A Vida Conta

Capítulo XXIX

Experiências



Uma história de culpa e redenção

Que só pude entender

Fitando a vida na reencarnação:


Há mais de um século passado,

Jovem senhora de fortuna imensa

Desfez-se do homem bom que havia desposado,

Propinando-lhe a morte

Aproveitando antiga desavença.


O marido morreu, sem saber que a consorte

Era a autora do crime…

Sob o açoite invisível de veneno,

Desligou-se do corpo, acreditando

Ter sido vítima de um bando

De conhecidos salteadores,

Que lhe haviam furtado extensa faixa

De lavoura e terreno…


Ela fingiu sofrer, chorou a lamentar-se

Resguardando a frieza em pomposo disfarce:

Depois, armou-se de brazão e herança,

Em seguida a mais ouro, ei-la que avança

No rumo do prazer, unicamente…

Borboleta das noites de aventura,

Converteu-se em esfinge de loucura

E espalhava paixões, assassinatos,

Suicídios e duelos insensatos,

Até que, um dia, a morte

Surgiu numa doença e abateu-a de todo…

A fidalga saiu de túmulo dourado,

Abominando o corpo aniquilado

Como quem deixa um cárcere de lodo.


Atônita, encontrou na própria mente

As sombras que largara para trás…

Via os homens que amara, odiando-lhe o nome

E os lares que ela mesma havia destruído

Sem alento e sem paz,

Padecendo viuvez, necessidade e fome,

Em razão dos seus gestos sem sentido…


Ao fim de tempo longo em suplício e cansaço,

Vendo em si própria a culpa e a punição reunidas,

Rogou regresso ao mundo em lágrimas doridas;

Queria renascer, desprezada e doente,

De maneira a expiar os erros que fizera…

Foi assim que a fidalga ressurgiu

Na penúria de humílima tapera.

Ninguém lhe conhecia a genitora…

A pequenina fora

Simplesmente enjeitada

Sobre o lodoso vão de uma velha calçada…


Recolhida num lar de gente boa,

Cedo mostrou-se como viveria,

Débil mental, vagando à-toa,

Muda e louca, chamavam-na Maria;

E porque andasse, ao léu, de porta em porta,

Fosse onde fosse, se chorava ou ria,

Populares gritavam: “Sai, Maria!…

Não te queremos… Sai, Maria Torta!…”

E a pobre em se sentindo injuriada

Pelo cruel pejorativo,

Buscava defender-se a rugido e pedrada,

Ferindo o próprio peito morto-vivo…


Sessenta anos viveu à noite e ao vento,

Sem pouso certo, atada ao sofrimento…


Dias atrás, fui vê-la… Achei Maria

Num recanto de pobre enfermaria…

Era um farrapo humano, uma sombra de gente

Que a moléstia arrasava, asperamente…


Dera-lhe a caridade um colchão por guarida

E a morte lhe traria o apoio de outra vida…


Agonizou, por fim, a nobre companheira

Que varara; gemendo, uma existência inteira.


Nós, — a equipe de simples servidores —,

Expressando-lhe amor em visita singela,

Orávamos em grupo, junto dela,

Suplicando a Jesus lhe amenizasse as dores…


Quando o corpo cansado demonstrou

Que não mais lhe servia,

Mensageiros da Altura, com cuidado,

Libertaram Maria…


Foi um deslumbramento inesperado.

A sala estreita e pobre iluminou-se,

Ramalhetes lembrando estranhas primaveras

Chegavam pelas mãos de amigos de outras eras…


Jubilosa e espantada, vi Maria

Deixar o corpo em pranto de alegria…

Seres angelicais cantavam em surdina

Doces evocações da Morada Divina…

A pobre soluçava ao tentar entendê-las…


Logo após, envolvida em flores luminosas,

Numa sege de luz, enfeitada de rosas,

Maria se elevou para além das estrelas…