Antologia dos Imortais

Eu só



Eu só e o surdo mundo… 23

O leito me veste em branco.

As cadeiras repousam em branco.

As paredes estão levantadas em branco,

sustentando o teto parado, em branco.

As janelas talhadas em branco

deixam passar o vento gárrulo e brincalhão,

que desliza sem cor.

As cortinas, parecendo longas mãos brancas,

engastadas nos braços rijos da porta,

acenam adeus, em branco.


Eu só e o surdo mundo… 34

Quero fitar os rostos que me cercam,

mas vejo apenas semblantes graves,

semelhantes a camafeus de cobre em placas de alumínio.

Quero gritar o terror do desconhecido,

mas a boca foi trancada pelas chaves da névoa muito branca

que me envolve de todo…

Falam somente em mim as grossas gotas brancas

que me rolam da face.


Eu mudo e o surdo mundo…

Depois de muitas horas da expectativa em branco,

na vazante branca em que ainda respiro,

surge a enchente das sombras.

Tudo crepeia em torno…

Céus! Não sou Deus

que traduz a noite em poema de estrelas,

nem pirilampo humilde que acende a lanterninha lucilante…


Eu cego e o surdo mundo…

Levanto-me, tateio, choro, clamo, esmagado pelas mós invisíveis da escuridão,

por muito tempo…


De improviso, porém, nova luz rasga as trevas, e os fotônios,

que me atingem as pupilas cansadas, dizem-me sem palavras

para que me aquiete,

anunciando, por fim,

que Deus é meu pai

e que a Vida é minha mãe,

guardando-me nos braços,

para sempre, para sempre!


Caetano PERO NETO — Contista, romancista, e poeta do grupo dos “novíssimos”, cursava o 5.° ano da Faculdade de Direito de S. Paulo, quando desencarnou. Nos últimos tempos de ginásio, colaborava nos jornais de Itápolis. Depois encetou a publicação de poesias e contos nos periódicos , , , etc. Orador oficial da Associação Acadêmica “Álvares de Azevedo”, aos 19 anos já “era o representante intelectual do corpo discente da Faculdade” (, pág. 12). Em 1936, foi eleito presidente da referida Associação Acadêmica. Redigiu, com Osmar Pimentel e Mário da Silva Brito, a folha universitária . Participou do movimento intelectual da “Bandeira”, chefiado por Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia. Membro da Academia de Letras da Faculdade. Ulisses Guimarães (., página
469) disse que ele “foi um lírico, como tal eminentemente subjetivo”. “Seus poemas,” — escreveu Dulce Salles Cunha (, pág.
229) — “em geral muito pessoais, são quase todos isentos de senões.” (Itajobi, Est. de S. Paulo, 21 de Agosto de 1916 — S. Paulo, Est. de S. Paulo, 23 de Dezembro de 1937.)

BIBLIOGRAFIA: , obra póstuma.



2-5. Observe-se o ricochete nos dois versos: “Pássaro livre, plana, plana…” e “A fonte corre, corre…”

Epanástrofe: “…encarcerando a ideia. /Mas a ideia…” Cf. Dic. Gramatical — Português, Prof. Francisco Fernandes.

Enumeração: “Recurso estilístico, denominado enumeração caótica por Leo Spitzer, e consistente em uma apresentação, quase catalogal, de ideias ou elementos que se sucedem com um máximo de rapidez e fluência, sem prejuízo da qualidade do texto, …” (Geir Campos, Op. cit.)

Dentro dos moldes modernistas, “O Espírito” guarda aquela beleza das coisas transcendentais. “Pólen do Universo — o Espírito” — imagem das mais admiráveis; “soltar a melodia das masmorras de sombra para a festa dos sóis”; “esgarçar as brumas de todas as prisões” — são versos que pelo seu poder imagístico e dinamismo expressivo por si sós revelam a perícia do poeta para contagiar o espírito do leitor com o belo que dimana de seus versos livres. Aliás, Pero Neto preenche a finalidade do poeta: “fixar a beleza que passa”, com a diferença de que ele fixa, agora, a beleza que nunca passará — o Espírito.

23-34. Observem-se, versos mais abaixo, as variantes do antecanto “Eu só e o surdo mundo”.

Digno de nota o gosto obsessivo do poeta pelo vocábulo “branco”, chegando a praticar, quase, a batologia.

Atente-se na dinamização expressiva dada pelo assíndeto.


(Psicografia de Francisco C. Xavier)