À Luz da Oração

Capítulo XVIII

Socorro espiritual



Sob a influência de Clementino, que o envolvia inteiramente, Silva levantara-se e dirigia-se ao comunicante com bondade:

— Meu amigo, tenhamos calma e roguemos o amparo divino!

— Estou doente, desesperado…

— Sim, todos somos enfermos, mas não nos cabe perder a confiança. Somos filhos de Nosso Pai Celestial que é sempre pródigo de amor.

— É padre?

— Não. Sou seu irmão.

— Mentira. Nem o conheço…

— Somos uma só família, à frente de Deus.

O interlocutor conturbado riu-se irônico e acentuou:

— Deve ser algum sacerdote fanatizado para conversar nestes termos!…

A paciência do doutrinador sensibilizava-nos.

Não recebia Libório, qual se fora defrontado por um habitante das sombras, suscetível de acordar-lhe qualquer impulso de curiosidade menos digna.

Ainda mesmo descontando o valioso concurso do mentor que o acompanhava, Raul emitia de si mesmo sincera compaixão de mistura com inequívoco interesse paternal. Acolhia o hóspede sem estranheza ou irritação, como se o fizesse a um familiar que regressasse demente ao santuário doméstico.

Talvez por essa razão o obsessor a seu turno se revelava menos agastadiço. Tão logo passou a entender-se, de algum modo, com o dirigente da casa, observamos que Eugênia se revigorava no esforço assistencial que lhe competia.

— Não sou um ministro religioso — continuava Raul, imperturbável —, mas desejo me aceite como seu amigo.

— Que irrisão! não existem amigos quando a miséria está conosco… Dos companheiros que conheci, todos me abandonaram. Resta-me apenas Sara! Sara, que não deixarei…

Fixou a expressão de quem se detinha na lembrança da pessoa a quem se referira e acrescentou com recalcada indignação:

— Ignoro por que me entravam agora os passos. É inútil. Aliás, não sei a razão pela qual me contenho. Um homem provocado, qual me vejo, decerto deveria esbofeteá-los a todos… Afinal, que fazem aqui estes cavalheiros silenciosos e estas mulheres mudas? que pretendem de mim?

— Estamos em prece por sua paz — falou Silva, com inflexão de bondade e carinho.

— Grande novidade! que há de comum entre nós? Devo-lhes algo?

— Pelo contrário — exclamou o interlocutor, convicto —, nós somos quem lhe deve atenção e assistência. Estamos numa instituição de serviço fraterno e é fora de dúvida que, num hospital, a ninguém será lícito inquirir da luta particular daqueles que lhe batem à porta, porque, antes de tudo, é dever da medicina e da enfermagem a prestação de socorro às feridas que sangram.

Ante o argumento enunciado com sinceridade e simpleza, o renitente sofredor pareceu apaziguar-se ainda mais. Jactos de energia mental, partidos de Silva, alcançavam-no agora em cheio, no tórax, como a lhe buscarem o coração.

Libório tentou falar, contudo, à maneira de um viajante que já não pode resistir à aridez do deserto, comoveu-se diante da ternura daquele inesperado acolhimento, a surgir-lhe por abençoada fonte de água fresca. Surpreendido, notou que a palavra lhe falecia embargada na garganta.


Sob o sábio comando de Clementino, falou o doutrinador com afetividade ardente:

— Libório, meu irmão!

Essas três palavras foram pronunciadas com tamanha inflexão de generosidade fraternal que o hóspede não pôde sopitar o pranto que lhe subia do âmago.

Raul avançou para ele, impondo-lhe as mãos, das quais jorrava luminoso fluxo magnético, e convidou:

— Vamos orar!

Findo um minuto de silêncio, a voz do diretor da casa, sob a inspiração de Clementino, suplicou enternecidamente:


— Divino Mestre, lança compassivo olhar sobre a nossa família aqui reunida…

Viajores de muitas romagens, repousamos neste instante sob a árvore bendita da prece e te imploramos amparo!

Todos somos endividados para contigo, todos nos achamos empenhados à tua bondade infinita, à maneira de servos insolventes para com o senhor.

Mas, rogando-te por nós todos, pedimos particularmente agora pelo companheiro que, decerto, encaminhas ao nosso coração, qual se fora uma ovelha que torna ao aprisco ou um irmão consanguíneo que volta ao lar…

Mestre, dá-nos a alegria de recebê-lo de braços abertos.

Sela-nos os lábios para que lhe não perguntemos de onde vem e descerra-nos a alma para a ventura de tê-lo conosco em paz.

Inspira-nos a palavra a fim de que a imprudência não se imiscua em nossa língua, aprofundando as chagas interiores do irmão, e ajuda-nos a sustentar o respeito que lhe devemos…

Senhor, estamos certos de que o acaso não te preside às determinações!

Teu amor, que nos reserva invariavelmente o melhor, cada dia, aproxima-nos uns dos outros para o trabalho justo.

Nossas almas são fios da vida em tuas mãos!

Ajusta-os para que obtenhamos do Alto o favor de servir contigo!

Nosso Libório é mais um irmão que chega de longe, de recuados horizontes do passado…

Ó Senhor, auxilia-nos para que ele não nos encontre proferindo o teu nome em vão!…


O visitante chorava.

Via-se, porém, com clareza, que não eram as palavras a força que o convencia, mas sim o sentimento irradiante com que eram estruturadas.

Raul Silva, sob a destra radiosa de Clementino, afigurava-se-nos aureolado de intensa luz.

— Ó Deus, que se passa comigo?!… — conseguiu gritar Libório em lágrimas.


O irmão Clementino fez breve sinal a um dos assessores de nosso Plano, que apressadamente acorreu, trazendo interessante peça que me pareceu uma tela de gaze tenuíssima, com dispositivos especiais, medindo por inteiro um metro quadrado, aproximadamente.

O mentor espiritual da reunião manobrou pequena chave num dos ângulos do aparelho e o tecido suave se cobriu de leve massa fluídica, branquicenta e vibrátil.

Em seguida, postou-se novamente ao pé de Silva, que, controlado por ele, disse ao comunicante:

— Lembre-se, meu amigo, lembre-se! Faça um apelo à memória! Veja à frente os quadros que se desenrolarão aos nossos olhos!

De imediato, como se tivesse a atenção compulsoriamente atraída para a tela, o visitante fixou-a e, desde esse momento, vimos com assombro que o retângulo sensibilizado exibia variadas cenas de que o próprio Libório era o principal protagonista. Recebendo-as mentalmente, Raul Silva passou a descrevê-las:

— Observe, meu amigo! É noite. Ouve-se um burburinho de algazarra a distância… Sua mãe velhinha chama-o à cabeceira e pede-lhe assistência… Está exausta… Você é o filho que lhe resta… Derradeira esperança de flagelada vida. Único arrimo… A pobre sente-se morrer. A dispneia martiriza-a… É o distúrbio cardíaco pressagiando o fim do corpo… Tem medo. Declara-se receosa da solidão, de vez que é sábado carnavalesco e os vizinhos se ausentaram na direção dos centros festivos. Parece uma criança atemorizada… Contempla-o, ansiosa, e roga-lhe que fique… Você responde que sairá tão somente por alguns minutos… o bastante para trazer-lhe a medicação necessária… Em seguida, avança, rápido, para uma gaveta situada em aposento próximo e apropria-se do único dinheiro de que a enferma dispõe, algumas centenas de cruzeiros, com que você se julga habilitado a desfrutar as falsas alegrias do seu clube… Amigos espirituais de seu lar abeiram-se de você, implorando socorro em favor da doente, quase moribunda, mas você se mostra impermeável a qualquer pensamento de compaixão… Dirige algumas palavras apressadas à enferma e sai para a rua. Em plena via pública, imanta-se aos indesejáveis companheiros desencarnados com os quais se afina… entidades turbulentas, hipnotizadas pelo vício, com as quais você se arrasta ao prazer… Por três dias e quatro noites consecutivos, entrega-se à loucura, com esquecimento de todas as obrigações… Somente na madrugada de quarta-feira você volta estafado e semi-inconsciente… A velhinha, socorrida por braços anônimos, não o reconhece mais… Aguarda, resignadamente, a morte, enquanto você se encaminha para um quarto dos fundos, na expectativa de conseguir um banho que o auxilie a refazer-se… Abre o gás e senta-se por alguns minutos, experimentando a cabeça entontecida… O corpo exige descanso, depois da louca folia… A fadiga surge, insopitável… Desapercebe-se de si mesmo e dorme semi-embriagado, perdendo a existência, porque as emanações tóxicas lhe cadaverizam o corpo… Na manhã clara de sol, um rabecão leva-o ao necrotério, como simples suicida…

Nessa altura, o interlocutor, como se voltasse de um pesadelo, bradou desesperado:

— Oh! esta é a verdade! a verdade!… onde está minha casa? Sara, Sara, quero minha mãe, minha mãe!…

— Acalme-se! — recomendou Raul, compadecido — nunca nos faltará o socorro divino! seu lar, meu amigo, cerrou-se com os seus olhos de carne e sua genitora, de outras esferas, lhe estende os braços amorosos e santificantes…

O comunicante, vencido, caiu em lágrimas.

Tão grande lhe surgiu a crise emotiva que o mentor espiritual do grupo se apressou a desligá-lo do equipamento mediúnico, entregando-o aos vigilantes para que fosse convenientemente abrigado em organização próxima.

Libório, em fundo processo de transformação, afastou-se, tornando Eugênia à posição normal.


E porque a tela regressasse à transparência do início, desfechei sobre o nosso orientador algumas indagações improvisadas.

Que função desempenhava aquele retângulo que eu ainda não conhecia? que cenas eram aquelas que se haviam desdobrado céleres sob a nossa admiração?

— Aquele aparelho — informou Áulus, gentil — é um “condensador ectoplásmico”. Tem a propriedade de concentrar em si os raios de força projetados pelos componentes da reunião, reproduzindo as imagens que fluem do pensamento da entidade comunicante, não só para a nossa observação, mas também para a análise do doutrinador que as recebe em seu campo intuitivo, agora auxiliado pelas energias magnéticas do nosso Plano.

— Evidentemente, a engrenagem de semelhante mecanismo deve ser maravilhosa? — exclamou Hilário, sob forte impressão.

— Nada de espanto — alegou o orientador —; o hóspede espiritual apenas contempla os reflexos da mente de si mesmo, à maneira de pessoa que se examina, através de um espelho.

— Mas, se estamos à frente de um condensador de forças — considerei —, precisamos concluir que o êxito do trabalho depende da colaboração de todos os componentes do grupo…

— Exato — confirmou o Assistente —, as energias ectoplásmicas são fornecidas pelo conjunto dos companheiros encarnados, em favor de irmãos que ainda se encontram semimaterializados nas faixas vibratórias da experiência física. Por isso mesmo, Silva e Clementino necessitam do concurso geral para que a máquina do serviço funcione tão harmoniosamente quanto seja possível. Pessoas que exteriorizem sentimentos menos dignos, equivalentes a princípios envenenados nascidos das viciações de variada espécie, perturbam enormemente as atividades dessa natureza, porquanto arrojam no condensador as sombras de que se fazem veículo, prejudicando a eficiência da assembleia e impedindo a visão perfeita da tela por parte da entidade necessitada de compreensão e de luz.

Levava-nos o assunto a diferentes inquirições, mas o nosso orientador lançou-nos um olhar discreto, como a pedir-nos silêncio e atenção.




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