A Vida Conta

Capítulo XX

O irmão do caminho



Simeão era muito moço ainda

Quando escutou a história de Jesus

E, acendendo esperanças na alma linda,

Inflamou-se de fé, amor e luz…


Morando numa choça da montanha

Junto de antiga estrada, sem vizinho,

Era a bondade numa vida estranha,

O amigo dedicado aos irmãos do caminho.


Lia os ensinamentos do Senhor,

Mas afirmava precisar

De ação que lhe exprimisse o grande amor

Na fé que decidira praticar.


Na pequena morada, pobre e agreste,

Cavou no solo um poço… Água de mina,

Que ele, olhos em luz e sorriso na face

Oferecia a quem passasse

Por lembrança de paz da Bondade Divina…


Viajores a pé, na vereda escarpada,

Se chegavam ali, no entardecer,

Podiam descansar das fadigas da estrada,

Ouvindo Simeão que os fazia viver

Casos da natureza simples e selvagem…

Era a história das aves de viagem

Que paravam por lá, na primavera,

A descrição dos melros e dos ninhos

Que defendiam valorosamente

Os frágeis filhotinhos!…

A saga do pardal inteligente

Que lhe comia as uvas do quintal…

Em seguida, falava aos interlocutores,

Das lições de Jesus, da beleza das flores,

Do sol no amanhecer e das flautas do vento…

E se alguém lhe indagava de onde vinha

Para a estreita choupana que o detinha,

Explicava, de jeito improvisado,

Que ele fora, ao nascer, um pequeno enjeitado

Às portas de um convento.

Crescera trabalhando em lavação de prato,

Mas amava a Jesus, de tal maneira,

Que, homem feito, o mosteiro lhe doara

O recanto de mato,

Na montanha empedrada

E os restos da tapera abandonada

Onde ele cultivava uma antiga parreira…


Quando a noite avançava,

O irmão do caminho

Colocando em trabalho a candeia de azeite,

Dava a cada viajante

A tigela de leite

Que provinha das cabras que criava…

Mas, não ficava nisso…

Fizera Simeão um compromisso:

Recordando Jesus,

Ante os primeiros doze seguidores,

Lavava os pés de todos os viajores;

Logo após, era, enfim, uma prece ligeira

Antes que cada um tomasse a própria esteira.


Simeão alcançara os oitenta janeiros,

Trabalhando e servindo, dia a dia,

Sem quaisquer outros companheiros

Que não fossem viajantes

A pedirem pousada, companhia,

Uma noite de paz ou um copo de água fria.


Certa noite chuvosa, escorado a um bordão

De corpo recurvado para o chão,

O estimado velhinho

Sentia-se sozinho…

De quando em quando, abria a porta,

Podia haver alguém varando a noite fria e morta,

Mas não vinha ninguém…


Era Natal… Quase ninguém saía

Dos recessos do lar

A fim de relembrar

A noite que trouxera o Grande Dia.


Antes de recolher-se, Simeão

Meditando em Jesus colocou sobre a mesa

Uma flor lirial da natureza

E depôs sobre ela,

Qual medalha singela,

Uma efígie miúda de criança

Com Jesus pequenino na lembrança…


Em seguida, deitou-se fatigado,

Deixando, a muito custo, o apoio do cajado…


O velhinho velava, ouvindo a voz do vento…

Lá fora, o temporal fizera-se violento.


Alta noite, uma voz chamou, baixinho:

— “Simeão, Simeão!… Meu irmão do caminho!…”

— “Quem sois vós?”— respondeu o interpelado.

— “Um peregrino desacompanhado…

Rogo pousada, irmão!” — clamou o forasteiro.

Ergueu-se devagar o cansado hospedeiro.

Fez luz, abriu a porta.

Mas o vento apagou a chama semi-morta.

— “Entrai !…” — disse o velhinho —,

— “Agora sei que não estou sozinho.”


Acendendo, de novo, a mecha da candeia,

Ante o brando clarão que renasce e se alteia,

Vê o recém-chegado a se acolher num canto…

Era um homem de rosto triste e doce,

Calado qual se fosse

Alguém a ouvir os próprios pensamentos…

Simeão enxergou-lhe os pés sangrentos,

Os cabelos molhados, a tristeza…

Fez fogo para dar-lhe o leite quente

E, ao estender-lhe a humílima tigela

Indagou-lhe o viajor

Por que a flor singela

Que ele notava sobre a mesa em frente…

Simeão respondeu ao peregrino:

— “Estamos no Natal e muitas vezes penso

Que Nossa Mãe do Céu, em seu amor imenso

Era uma flor de Deus, dando à luz um menino…”


O homem sorriu sem nada comentar…


O velhinho, entre passos mal firmados,

Sempre movimentando a luz acesa,

Trouxe a bacia de água morna e leve

Mergulhando-lhe os pés ensanguentados…

Ao ver-lhe os dedos maltratados,

Disse ao viajor, tomado de surpresa:

— “Quanto sangue verteis!… Como tendes andado!…”

Deu-lhe o estranho viajante esta resposta leve:

— “Deus te abençoe, amigo, a assistência bem-vinda!…

Creio que devo andar por muito tempo ainda!…”


De joelhos, Simeão,

Em lhe lavando os pés com infinito carinho,

A refletir nas pedras do caminho,

Ao lhe tocar nas crostas das feridas

A fim de removê-las,

Viu que as chagas abertas

Eram duas estrelas…

O velhinho assombrado

Buscou fitar-lhe as mãos com ternura e respeito

E viu que estavam nelas

Grandes marcas da cruz, luminosas e belas,

Ampliando o fulgor que lhe envolvia o peito…


Ele grita, chorando de alegria:

— “Jesus!… Sois vós Jesus?!…”

E o Senhor, levantando as mãos em luz,

Disse, abraçando o ancião:

— “Vem a mim, Simeão, É chegado o teu dia

De repouso e de luz no Mais Além…”


Simeão esqueceu a velhice e o cansaço

E pousou a cabeça em seu regaço…

Depois do amanhecer, outros viajantes

Chegaram como dantes,

Pedindo água, descanso, reconforto,

Mas viram que Simeão o irmão do caminho

De joelhos, parado, ali sozinho,

Muito embora sorrisse, estava morto…