Da Manjedoura A Emaús

CAPÍTULO 29

Ressurrecto

E, estando elas muito atemorizadas, e abaixando o rosto para o chão, eles lhe disseram: Por que buscais o vivente entre os mortos? Não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos como vos falou, estando ainda na Galileia. (Lucas 24:5-6)

Ressurreição em Israel possuía vários significados.
Dizia-se, com o termo, de um evento escatológico, isto é, um episódio que aconteceria no fim da história humana: o despertar do sono da morte para o julgamento final, no antigo corpo, cujos elementos dispersos voltariam a se agregar.
Com a ressurreição da filha de Jairo, a de Lázaro e a de Êutico (Atos 20:7-12), ressurreição equivale à reanimação de um corpo com sinais vitais debilitados, imperceptíveis, ou restituição da normalidade fisiológica, antes da extinção da vida orgânica. Disse Jesus: “[...] a menina não morreu, está dormindo” (MATEUS 9:24); “[...] nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo” (JOÃO 11:11). Paulo tranquilizou seus companheiros a respeito do jovem Êutico, acidentado e tido como morto: “[...] Não vos perturbeis: a sua alma está nele!” (Atos 20:10).
Noutros contextos, ressurreição indicava uma experiência psíquica, a denominada (impropriamente) incorporação mediúnica. Outras vezes, a palavra significava reencarnação.
Em LUCAS 9:7-8, numa só passagem, obtêm-se exemplos dessas duas concepções.

“O tetrarca Herodes, porém, ouviu tudo o que se passava, e ficou muito perplexo por alguns dizerem: ‘É João que foi ressuscitado dos mortos’; e outros: ‘É Elias que reapareceu’; outros ainda: ‘É um dos antigos profetas que ressuscitou’.”
Fazia pouco tempo que João Batista tinha sido decapitado, estivera encarnado no mesmo período que Jesus, era seis meses mais velho. Como João poderia ressuscitar em Jesus? Pela incorporação mediúnica, ou seja, a manifestação de um desencarnado no plano terreno por intermediário de um encarnado.
Elias e os antigos profetas viveram séculos antes. Como um deles poderia ser Jesus? Pela reencarnação, o regresso do Espírito à vida corporal.
Ressurreição ainda traduzia a volta depois da morte, em Espírito, numa aparição.
Com Jesus, depois do sepulcro, ressurreição assume este último sentido — fenômeno mediúnico de efeitos visuais, por vidência ou materialização.
Os evangelhos apoiam essa interpretação?
Basta examinar os indícios sobre a natureza do corpo de Jesus ressurrecto, para se verificar que não foi um corpo flagelado e morto que ressurgiu.
JOÃO 20:19 informa que, estando fechadas as portas do lugar onde se achavam os apóstolos, Jesus veio e se pôs no meio deles.
Em várias passagens, as testemunhas não reconheceram o semblante de Jesus ressuscitado. Aos caminheiros de Emaús, Marcos esclarece que Jesus se “manifestou de outra forma” (MARCOS 16:12), o que explica LUCAS 24:16: “seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhecê-lo”. JOÃO 20:14 relata que Maria de Magdala “voltou-se e viu Jesus de pé. Mas não sabia que era Jesus”. Pouco adiante, JOÃO 21:4 informa: “Jesus estava de pé, na praia, mas os discípulos não sabiam que era Jesus”; e depois:

“[...] nenhum dos discípulos ousava perguntar-lhe: ‘Quem és tu?’, porque sabiam que era o Senhor” (21:12).
Trata-se de um corpo apto a vencer as barreiras da matéria, capaz de alterar-se para se fazer irreconhecível e, num instante depois, fazer-se reconhecer com a aparência humana habitual.
A primeira carta de Paulo aos CORÍNTIOS auxilia a entender a natureza do corpo ressuscitado de Jesus. Os coríntios também tinham dificuldade em admitir que um corpo morto pudesse ressuscitar. Paulo, em socorro a eles, elucidou:
Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam? Insensato! O que semeias não readquire vida a não ser que morra. E o que semeias não é o corpo da futura planta que deve nascer, mas um simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie. A seguir, Deus lhe dá corpo como quer; a cada uma das sementes ele dá o corpo que lhe é próprio. [...]. Há corpos celestes e há corpos terrestres. Um é o brilho do sol, outro o brilho da lua, e outro o brilho das estrelas. E até de estrela para estrela há diferença de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corpo corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual. Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. [...] Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus [...]. Quando, pois, este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade e este ser mortal tiver revestido de imortalidade, então cumprir-se-á a palavra da Escritura: A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão? (I CORÍNTIOS 15:35-55.)
O apóstolo dos gentios inicia a dissertação recordando que tudo possui um corpo apropriado — lei extensiva aos denominados mortos. A atividade nos corpos corruptíveis da matéria enseja conquistas que enchem de glória o corpo espiritual, apropriado à vida do Espírito na dimensão espiritual. Todo investimento evolutivo no corpo psíquico, ou corpo mental, ou mente, repercute no corpo espiritual. Um corpo de carne e sangue não poderá experienciar no reino de Deus, isto é, na realidade espiritual. Somente um corpo não corruptível poderá experienciar no reino de Deus, afirma Paulo. Esse corpo é o que pode preservar a pureza crescente do conteúdo, a alma. Vaso que é, o corpo espiritual reflete também, em pureza crescente, seu conteúdo.
JOÃO 1:14 ensinou que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Se o Verbo não estaria mais entre nós, e regressaria para as esferas de sua origem, por que se manter carne?
Para o Espiritismo, o homem possui uma composição ternária. Há nele três partes essenciais: primeiro, o corpo ou ser material, o seu instrumento de inserção na vida planetária, semelhante ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital; segundo, a alma ou ser imaterial, o Espírito imortal; terceiro, o laço que une a alma ao corpo, o corpo intermediário entre a matéria e o espírito — o corpo espiritual ou, como bem o designou Allan Kardec, o perispírito. Com a morte do corpo orgânico, o Espírito passa a se apresentar e se exprimir por meio do corpo espiritual. (KARDEC, 2013a, q. 135a.)
O perispírito é conhecido desde a mais remota antiguidade. No Egito, foi chamado Ka; na China, “corpo aeriforme”; na Grécia, “carro sutil da alma”.
Homero (1987, p. 248), em A Ilíada, descreveu maravilhosamente o perispírito na aparição de Pátroclo a Aquiles: “Apareceu-lhe a alma do infortunado Pátroclo, em tudo semelhante ao homem, na altura, nos olhos e na voz, e envolto em igual radiação”.
Para Paulo e a ciência espírita, as aparições de Jesus ocorreram pela manifestação de seu corpo espiritual; não foi um corpo carnal que voltou à vitalidade.
Em todos os significados do termo ressurreição há uma ideia essencial: ressurgimento, ato ou efeito de ressurgir.

Jesus predisse sua morte e ressurgimento em diversas ocasiões (MATEUS 17:22-23; 20:19; MARCOS 8:31-9:30 e 31; 10:33 e 34).
Após sua viagem a Cesareia, oportunidade em que conferiu a Pedro a direção da comunidade (MATEUS 16:18), “Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito por parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morto e ressurgisse ao terceiro dia” (MATEUS 16:21).
Entre as referências à ressurreição anotadas por Lucas, destaca-se, em especial, o teor da conversa entre Jesus e os dois visitantes espirituais no Tabor: “[...] eram Moisés e Elias que, aparecendo envoltos em glória, falavam de sua partida que iria se consumar em Jerusalém”. (LUCAS 9:30-31.)
A ressurreição de Jesus não foi descrita pelos evangelhos; somente o túmulo vazio e as aparições.
Há quem entenda que a ressurreição foi um delírio da mente enferma de Maria de Magdala que se propagou entre os discípulos conturbados pelos acontecimentos recentes.
Ernest Renan (2003, p. 393 e
394) foi dos primeiros a propor isso:
A vida de Jesus, para o historiador, acaba com seu último suspiro. Mas a marca que ele deixara no coração dos seus discípulos e de algumas amigas devotadas foi tamanha que, durante semanas ainda, ele esteve vivo e consolador para eles. Por quem seu corpo foi levado? Em que condições de entusiasmo, sempre crédulo, eclodiu o conjunto de relatos através do qual se estabelece a fé na ressurreição? É o que, por causa de documentos contraditórios, sempre ignoraremos. Digamos, no entanto, que a forte imaginação de Maria de Magdala desempenhou, nessa circunstância, papel essencial. Poder divino do amor! Momentos sagrados em que a paixão de uma alucinada dá ao mundo um Deus ressuscitado!
Os apóstolos teriam desejado tão ardentemente a ressurreição, que suas mentes teriam simulado o fato, confundindo alucinação com ocorrência real? Numa extensão maior do fenômeno, a visão dos quinhentos da Galileia seria uma alucinação coletiva?
Não é esse, porém, o estado emocional dos apóstolos e discípulos revelados no doloroso transe da paixão. Frustração e desolação, desesperança e mesmo revolta foram a tônica. Maria de Magdala acreditava que alguém subtraíra o corpo de Jesus: “Senhor, se foste tu que o levaste, dize-me onde o puseste e eu o irei buscar”. (JOÃO 20:15.) Tomé, ríspido, duvidou do testemunho dos colegas de apostolado. Sobre os testemunhos de Maria de Magdala, Joana de Cusa, Maria de Cléofas, Salomé e das outras mulheres, escreveu LUCAS 24:11 que aos apóstolos essas palavras “lhes pareceram desvario, e não lhes deram crédito”.
E o que dizer da visão de Jesus por Paulo, que partiu para Damasco “respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor?” (Atos 9:1.)
Explicações de outras naturezas não faltaram.
José de Arimateia e Nicodemos seriam ligados aos essênios. Os dois varões teriam simulado o sepultamento. Daí, a pressa que tiveram em colocar Jesus no túmulo; Ele ainda estaria vivo. Os dois anjos de branco seriam essênios buscando Jesus na sepultura de Arimateia.
Outra teoria.
Simplesmente, o corpo teria sido furtado.
A proeza de ludibriar uma guarda romana, removendo a imensa rocha e retirando do túmulo o corpo, enquanto soldados profissionais dormiam, é desconcertante. Mas foi a saída entrevista pelos sacerdotes do Templo: “Dizei que os seus discípulos vieram de noite, enquanto dormíeis, e o roubaram” (MATEUS 28:13).
Ladrões não se teriam preocupado em separar os panos e colocá-los em ordem; deixá-los-iam de qualquer modo, a esmo; ou melhor, nem teriam desenfaixado o corpo. Todavia, não foi assim: “O sudário não estava com os panos de linho no chão, mas enrolado em um lugar, à parte”. (JOÃO 20:7.)

Os espiões e a polícia do Templo certamente realizaram investigações e buscas, em vão. Jesus, sua doutrina, seus feitos e sua vida acuaram os príncipes do clero judaico. O desaparecimento de seu corpo, é claro, provocou a reação das autoridades, obstinadas em demonstrar fraude. Aqueles que tanto lutaram por sua morte tudo devem ter feito para encobrir aos olhos do povo a evidência do crime contra o Enviado celeste.
Outras hipóteses — como a de Madalena ter-se enganado de sepulcro, ou ter havido dois enterros, um provisório, no túmulo de Arimateia, e outro definitivo, após o Shabat — não resistem aos detalhes das narrativas evangélicas: os guardas, a pedra, os panos no sepulcro, as visões.
Mas um dos elementos que tornaram o relato evangélico mais convincente foi a qualidade das testemunhas: mulheres. Para que um testemunho tivesse crédito, era necessário que estivesse amparado por outro; duas pessoas eram indispensáveis, porém, homens. (GHIBERTI, 1986, p. 700.)
Joachim Jeremias (2005, p.
492) ressalva que o testemunho de uma mulher somente era aceito em casos excepcionais, conforme se constata no estudo de documentos rabínicos antigos. E, para se ter uma ideia do quanto era desvalorizado o testemunho feminino, nos mesmos casos em que era admitido também era permitido o testemunho de um escravo pagão.
Diferente dos demais rabis, Jesus revelava terna solicitude pelas mulheres e se deixava acompanhar por elas, “ensejando-lhes o engrandecimento moral e renovando-lhes os sentimentos ultrajados”. Por isso, “nos seus passos e ministério sempre estavam presentes mulheres abnegadas, que constituíam apoio e nobreza caracterizando a singularidade superior dos seus ensinamentos”. (FRANCO, 2000, p. 101.)
Foram elas que o seguiram na via dolorosa, enfrentando o ambiente hostil e repleto dos tóxicos da ingratidão e da violência. Na cruz, as mulheres. Em seu sepultamento, as mulheres. Depois do Shabat, foram elas que se dispuseram a render homenagens de saudade. Era comum aspergir essências perfumadas sobre o corpo, já enrolado nos panos sepulcrais, ou deixar esses aromas pelo túmulo.
Os apóstolos não acreditaram nas mulheres. E raras sociedades na história teriam acreditado. Elas estavam relegadas à indiferença social, jurídica e religiosa. No entanto, a elas coube a tarefa de transmitir a mais importante mensagem dos milênios, a mensagem da imortalidade. Eram as últimas entre os seguidores de Jesus, e Ele as tornou as primeiras.
Jacques Duquesne (2005, p.
265) salientou:
Este último ponto tem grande importância. Pois deixa mal a hipótese, repetida ao longo de séculos, de uma operação montada pelos companheiros de Jesus, que teriam feito desaparecer o corpo antes de anunciar a ressurreição. Se tivessem querido montar tal operação, tal manipulação, teriam escolhido outros mensageiros que não as mulheres. Fazer anunciar a ressurreição por mulheres, quem quer que fossem, era o meio mais seguro de não acreditarem.
Uma conspiração jamais teria nas mulheres as escolhidas para a notícia da ressurreição. O mais simplório dos apóstolos elegeria um homem para ser o anunciador, e não faltariam homens eminentes para o papel, como Nicodemos ou José de Arimateia.
Diante de tudo isso, é preciso questionar: o que transformou aqueles homens rústicos, infundindo-lhes tamanha força altruística ao caráter, de modo a sustentarem contra todos os perigos uma luta sem violência, ao sacrifício de suas famílias e das próprias vidas, para que outros pudessem conhecer o amor e a liberdade como os ensinara Jesus? Algo extraordinário aconteceu e modificou para sempre a trajetória e a vida dos discípulos — acovardados, antes, heroicos depois; inseguros no passado, agora invencíveis na fé.
Jacques Duquesne (2005, p.
267) concorda:
Algo aconteceu, portanto, naqueles dias, que irrompeu em fé, que mudou esses homens. Eles declararam, até o fim da vida, que esse ‘algo’ tinha sido a ressurreição de Jesus e sua aparição diante deles.

Ninguém pode provar. Todos têm direito de duvidar. O Deus que Jesus anunciou respeita a liberdade dos homens até o ponto de permitir que duvidem Dele ou O rejeitem.
Sepulcro vazio — “um vazio que, contra as aparências, canta a vida, tornando possível uma presença que não se interromperá nunca mais”, poetizou Giuseppe Ghiberti (1986, p. 714).