À Luz da Oração

Capítulo XL

Em prece



Um ano depois do casamento de Antonina, dirigimo-nos todos juntos à residência do ferroviário, na qual tantas vezes nos reuníramos entre a prece e a expectação.

A vida marchara como sempre…

Júlio e Leonardo haviam renascido em paz, quase que ao mesmo tempo, trazendo ao mundo elevados programas de serviço. Recém-chegados à Terra, sorriam ingenuamente para nós, conchegados ao colo materno.

Amaro e Zulmira, Silva e Antonina, cônscios das obrigações que haviam assumido, prosseguiam juntos, entrelaçados na mesma compreensão fraternal.

O singelo domicílio mostrava-se magnificamente florido, superlotado de amigos sorridentes.

Lucas e Evelina celebravam os esponsais.

Nos dois Planos, entre encarnados e desencarnados, tudo era esperança e alegria, paz e amor.

Os noivos fitavam-se venturosos e Odila, na função de sacerdotisa do lar, ia e vinha, pondo e dispondo na direção do acontecimento.

Entardecia, quando o juiz, com a felicidade de todos, lido o contrato de matrimônio, pronunciou o clássico “declaro-vos casados em nome da Lei”.

Oscularam-se os nubentes com inexcedível afeto e vimos espantados que Odila, em muda oração, se transfigurava, coroando-se de luz. Desvelou os olhos que se nos afiguraram mais lúcidos e contemplou a filha, embevecidamente.

Obedecendo, porém, a secreto impulso, ao invés de caminhar na direção de Evelina, dirigiu-se para Zulmira, enlaçando-a em lágrimas.

Havia naquele gesto tanto carinho natural e tanto reconhecimento espontâneo, que intensa emotividade nos tomou de assalto. Transfundiam-se ali dois corações maternos, na mesma vibração de paz, haurida na vitória interior pelo dever bem cumprido.

Envolta na faixa de ternura em que se via mergulhada, a segunda esposa de Amaro começou a chorar, possuída de inexprimível contentamento, como se inarticulada melodia do Céu lhe invadisse, por inteiro, o coração.

Ali mesmo, homem tocado de fé viva, o dono da casa rogou a Antonina pronunciasse o agradecimento a Jesus.

A esposa de Silva não vacilou.

Cerrando as pálpebras, parecia procurar-nos em espírito, qual antena vibrátil, atraindo a onda sonora.

Clarêncio abeirou-se dela e, tocando-lhe a fronte com a destra, entrou em meditação. Suavemente impulsionada pelo Ministro, nossa amiga orou com sentida inflexão de voz:


Amado Jesus, abençoa a nossa hora festiva que te oferecemos em sinal de carinho e gratidão.

Ajuda aos nossos companheiros que hoje se consorciam, convertendo-lhes a esperança em doce realidade.

Ensina-nos, Senhor, a receber no lar a cartilha de luz que nos deste no mundo — generosa escola de nossos corações para a vida imortal.

Faze-nos compreender, no campo em que lutamos, a rica sementeira de renovação e fraternidade em que, a todos, nos cabe aprender e servir.

Que possamos, enfim, ser mais irmãos uns dos outros, no cultivo da paz, pelo esforço no bem.

Tu que consagraste a ventura doméstica, nas bodas de Canã, transforma a água viva de nossos sentimentos em dons inefáveis de trabalho e alegria.

Reflete o teu amor na simplicidade de nossa existência, como o Sol se retrata no fio d’água humilde.

Guia-nos, Mestre, para o teu coração que anelamos eterno e soberano sobre os nossos destinos, e que a tua bondade comande a nossa vida é o nosso voto ardente, agora e para sempre. Assim seja.


Calara-se Antonina.

Doce exaltação emotiva pairava em todos os semblantes.

Odila, sensibilizada, reunia Amaro e Zulmira nos braços, quais se lhe fossem filhos do coração.

Fitei a esposa de Silva, de quem o Ministro se afastara, e em que lhe visitei o domicílio pela primeira vez.

Nunca me esqueci da excursão em que fomos designados para acompanhá-la em visitação ao filhinho, quando ignorávamos totalmente a importância de sua participação no drama que iríamos viver.

Dirigi-me ao instrutor e indaguei se ele, Clarêncio, conhecia a posição de nossa amiga, ao tempo de nosso primeiro contato.

— Sim, sim… — Respondeu, gentil, — mas não lhes dei a conhecer antecipadamente a significação dela no romance vivo que estamos acompanhando, porque todos nós, meu amigo, precisamos reconhecer que o trabalho é a nossa lição. Movamos a mente no serviço que nos compete e adquiriremos a chave de todos os enigmas.

O apontamento era dos mais expressivos, mas não pude delongar a conversação, de vez que Irmã Clara, agora abraçada a Odila, convidava-nos ao regresso.

Entre adeuses cariciosos, Lucas e Evelina haviam tomado o auto que os conduziria a experiências novas na capital bandeirante.

A festa alcançara o fim…

Ao lado de nosso orientador, perguntei, reverente:

— Nossa história terminará, assim, com um casamento risonho, à moda de um filme bem acabado?

Clarêncio estampou o sorriso de sua velha sabedoria e falou:

— Não, André. A história não acabou. O que passou foi a crise que nos ofereceu motivo a tantas lições. Nossos amigos, pelo esforço admirável com que se dedicaram ao reajuste, dispõem agora de alguns anos de paz relativa, nos quais poderão replantar o campo do destino. Entretanto, mais tarde, voltarão por aqui a dor e a prova, a enfermidade e a morte, conferindo o aproveitamento de cada um. É a luta aperfeiçoando a vida, até que a nossa vida se harmonize, sem luta, com os Desígnios do Senhor.

O Ministro não logrou prosseguir.

Nossa caravana, constituída por dezenas de companheiros, iniciara a volta.

A viagem, diante do firmamento que acendia flamejantes lumes, não podia ser mais bela…

Chegados, porém, ao Lar da Bênção, notamos que Odila chorava copiosamente.

Aquela alma varonil de mulher vencera a batalha consigo mesma, no entanto, não parecia satisfeita com o próprio triunfo. Clara conseguira-lhe brilhante posição de trabalho nas Esferas mais altas, contudo, nossa heroína revelava-se em penosa consternação.

Penetrando o santuário de Blandina, onde tantas vezes nos reuníramos para examinar os problemas que nos afligiam de perto, o Ministro abraçou-a e recomendou, paternal:

— Odila, enquanto celebramos tua vitória, dize que Céu procuras!

Ela caminhou para Irmã Clara e osculou-lhe a destra, num gesto mudo de reconhecimento e, depois, voltando-se para o nosso instrutor, respondeu com humildade:

— Devotado benfeitor, meu lar terrestre é o meu paraíso…

— Mas não ignoras que o domicílio do mundo não te pertence mais.

— Sim, — concordou a interlocutora, respeitosa, — sei disso, entretanto, desejo servir a ele, sem que ele seja meu… Amo meu esposo por inesquecível companheiro da vida eterna, abençoando a admirável mulher a quem ele agora pertence e que passei a querer por filha de minha ternura… Amo meus filhos, apesar de saber que não podem presentemente sentir o calor de meu coração… Deus sabe que hoje amo sem o propósito de ser amada, que me proponho oferecer-me sem retribuição, a fim de aprender com Jesus a dar sem receber…

A emoção embargou-lhe a voz.

De nosso lado, tínhamos nossos olhos marejados de pranto.

Visivelmente comovido, Clarêncio levantou-lhe a fronte submissa, afagou-lhe os cabelos e, colocando-lhe uma flor de luz sobre o peito, exclamou:

— Onde permanece o nosso amor, aí fulgura o Céu que sonhamos. Mereces o paraíso que procuras. Retorna, Odila, ao teu lar quando quiseres. Sê para o teu esposo e para as almas que o seguem o astro de cada noite e a bênção de cada dia! O amor puro outorga-te esse direito. Volta e ama…

E, quando te ergueres do vale humano, teu coração será como faixa de sol, trazendo ao Cristo os corações que pastorearás no campo imenso da vida!

Odila ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos veneráveis.

Nesse instante, funda saudade assomou-me à alma opressa.

Experimentei a estranha sensação do pai que busca inutilmente os filhos arrebatados ao seu carinho. Ave distante da paisagem que a vira nascer, vi-me atormentado pelo anseio de recuperar, de imediato, o meu ninho…

Lágrimas quentes derramavam-se de meu coração pela concha dos olhos e, temendo perturbar a harmonia reinante, demandei o jardim próximo e, sozinho, fitei o firmamento, pintalgado de estrelas…

O vento que soprava célere parecia dizer-me:

— “Confia!…”

O perfume das flores, de passagem por mim, apelava em silêncio:

— “Não te detenhas!”

E as constelações faiscantes, pendendo da Altura, davam-me a impressão de acenos da luz eterna, concitando-me sem palavras:

— “Luta e aperfeiçoa-te! A plenitude do teu amor brilhará também um dia!…”

Então, numa prece de agradecimento ao Pai Celestial, percebi que meu espírito pacificado sorria, de novo, ao toque inefável de sublime esperança.