Nos dias atuais, Belém é um centro de peregrinação, com suas construções em altas paredes de pedra, intrincadas ruas estreitas, exibindo arcadas em seus trajetos.
Sempre pequenina, desde os tempos bíblicos, compondo notável contraste com as majestosas colinas do deserto da Judeia, a cidade está dominada pelos edifícios conventuais da Basílica da Natividade, construída no século VI. A basílica foi assentada sobre os vestígios de uma igreja mais antiga, levantada em 330 por Constantino, o imperador romano, e considerada, pela tradição, o local em que nasceu Jesus.
A singela aldeia sobrevivia da criação de ovelhas, da cultura do trigo (Belém quer dizer casa do pão) e dos pomares (Efrata, rica em frutos). Davi era o filho mais célebre, tendo crescido em seu território um milênio antes de Jesus, lutando contra leões e ursos para guardar os rebanhos paternos (
I SAMUEL 17:34-36), e, mais tarde, sagrar-se rei.
A aldeia se tornou conhecida também pelo túmulo de Raquel, mulher de Jacó, sobre o qual o patriarca ergueu um monumento, ainda muito visitado na estrada entre Belém e Jerusalém.
Os evangelhos atribuídos a João e Marcos não fornecem informações sobre o nascimento de Jesus. Deixam a entender que Ele nasceu em Nazaré.
Mateus nada menciona da viagem que José e Maria teriam realizado, proporcionando à criança vir à luz em Belém. O texto de Mateus deixa a impressão de que José e Maria sempre residiram em Belém e se transferiram para Nazaré somente após o nascimento de Jesus e a fuga para o Egito. (CROSSAN, 1995a, p. 35.) É o que se subentende dos versícul
os 22:23 de seu capítulo 2:
Mas, ouvindo que Arquelau era rei da Judeia em lugar de seu pai Herodes, [José] teve medo de ir para lá. Tendo recebido um aviso em sonho, partiu para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré.
Ao contrário de Mateus, Lucas (2:1 a
5) situa o casal em Nazaré e descreve essa viagem de mais de 160 quilômetros, com duração média de cinco dias, justificando-a num decreto de César Augusto, que determinou um alistamento em todo o Império.
LUCAS 2:1-3 escreveu:
Naqueles dias, apareceu um édito de César Augusto, ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado. Este recenseamento foi o primeiro enquanto Quirino era governador da Síria. E todos iam se alistar, cada um na própria cidade.
Dos atos de domínio de Roma sobre os países conquistados, o censo era o que havia de mais impopular, porque era a base do imposto.
O censo permitia significativo avanço no controle e organização do império de Augusto, o Venerado, classificando homens e contabilizando bens, objetivando o lançamento de impostos e o serviço das armas. No entanto, não há evidência histórica de um censo mundial na fase de Augusto.
Muitos estudiosos negam a existência do censo, alegando, entre outras coisas, sua ausência de praticidade, ao impor o alistamento na cidade de origem, gerando desordem logística de consideráveis proporções. Sustentam a impropriedade desse deslocamento numa época de rudimentar sistema de transportes e o efeito caótico que decorreria da medida, com tamanha quantidade de pessoas transitando pelas estradas, simultaneamente. Argumentam que o censo teria finalidade fiscal, sendo ilógico cadastrar alguém longe de seu local de domicílio ou trabalho.
O texto evangélico, porém, não estabelece essa exigência como conteúdo do decreto imperial. Na verdade, José apenas seguiu um costume judaico: inscrever-se na aldeia de onde provinha sua casa. A decisão de viajar a Belém atendeu a um hábito local, razoável quando levada em conta a importância que assumia a pureza de linhagem (como visto no capítulo anterior).
A posição predominante entre os especialistas, desde Ernest Renan, é a de recusar o censo, principalmente porque Lucas situa o alistamento durante a administração de Quirino. Essa referência seria cronologicamente inexata. Fontes romanas e judaicas informam que Quirino, muito apreciado seja como militar, seja como administrador, assumiu o governo da Síria no ano 6 d.C., isto é, 11 anos depois do nascimento de Jesus, que ocorreu no ano 749 da fundação de Roma.
Conforme John Dominic Crossan (1994, p. 410), o motivo para Quirino realizar o censo foi a anexação dos territórios de Arquelau, quais sejam, Judeia, Samaria e Idumeia. O etnarca Arquelau não tratou melhor seu povo do que seu pai, Herodes. Pela sua crueldade, foi deposto e exilado por ordem de Augusto, em 6 d.C.
Vários estudos buscaram estender operações de estatística e de cadastro, ordenadas por Augusto, aos domínios de Herodes. Contudo, não foram considerados estudos respeitáveis.
Uma tradição conferiu o recenseamento a Sentius Saturninus, governador da Síria a partir de 8 a.C., e Lucas teria confundido seu nome com o de Quirino.
Werner Keller (1978, p.
355) relatou a descoberta de um fragmento de inscrição romana em Antioquia, registrando a presença de Quirino na Síria antes de se tornar governador dessa província, incumbido, na ocasião, de missão militar. Ele teria fixado residência e quartel-general na Síria, entre os an
os 10:7 a.C. Todavia, segundo Renan (2003, p. 99, nota 4), essa inscrição “pela qual se tentava outrora estabelecer que Quirino fez dois recenseamentos é reconhecida como falsa”, mas o renomado autor não explica por que ela é falsa.
Os especialistas silenciam quanto a essa inscrição curiosamente harmônica com
LUCAS 2:2: “Esse recenseamento foi o primeiro”. Essa afirmação dá a entender a existência de outros censos, sendo possível, portanto, um segundo censo, talvez o realizado no começo da administração de Quirino na Síria, enquanto o referido por Lucas seria aquele no qual nasceu Jesus.
Anne Logeay (2003, p.
18) opinou que a “incerteza ligada ao texto de Lucas pode ser legitimamente explicada pela confusão entre um recenseamento provincial, isto é, uma operação pontual [...], e as operações que correspondem a um recenseamento geral do império”.
O pensamento dominante, no entanto, supõe que a omissão de Marcos e João sobre o assunto e as diversas citações de Mateus, indicando Nazaré como a terra de Jesus, sugerem que o parto em Belém foi uma elaboração posterior da comunidade cristã primitiva, em tentativa de ajustar Jesus às profecias messiânicas.
Na síntese de Pierre-Antoine Bernheim (2003, p. 42), “Lucas tentou tornar compatível um fato histórico (a origem galilaica de José) com uma construção teológica (o nascimento de Jesus em Belém)”.
A indagação formulada no episódio da Festa dos Tabernáculos viria corroborar essa assertiva (
JOÃO 7:41-42):
— “Porventura pode o Cristo vir da Galileia? A Escritura não diz que o Cristo será da descendência de Davi e virá de Belém?”
Os interlocutores desse diálogo desconheciam o nascimento de Jesus em Belém, e não são esclarecidos, na ocasião, quanto à procedência belemita de Jesus.
Entre os estudiosos espíritas, o emérito Hermínio Miranda optou pela corrente majoritária e contestou o nascimento em Belém. Ele ainda considerou, depois de apoiar-se nos usuais argumentos:
Acresce que a menção feita a Belém [...] não parece ser especificamente à cidade, do ponto de vista histórico e geográfico e, sim, como símbolo da Casa de Davi, numa conhecida figura de sintaxe. Vejamos: “Mas tu, Efrata, embora pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será dominador em Israel”. Um membro da casa de Orléans, por exemplo, não teria, hoje, de nascer necessariamente na cidade de Orléans e sim nascer no clã dos Orléans. A ideia de que Jesus seria mesmo aquele belicoso Messias anunciado levou a lamentáveis violências ao texto primitivo. Tornou- se necessário imaginar uma fórmula que, pelo menos para aqueles tempos, fosse aceitável para fazer Jesus nascer em Belém. (MIRANDA, 1988, p. 46.)
É preciso, no entanto, questionar: se o nascimento em Belém foi um embuste, por que agregar a ele um elemento histórico tão extraordinário, a saber, um censo como pretexto para a viagem Nazaré–Belém? Não seria mais fácil estabelecer outra razão menos complexa?
LUCAS 2:2 é irrelevante quando afirma que “esse recenseamento foi o primeiro”?
Bruno Maggioni (in GHIBERTI, 1986, p.
2) observou:
Os evangelhos não são uma crônica, mas, sim, uma pregação e um testemunho; respeitam a historicidade essencial das coisas a que se referem, mas sobrepõem a ela uma ampla reflexão teológica, de modo que as referências históricas e as reflexões espirituais confundem-se quase completamente.
Os evangelhos são textos de divulgação de uma mensagem organizados dezenas de anos depois, e não biografias. Seus organizadores colheram informes da tradição oral e de algumas esparsas e fragmentadas fontes escritas em circulação, mas é de se presumir que eles não dispusessem de bibliotecas de consulta para definirem a cronologia de um acontecimento.
Por isso, Maggioni (in GHIBERTI, 1986, p.
7) preferiu a mais simples das explicações sugeridas para essa discrepância entre Lucas e as demais fontes. Lucas, cerca de oito décadas depois do nascimento de Jesus (
KONINGS, 1998, p. 130), não se preocupou com exatidão histórica. Seu objetivo foi localizar o natalício no contexto temporal greco-romano. Para isso, ligou o censo ao governante mais conhecido da Palestina, em torno da época.
Fato é que, no século II d.C., o movimento cristão tinha inteira segurança do nascimento de Jesus em Belém.
LUCAS 2:6-7 relata que o casal chegou a Belém e, quando lá estava, “completaram-se os dias para o parto, e ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia um lugar para eles na sala”.
A tradução da Bíblia de Jerusalém diz sala. Já a tradução ecumênica das Edições Loyola e a de Haroldo Dutra preferem sala dos hóspedes. João Ferreira de Almeida empregou hospedaria. Outras traduções optaram por pousada, estalagem.
No Oriente Médio, por milênios, existiu um tipo de abrigo onde as caravanas de camelos e viajantes costumavam passar a noite. Era chamado caravançarai. Consistia em um pátio cercado por muralhas e um único portão, protegendo acomodações de primeira, segunda e terceira classe, estando os melhores aposentos no andar superior, onde ficavam os quartos exclusivos para hóspedes ricos. Outros viajantes repousavam num aposento comum a todos. Quando não havia mais lugar, ou em se tratando dos mais pobres, as esteiras eram espalhadas tanto no pátio como no primeiro andar, áreas destinadas aos estábulos.
Maria talvez tenha entrado em trabalho de parto num lugar assim. Não havendo lugar nos aposentos compatíveis com sua condição financeira, ela pode ter sido acomodada junto aos estábulos.
Por outro lado, pesquisas arqueológicas demonstraram que os vilarejos da Judeia costumavam construir suas casas aproveitando as grutas naturais. Nas ruínas de Yatta, na Judeia, as pesquisas informaram que, de ordinário, as casas possuíam cavernas e manjedouras no piso inferior, utilizado durante o inverno para a proteção dos animais, cujo calor aquecia o segundo pavimento. Havia também casas mais simples,
organizadas da mesma forma por grutas, separadas para abrigar, de um lado, animais, e, do outro, a vida doméstica das pessoas.
Belém é a cidade dos ancestrais de José. Natural que se hospedasse entre os parentes. Nesse caso, a opção pela tradução sala se adequaria perfeitamente à arquitetura local.
O texto grego serve-se da palavra katalyma, que designa sala para guardar utensílios do lar, ao lado da qual os animais domésticos pernoitavam. Para dizer hospedaria ou albergue, deveria ser utilizado o grego pandocheío — alojamento público.
Como Mateus deixa entender que José e Maria sempre viveram em Belém, ao inserir o episódio dos magos do Oriente, escreveu: “Ao entrar na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o homenagearam”. (
MATEUS 2:11.) Os magos visitaram o casal e a criança em uma casa.
Investigações realizadas na Basílica da Natividade descobriram uma rede subterrânea de grutas com artefatos datados desde o século VI a.C., demonstrando que as grutas já eram utilizadas no período de Jesus. Uma delas está situada logo abaixo do altar principal. Os trabalhos arqueológicos descobriram ainda muitos túmulos, datados, na maioria, do período de São Jerônimo (347–420 d.C.), documentando o desejo dos primeiros cristãos de terem sepultura em lugar santo, sugerindo o nascimento de Jesus na gruta vizinha.
Jesus nasceu na Judeia, em Belém.
Amélia Rodrigues (FRANCO, 1991a, p. 17), lastreada nas fontes espirituais, corroborou o nascimento em Belém e a viagem longa, especialmente para aquela mulher grávida, durante quatro ou cinco dias sacudida pelo trote da montaria, às vésperas de enfrentar o evento mais perigoso da vida de uma mulher no século I, o parto.