lei judaica. Os condenados só mais tarde poderiam ter os ossos transferidos para um sepulcro familiar. As carnes dos malfeitores e pagãos não deveriam macular as carnes dos justos, nem no túmulo.
Não há razão para se estranhar a concordância de Pilatos com o pedido de José de Arimateia. O governador não estaria necessariamente ofendendo ao direito romano. Já havia mesmo posicionamentos mais humanitários em sua interpretação. A medida também não ofendia ao direito judaico; nas circunstâncias religiosas do momento, era até conveniente.
A ossada de Iokanan ben Há’galgol, descoberta próximo de Jerusalém em 1968, única de pessoa crucificada, com um prego de ponta torta ligando os calcanhares, demonstra que um sentenciado à crucificação poderia receber sepultamento, inclusive no túmulo da família.
Durante o julgamento, Pilatos não hesitou em dar mostras de simpatia pelo inocente feito réu. O prestígio de José de Arimateia pode ter sido outro elemento significativo para a liberação do corpo, já que o procurador romano se viu na contingência de atendê-lo em audiência.

Dominic Crossan (1995b, p.
202) sugeriu que José de Arimateia nunca existiu; foi criado pelo evangelista Marcos, diante da necessidade de uma figura intermediária entre os discípulos de Jesus e os representantes do poder, que pudesse, plausivelmente, reivindicar o corpo de Jesus.
Jacques-Noël Pérès, professor de Patrística24 na Faculdade de Teologia Protestante de Paris, propôs que José de Arimateia foi apenas um zeloso membro do Sinédrio, cuja preocupação com o corpo de Jesus se deveu apenas ao interesse de preservar a regra do DEUTERONÔMIO 21:22-23, que ordenava o sepultamento antes do crepúsculo. Nenhuma ligação com o condenado orientou suas ações. José de Arimateia foi “simplesmente um judeu piedoso que não conseguia admitir que um corpo supliciado permanecesse suspenso na madeira da cruz quando começava o sabat”. (PÈRÉS, 2003, p. 95.)
Seria então razoável perguntar: Por que José de Arimateia não sepultou os três condenados, em vez de um, Jesus? Por que ele não destinou o corpo de Jesus a uma sepultura comunitária, antes preferiu depor o corpo de um condenado no jazigo de sua própria família?
Nicodemos era muito rico, a se considerar a quantidade de mirra e aloés que forneceu para ungir Jesus, digna de um rei. O pó de mirra, obtido de caríssima resina que se solidificava nas árvores da Arábia e Abissínia, associado ao aloés, formava um bálsamo utilizado no sepultamento de aristocratas. (DUQUESNE, 2005, p. 157.)
A preparação de bálsamos e resinas, utilizando-se óleo de oliva e especiarias aromáticas, constituía atividade famosa em Jerusalém. MARCOS 16:1 registra que Maria de Magdala, Maria de Cléofas e Salomé compraram aromas para ungir Jesus.
Giuseppe Ghiberti (1986, p.
692) relacionou os procedimentos aplicados a um corpo para sepultá-lo na Palestina do século I, possivelmente empregados no de Jesus. Era lavado e ungido; cabelo e barba, aparados. Os olhos eram fechados, e as mandíbulas, atadas; às vezes, os pés e os braços também, para que ficassem junto ao corpo ao longo do transporte. Os orifícios eram vedados. Um sudário envolvia o corpo, que permanecia deitado de costas, sobre um estrado, não em caixão. Possivelmente, com Jesus, foram omitidas algumas dessas e outras providências, diante das circunstâncias adversas.
Há quem desmereça a informação de Mateus quanto à guarda do túmulo requerida pelos sacerdotes a Pilatos.
Desde Hermann Samuel Reimarus (1694–1768)25 — que iniciou o moderno debate em torno de Jesus, procurando reconstruir racionalmente sua história, dentro do clima do iluminismo alemão —, ele mesmo e outros estudiosos se esforçaram por demonstrar, por argumentos variados, que Mateus inventou a lacração da tumba e sua guarda por soldados. Mateus estaria preocupado em refutar a suspeita de que a ressurreição de Jesus foi simulada, por causa do furto de seu corpo, que seria o fato histórico.
Entre os argumentos explorados, alguns questionam por que as autoridades judaicas deixaram passar uma noite antes de providenciar a vigilância do sepulcro. Outros estranham que os sacerdotes se recordaram da profecia da ressurreição, enquanto os discípulos precisaram da mensagem da entidade angélica para lembrá-la. Há quem alegue que, no sábado, a caminhada até a casa do governador seria impraticável, pela norma obrigatória de descanso.
Essas conjecturas não procedem. A avançada hora da morte de Jesus limitou ações. O fim do dia era iminente, com as implicações rituais para o Shabat e a Páscoa. Os evangelhos não afirmam que os discípulos se esqueceram da promessa de regresso da morte após o terceiro dia; deixam implícito que o grave abatimento e o medo das autoridades judaicas corromperam as esperanças. E a distância dentro de Jerusalém até a residência que hospedava Pilatos não ultrapassava a extensão da caminhada facultada para o sábado. Se os compatriotas de Jesus mobilizaram a autoridade romana na Judeia para levá-lo à morte, por que não seria admissível que tivessem reclamado à mesma autoridade precauções quanto à guarda de seu túmulo?

O furto do corpo será a impostura com que os sacerdotes justificarão sua ausência no túmulo lacrado.
MATEUS 28:11-15 destaca que os legionários romanos foram noticiar aos sacerdotes do Templo o desaparecimento do corpo de Jesus (já que Pilatos subordinou a guarda aos sacerdotes) e receberam vultosa quantia para sustentarem que dormiram durante a vigilância, permitindo que o corpo fosse levado pelos seguidores do Nazareno.
— “Dizei que os seus discípulos vieram de noite, enquanto dormíeis, e o roubaram. Se isso chegar aos ouvidos do governador, nós o convenceremos e vos deixaremos sem complicação”.
Mateus, aliás, reconhece que essa foi a história que se espalhou entre os judeus céticos no curso das décadas futuras.
Não houve, evidentemente, furto do corpo de Jesus, e o pedido de vigiar o túmulo não foi inventado por Mateus, pois corria entre os judeus a versão dos próprios soldados, esta, sim, muito pouco plausível: no correr da noite de sábado para domingo, os legionários teriam dormido de forma tão profunda que os discípulos de Jesus removeram a pesada pedra e retiraram o corpo sem nenhum deles perceber.
Escavações arqueológicas demonstraram que a região do Gólgota e do sepulcro de Jesus foi uma pedreira, na qual mesmo hoje se percebem marcas de corte nas rochas.
Em Israel, os mortos normalmente eram enterrados no chão, em fossas ou poços. Todavia, os integrantes das classes sociais superiores construíam nos montes e vales que cercavam Jerusalém câmaras sepulcrais abertas nas rochas ou a partir de grutas naturais. Formavam-se necrópoles, túmulos de família, a partir dessas câmaras, em cujas paredes escavavam-se compartimentos quadrados e estreitos, como prateleiras. Os compartimentos eram chamados kokhim, isto é, fornos, organizados para ocupar pouco espaço. Depois que terminava a decomposição, os ossos eram recolhidos em caixas, os ossuários.

O relato evangélico propõe que o sepulcro de Jesus tinha a forma de câmara e se fechava com uma pedra redonda, semelhante à de moinho, que deslizava sobre um trilho. De acordo com MARCOS 16:3, no domingo, enquanto caminhavam para o túmulo, as mulheres questionavam-se: “Quem rolará a pedra da entrada do túmulo para nós?” O deslocamento dessa rocha, mesmo sobre o trilho, exigia a força de homens.
O corpo de Jesus não foi inserido num kokhim, num nicho da parede. João conta que, após ter visto o túmulo vazio, com Pedro, voltaram para casa. Entretanto, Madalena permaneceu no sepulcro, do lado de fora, chorando. “Enquanto chorava, inclinou-se para o interior do sepulcro e viu dois anjos, vestidos de branco, sentados no lugar onde o corpo de Jesus fora colocado, um à cabeceira e outro aos pés”. (JOÃO 20:11-12.) Pela descrição, Jesus foi estendido sobre algo parecido com um banco lavrado na rocha.
O Calvário e a área do túmulo de Jesus compõem atualmente a complexa Basílica do Santo Sepulcro, com diversas capelas dedicadas a vários personagens da epopeia evangélica e mártires cristãos.
MARCOS 15:46 informou que José de Arimateia, “comprando um lençol, desceu-o, enrolou-o no lençol”.
O quarto evangelho (JOÃO 20:6-7), a certa altura da narrativa dos acontecimentos do domingo, mencionou:
Então, chega também Simão Pedro [...] e entrou no sepulcro; vê os panos de linho por terra e o sudário que cobrira a cabeça de Jesus. O sudário não estava com os panos de linho no chão, mas enrolado em um lugar, à parte.
Há, nessa descrição, uma evidência histórica. Caso o corpo de Jesus tivesse sido furtado, os autores da subtração não se dariam ao trabalho de retirar as faixas de linho que o cobriam, ou enrolar cuidadosamente o sudário “em um lugar, à parte”.
23 N.E.: Monumento sepucral construído no séc. IV a.C., em Halicarnasso em honra a Mausolo, rei de Cária, por sua irmã e esposa, Artemisa II. É considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo, as suas dimensões eram colossais.
24 N.E.: Filosofia cristã formulada pelos padres da Igreja nos primeiros cinco séculos de nossa Era, buscando combater a descrença e o paganismo por meio de uma apologética da nova religião, calcando-se frequentemente em argumentos e conceitos procedentes da filosofia grega.
25 N.E.: Filósofo alemão. Como deísta refutou a maior parte dos conteúdos dogmáticos da religião católica e atacou as concepções materialistas dos intelectuais franceses.