Ave, Cristo!

Capítulo I

Provas e lutas



O ano 250 corria sob nuvens pesadas…

Desde a subida de Décio ao poder, a metrópole romana e as províncias atravessavam enormes inquietações.

O novo Imperador odiava os postulados do Cristianismo e, por isso, desencadeara terrível e sistemática perseguição contra os prosélitos do novo ideal religioso.

Editos sanguinolentos, ordens rigorosas e missões punitivas foram expedidas em variadas direções.

Ameaças, buscas, inquéritos e prisões espalharam-se em toda a parte. Fogueiras, feras, espadas, unhas de ferro em brasa, ecúleos, tenazes e cruzes foram trazidas fartamente aos processos de flagelação. Prêmios foram estabelecidos para quem inventasse novos gêneros de tortura.

E os magistrados, quase todos dados ao culto do temor e da bajulice, primavam na execução dos desejos do novo César.

Em Cartago, as famílias cristãs sofriam vexames e apedrejamentos; em Alexandria, os suplícios se multiplicavam sem conto; nas Gálias, os tribunais viviam repletos de vítimas e delatores; em Roma, intensificavam-se os espetáculos de morte nos circos…


Entre os sucessos deploráveis da época, a vila Vetúrio, em Lião, mostrava-se menos festiva, todavia, mais laboriosa e mais frutescente.

Desde a morte de Varro, Opílio retirara-se em companhia de Galba, para a capital do mundo, sem jamais haver trocado palavra com o genro.

As terríveis surpresas havidas entre ambos, desde o suicídio de Flávio Súbrio, cavaram, entre os dois, abismos de silêncio e fria animadversão, no fundo dos quais as amargas revelações obtidas jaziam como segredos indevassáveis do coração.

Desajustado, desde o instante em que tomara conhecimento da verdade alusiva ao pretérito, Taciano buscava afogar no serviço as mágoas e as preocupações que lhe conturbavam o mundo íntimo.


Devotado à esposa, que sempre lhe merecia o maior carinho, tentou concentrar nela todos os seus cabedais afetivos; entretanto, Helena era demasiado frívola para compreender-lhe a dedicação. Absorvida em atividades sociais numerosas, viajava frequentemente, ora visitando relações de amizade em localidades fronteiriças, ora seguindo ao encontro do pai e do irmão, na metrópole imperial. Estranhara, a princípio, o afastamento paterno, cuja verdadeira causa jamais conseguiu conhecer, mas habituou-se, por fim, com a ausência de Vetúrio, supondo que o genitor encontrava mais alegria em envelhecer, tranquilo, na cidade que lhe servira de berço.

Sempre acompanhada de Anacleta, sua antiga governanta, era assídua frequentadora do teatro, do circo, das corridas e dos jogos.

Não valiam, para alterar-lhe a conduta, as solicitações reiteradas do esposo, dado à meditação e à dignidade doméstica.

A jovem senhora encontrava cada dia mil pretextos de ausentar-se, escrava da opinião pública, das convenções, das modas e dos folguedos impróprios da sua condição.


Vetúrio realmente se desligara do enteado, mas não largara mão dos interesses patrimoniais e, a fim de proteger-se, enviara à herdade um liberto grego de sua confiança, de nome Teódulo, conferindo-lhe o direito de partilhar com o genro os serviços administrativos.

Teódulo era um solteirão inteligente e astuto, invariavelmente disposto à curvatura da cerviz para auferir vantagens para si mesmo. Fizera-se amigo de Taciano, mas em muito maior grau da esposa, cavando sutilmente a separação entre os dois.

Se a dona da casa pretendia um passeio a Viena, ou a Narbona, era o primeiro a apresentar-se para guiar-lhe a condução; se desejava cruzar o Mediterrâneo, para excursões a Roma e adjacências, era ele a pessoa indicada para segui-la, de perto, de vez que o marido, com estranheza para a mulher, não parecia inclinado a qualquer reencontro com o sogro.


Taciano, não obstante o vigor juvenil dos trinta e quatro anos, revelava-se profundamente modificado.

Não era mais o moço de outro tempo.

Ensimesmara-se.

Já que lhe não era possível encontrar na companheira a confidente desejável, vivia psiquicamente insulado, aplicando no serviço do campo todo o potencial de suas forças.

Não podia crer-se rico, de vez que se achava ligado aos interesses de Vetúrio, preso à fatalidade doméstica.

A propriedade era quinhoada de rendas substanciosas, mas a sua posição em família colocava-o em subalternidade econômica, de vez que, no fundo, Helena era a filha legítima, com quem o dono da herdade se entendia diretamente, através de correios constantes.


Muitas vezes, considerara a conveniência de adquirir um sítio, em que pudesse exercer a autoridade que lhe era própria, entretanto, a realização nunca saíra do projeto. As despesas da esposa eram demasiado expressivas para que pudesse aventurar-se em semelhante cometimento.

Helena despendia somas enormes no fausto de sua carreira social.

Por isso mesmo, interrompida a intimidade dele com o padrasto, desde a morte de Varro, via-se o rapaz torturado por incessantes problemas financeiros, que as suas múltiplas atividades mal permitiam resolver.

A única compensação que usufruía era o consolo que lhe vinha da constante ternura da segunda filha. Nascera Blandina, em 243, como se fora uma bênção que o Céu lhe houvera reservado ao coração. Enquanto a primogênita, menina e moça, apegava-se ao espírito materno, copiando-lhe as predileções e atitudes, a menor colava-se ao pai, exclusivamente. Acompanhava-o em seus giros solitários pelo bosque, seguia-lhe as meditações no jardim.


Não valiam ralhos da governanta, nem observações dos mais íntimos.

Blandina parecia uma flor permanente a engastar-se na destra paterna.

Diariamente, ao amanhecer, era a única pessoa de casa a orar, em companhia de Taciano, ante a estátua de , a deusa maternal.

Certa manhã, vamos encontrá-los conversando em extenso vinhedo.

— Papai — indagava ela, de cabelos soltos, beijados pela luz solar —, quem fez o campo, assim tão belo?

O genitor, sorrindo, respondeu feliz:

— Os deuses, filhinha, os deuses nos concederam as árvores e as flores para o embelezamento de nossa vida.


A menina, embriagada de júbilo infantil, tomou um cacho de uvas amadurecidas e perguntou, de novo:

— Mas, papai, qual dos deuses nos traz uvas tão doces?

O companheiro, satisfeito com a curiosidade dela, sentou-a nos joelhos, explicando:

— Quem nos concede a bênção da colheita, é , a generosa deusa da agricultura.

Talvez prevendo novas interrogações da pequena, continuou:

— Ceres fez longas viagens entre os homens, ensinando-os a arar o solo e a preparar boas sementeiras… Possuía uma filha, de nome , carinhosa e bela como tu, mas , o rei dos infernos, roubou-a, cruel…

— Oh! porquê? — interferiu Blandina, interessada.


E o moço prosseguiu, pacientemente:

— Plutão era tão feio, tão feio, que não achou mulher que o amasse. Então, um dia, quando Prosérpina colhia flores nos campos sicilianos, o medonho Plutão assaltou-a e conduziu-a para a sua horrível morada.

— Pobrezinha! — lamentou a pequerrucha, penalizada — e a mãe dela não encontrou algum meio de salvá-la?

— Ceres sofreu muito até que lhe descobriu o paradeiro. Desceu aos infernos, a fim de recuperá-la, mas a filha era meiga e bondosa e, por isso, afeiçoara-se ao tirano que fora obrigada a receber por marido. Compadecendo-se do esposo, não mais quis voltar. Ceres, então muito aflita, recorreu a , o senhor do Olimpo, mas tantas perturbações sobrevieram que o grande deus julgou melhor determinar que Prosérpina, cada ano, passasse seis meses em companhia da mãezinha, e os seis restantes junto do companheiro.


A menina suspirou, aliviada, e comentou:

— Júpiter, nosso pai do céu, foi sábio e bondoso…

Em seguida, os olhinhos vivos e escuros se lhe iluminaram. Abraçou Taciano, nervosamente, e indagou:

— Papai, se Plutão me roubasse, o senhor me procuraria?

— Sem dúvida — replicou Taciano, rindo-se —, mas não há perigo. O monstro jamais nos incomodará.

— Como sabe o senhor?

O paizinho enlaçou-a, informando:

— Temos nossa mãe Cíbele, Blandina. Nossa divina protetora jamais nos abandona.

A pequena, confiante, estampou satisfação e paz na fisionomia ingênua.


Enquanto o moço patrício passava a orientar o trabalho de alguns escravos, a criança correu, alhures, encontrando grande borboleta a mover-se dificilmente.

Blandina recolheu-a, com extremo cuidado, nas dobras do leve peplo de lã e apresentou-a ao genitor, reclamando:

— Paizinho, será que as borboletas não possuem um deus que as ajude?

— Como não, minha filha? os gênios celestes cuidam de toda a Natureza.

— Mas onde estaria o socorro para uma pobre criatura como esta?

Taciano sorriu e, dando-lhe a mão, acentuou:

— Vamos comigo, vou mostrar-te.

Deram alguns passos e alcançaram límpida corrente.

Taciano, carinhoso, indicou-lhe o córrego cantante e esclareceu:

— As fontes, minha filha, são dádivas do Céu, em nosso favor. Deixa tua borboleta ao pé das águas, ela está sedenta.

A pequena obedeceu, feliz.

E ambos, pelo dia a dentro, passearam juntos e brincaram, observando os lagartos que se arrastavam ao sol.


Para o filho de Quinto Varro, agora introspectivo, a presença da menina era talvez a única felicidade que desfrutava na Terra.

De retorno a casa, corados e bem dispostos, foram recebidos com grande reboliço. Chegara um correio de Roma e Taciano, desconcertado, sabia que um acontecimento desses era sempre um sucesso desagradável para ele. A esposa fazia-se mais exigente e mais áspera.

Com efeito, logo que se viu no interior doméstico, Helena convidou-o a entendimento particular, apresentando-lhe longa mensagem paterna. Opílio insistia pela viagem da filha e das netas à metrópole. Vivia saudoso e, sobretudo, excessivamente preocupado com a situação de Galba, totalmente entregue, como sempre, às companhias indesejáveis. Não se resignava à ideia de que o rapaz prosseguisse solteiro. E, confidencialmente, rogava a Helena estudasse com o genro a possibilidade do consórcio entre tio e sobrinha. Lucila, a neta que ele vira nascer, atingira os quinze anos. Não seria conveniente aproximá-la do solteirão, tentando-se algum esforço regenerativo, apesar da diferença de idade?

A sociedade romana, dizia o velho, achava-se em decadência. Grandes fortunas estavam dissipadas pela imprevidência de famílias patrícias tradicionais.

Não seria justo, perguntava, preservar os próprios bens com um novo enlace no próprio ambiente doméstico?


Taciano leu a carta, mostrou no rosto o imenso desagrado que o possuía, e comentou, entediado:

— O velho Opílio, decerto, respira ouro. Não tem outra ideia na cabeça que não seja dinheiro, defesa do dinheiro e multiplicação do dinheiro. Creio viveria ele descuidadamente no inferno, desde que o reino da sombra fosse construído sobre moedas. Que disparate! que felicidade poderá advir do casamento de uma jovem de quinze anos com um libertino da qualidade de Galba?

A senhora fez-se pálida e recomendou, transtornada:

— Não tolero qualquer referência desrespeitosa a meu pai. Ele tem sido sempre amável e generoso.

E, mirando o esposo, de cima para baixo, prosseguiu:

— Que poderíamos oferecer a Lucila, na província repleta de escravos e pobretões? Além disso, o matrimônio de nossa filha com meu irmão seria um feito de grande sabedoria. Meu pai sabe sempre o que faz.


O marido, no fundo, desejou prorromper em gritos de revolta.

Com que direito deliberavam, assim, quanto ao destino de sua primogênita? era ela demasiado verde para qualquer escolha. Porque não confiar-lhe o juvenil coração aos braços do tempo, de modo a decidir-se com calma? Sabia, de experiência própria, que a felicidade nunca seria fruto de constrangimento.

Renunciava, contudo, a qualquer argumentação.

Entre ele e Vetúrio existia um mar de lodo e sangue. Nunca lhe desculparia o infortúnio paterno. A amizade que os ligava em outro tempo convertera-se em ódio silencioso. Entretanto, a esposa era filha dele e, no sangue das filhinhas, era obrigado a receber-lhe a marca familiar.

Poderia discutir, contender, guerrear, contudo, era agora individualmente pobre e não conseguiria vencer o gigante financeiro que o destino lhe impusera, por padrasto.

E a lutar verbalmente com Helena, não seria preferível calar-se?


Diante da sombria mudez do esposo, ela continuou:

— Há mais de um ano não vejo meu pai. Agora, devo seguir. Outra alternativa não me resta. A embarcação estará em Massília provavelmente na semana próxima… Desta vez, suponho contar contigo. Meu pai espera por ti há muitos anos…

Como quem despertasse de um pesadelo, Taciano replicou, mal humorado:

— Não posso… não posso…

— É isto! Sempre que necessito de teu concurso para alguma excursão importante, primas pela ausência. Temos um mundo vasto de alegrias e divertimentos, mas preferes o cheiro de cabras e cavalos…

— Helena, não é bem assim — considerou o marido, apoquentado —, o trabalho…

Ela, porém, interrompeu-lhe a palavra, entre irritada e áspera:

— Sempre o trabalho a eterna desculpa. Não te amofines. Seguirei com Anacleta e Teódulo, em companhia das meninas.


O dono da casa sentiu-se ferido, só em pensar na separação da filha menor, e observou, instintivamente:

— Precisarás de séquito assim tão grande?

— Não te queixes — falou a mulher, sarcástica —, cada qual recebe o que procura. Se pretendes solidão, não te agastes por falta de companhia.

O marido não respondeu.

A filha de Vetúrio começou a providenciar.

Costureiras, floristas, ourives e artífices trabalharam com grande azáfama.

Todavia, no meio do entusiasmo geral, Blandina choramingava incessantemente. Insistia em ficar. Não queria deixar o genitor. A dona da casa, entretanto, não alterava a opinião. As netas deveriam partir, ao encontro do avô.


Na véspera da viagem, tão lamurienta se mostrava a menina, que Taciano, altas horas da noite, levantou-se a fim de consolá-la, de vez que a esposa, atarefada com preparativos diversos, ainda não se recolhera. Dirigindo-se de um aposento a outro, ouviu rumores abafados em pequeno terraço próximo. Sem ser percebido, lobrigou Helena e Teódulo em colóquio afetuoso. A intimidade a que se entregavam não lhe propiciava ensejo à mínima dúvida quanto à comunhão amorosa entre os dois.

O coração bateu-lhe descompassado.

Sempre descansara, acerca do procedimento da esposa, apesar do temperamento explosivo com que Helena se caracterizava.

Experimentou o impulso de estrangular Teódulo com mãos frias e implacáveis, no entanto, os gemidos de Blandina despertavam-lhe os sentimentos de pai. O escândalo não traria compensações. Ao invés de refazer-lhes o destino, agora plenamente atormentado, recairia como flecha incendiária, sobre a família que o Céu lhe confiar.

Punir a esposa seria condenar as filhas.


Instintivamente, lembrou-se de Varro, e, pela primeira vez, refletiu amplamente nas tempestades que haviam desabado no caminho paterno.

Que forças sobre-humanas teriam conseguido sustentá-lo? como pudera o genitor suportar o infortúnio doméstico, sem trair a superioridade moral que lhe conhecera?…

Rememorou as palavras que ouvira “in extremis”, detendo-se em analisar a elevada concepção paternal com respeito aos direitos da mulher… Desejaria possuir noções tão enobrecedoras, mas sentia-se distanciado de tamanha conquista do espírito. Para ele o perdão era covardia e a humildade expressava vileza.

Por outro lado, lembrou Cíntia, a mãe tristonha que lhe embalara o berço. Compelia a imaginação a recuar até à meninice e verificava que, ainda mesmo nos mais belos dias de consagração carinhosa do padrasto, nunca pudera observar a genitora totalmente feliz. A matrona querida, vivera longos anos de alma velada por indefinível amargura.

Não estaria Helena adquirindo o mesmo patrimônio de dor?


Escutou algumas palavras afetuosas do amoroso par, que a aragem da noite lhe trazia aos ouvidos, todavia, tal qual procedera Quinto Varro, quando ainda não era ele Taciano senão um anjo tenro, retrocedeu e procurou a câmara da filha.

Blandina abraçou-o, reconfortada, como quem sentisse todos os perigos dissipados, ante a presença paterna, e, depois de beijá-lo, adormeceu, tranquila.

O moço apertou-a, de encontro ao peito, e, intimamente angustiado, recolheu-se, mudo.

No leito, recordou o pai com mais insistência e orou suplicando o socorro dos deuses imortais de sua fé. Tentou sustentar-se em posição de vigilância, mas a prece, à maneira de suave anestésico, oferecera-lhe brando torpor e acabou envolvido em pesado sono.

Ao amanhecer do dia seguinte, foi ruidosamente acordado pela esposa, a fim de despedir-se.

A caravana partia cedo.

Helena e os companheiros pretendiam efetuar breve parada em Viena, de modo a rever amigos.


Taciano, amargurado e carrancudo, pronunciou alguns monossílabos, mas quando chegou a vez de Blandina, que se lhe arrojou, em pranto, aos braços ansiosos, o chefe da família pareceu emocionado e trêmulo.

— Não me deixe seguir, papai! quero ficar! tenho medo! leve-me para a vinha! — soluçava a menina, em desespero.

O genitor beijou-a com ternura e recomendou:

— Acalma-te! atende aos desejos da mãezinha, o vovô espera-te, bondoso! a viagem te fará feliz, minha filha!

— Não pode ser assim — gritou a criança, com os olhos inchados de chorar —, quem rezará com o senhor pela manhã?

Fosse pela tortura moral que trazia da véspera ou pela angústia daquele adeus que lhe cortava o coração, o patrício sentiu que a emoção lhe sufocava o tórax opresso. Entregou Blandina aos braços de Anacleta que a aguardava, impaciente, e, num gesto brusco, demandou o interior, buscando a solidão para desfazer-se em lágrimas. Queria desligar-se da amargura que lhe avassalava o pensamento, contudo, quando os carros se afastaram entre as rumorosas saudações dos escravos ele quase enlouqueceu ao ouvir a estridente voz da filha, reclamando:

— Papai!… papaizinho!…


Iniciada a excursão, Helena inquietou-se.

Blandina, apesar de todas as repreensões, recusou qualquer alimento. A beleza da paisagem do Ródano não a interessava.

A chegada, pois, a Viena, depois de várias preocupações, realizou-se sob pesada nuvem.

A pequena acusava febre alta e o coração parecia uma ave assustada na gaiola do peito.

De olhos inconscientes, revelava-se completamente alheia à realidade. Pronunciava o nome do pai através de gritos estranhos e dizia ver Plutão, num carro de fogo, procurando roubá-la. Teódulo, aflito, chamou um médico, que considerou a menina em grave posição orgânica, desaconselhando a viagem.

Em razão disso, o genitor foi imediatamente instado a socorre-la.


Taciano, atormentado, atendeu presto e o grupo de Helena, restituída a menina aos braços paternais, prosseguiu sem a pequerrucha, que, contente, tornou a casa.

Começou então para o patrício e a filha admirável período de refazimento.

Amavam-se tão profundamente, com esse carinho doce e perfeito de quem tudo procura dar sem nada receber, que realmente se bastavam um ao outro.

Totalmente entregues à Natureza, efetuavam encantadores passeios pelos vinhedos e bosques, pelas pastagens e charnecas.

Mas não se restringiam agora às caminhadas no campo. Taciano adquirira pequeno barco, no qual faziam longas incursões pelo Ródano.

De entendimento a entendimento, o genitor passou a conversar com a menina, com respeito à educação.

Precisavam contratar os serviços de um professor condigno. Não encontrava na fazenda nenhum escravo à altura de semelhante trabalho.

— Por que motivo o senhor mesmo não me ensina? — perguntou, certa feita, a criança, quando navegavam além dos muros da cidade, encantados com a magnificência do rio, então enriquecido pelas últimas cheias da primavera.

— De mim mesmo, não posso — esclareceu Taciano, bondoso —, não saberíamos nós dois garantir um programa disciplinar, como se faz imprescindível.

Blandina parou o olhar, no soberbo quadro em torno…


O crepúsculo descera vagaroso, mergulhando a terra em leve sombra, e as constelações no alto começavam a luzir…

Taciano remava sem dificuldades, subindo a corrente, desde o ponto de confluência do Saona, tornando ao centro da cidade, auxiliado pelas virações vespertinas.

Pareciam absortos, no grande silêncio, apenas cortado, de quando em quando, pelo voo célere de passarinhos retardatários, quando ouviram aveludada voz de mulher gorjeando na ribeira do rio…

Estrelas — ninhos da vida,

Entre os espaços profundos,

Novos lares, novos mundos,

Velados por tênue véu…

Aladas rosas de Ceres,

Nascidas ao sol de Elêusis,

Sois a morada dos deuses,

Que vos engastam no céu!…


Dizei-nos que tudo é belo,

Dizei-nos que tudo é santo,

Inda mesmo quando há pranto

No sonho que nos conduz.

Proclamai a terra estranha,

Dominada de tristeza,

Que em tudo reina a beleza

Vestida de amor e luz.


Quando a noite for mais fria

Pela dor que nos procura,

Rompei a cadeia escura

Que nos prenda o coração,

Acendendo a madrugada

No campo de Novo Dia,

Onde a ventura irradia

Eterna ressurreição.


Dai consolo ao peregrino,

Que segue à mercê da sorte,

Sem teto, sem paz, sem norte,

Torturado, sofredor…

Templos do Azul Infinito,

Descerrai à Humanidade

A glória da Divindade

Na glória do vosso amor.


Estrelas — ninhos da vida,

Entre os espaços profundos,

Novos lares, novos mundos,

Velados por tênue véu…

Aladas rosas de Ceres,

Nascidas ao sol de Elêusis,

Sois a morada dos deuses,

Que vos engastam no céu!…


— Quem estará cantando assim? — perguntou Blandina, admirada.


Taciano, impressionado, remou quase que instintivamente na direção de acolhedora praia vizinha e, à frente da jovem que cantava, ele e a filha não puderam conter a simpatia que lhes nascera nos corações.

Amarrou o barco à margem e desceram.

A moça, surpreendida, veio ao encontro da pequena, exclamando:

— Bela menina, que os deuses te protejam!…

— E protejam também nossa bela desconhecida — murmurou Taciano, bem humorado.

E, no propósito de dissipar-lhe a timidez, acrescentou:

— Por ! nunca ouvi, antes, tão formoso . Quem teceu tão lindo poema?

— Foi meu pai, senhor.


O excursionista sentiu algo estranho no coração. Aquela voz penetrava-lhe as fibras mais íntimas. Enterneceu-se-lhe inexplicavelmente a alma. Que faria aquela mulher assim só, na praia agora povoada de sombras? Observando que ela e Blandina se entendiam num abraço carinhoso e natural, esqueceu a ideia de retornar ao batel e considerou, gentil:

— Francamente, ser-me-ia grato conhecer, de perto, o autor da delicada composição.

— É fácil — explicou a moça, alegre — moramos aqui mesmo.

Oferecendo a mão à menina, tomou a dianteira.


O trio, depois de alguns passos, penetrou uma casa singela, em cuja peça mais importante, uma sala acanhada e desconfortável, um velho, à claridade de duas tochas, consertava precioso alaúde.

Diversos instrumentos musicais amontoavam-se no recinto, revelando a profissão do dono da casa.

Desajeitada, a jovem apresentou os recém-chegados, explicando:

— Papai, são dois viajantes do rio. Escutaram a canção às estrelas e interessaram-se pelo autor.

— Oh! quão generosos! — e o velho acrescentou, mostrando largo sorriso: — entrai! a casa é pequenina, mas é vossa.


Entendimento reconfortante foi entabulado.

O ancião, que se abeirava dos setenta anos, trazia nos olhos e nas palavras irradiante vigor juvenil.

Biografou-se, sem afetação.

Chamava-se Basílio e nascera em Roma, filho de escravos gregos. Embora endividado com o ex-senhor, Jubélio Carpo, que o alforriara, prosseguia na posição de liberto, agindo por conta própria.

Carpo, nobre romano, era quase da idade dele. Meninos ainda, haviam crescido juntos, e, por isso, casaram-se ambos quase ao mesmo tempo.


Cecília Prisciliana, a esposa do senhor, adoecera de peste, logo após o nascimento do segundo filho, e Júnia Glaura, sua mulher, escrava e amiga, devotara-se à matrona com tamanho desvelo que conseguira salvar-lhe a existência, mas à custa da própria vida. Adquirindo a perigosa moléstia, Júnia impusera-lhe a viuvez, deixando-lhe uma filhinha de nome Lívia, que sobreviveu pouco tempo.

Compadecidos da sorte dele, os patrões emanciparam-no, sob a condição de lhes pagar em qualquer tempo, os pesados débitos que contraíra, para socorrer os familiares.

Todavia, não pudera prosseguir em Roma, onde tantas recordações dolorosas lhe martirizavam o espírito.


Desgostoso, retirara-se para a ilha de Cipro, onde passara muitos anos, mergulhado em estudos filosóficos, buscando fugir de si mesmo.

Ali recebera como presente dos deuses — acentuava sorridente — a sua nova filha, à qual deu o mesmo nome da primeira.

Lívia surgira-lhe no justo momento em que se via mais infortunado e mais só.

Desesperado com os obstáculos constantes que se lhe deparavam, sem nunca haver encontrado recursos para liquidar os compromissos econômicos que o prendiam à casa do amo, dispunha-se a aguardar a morte, quando o Céu lhe enviara a nova filhinha, por milagrosa via, refazendo-lhe as esperanças.


Desde então, investira-se de nova coragem para lutar.

Rearticulou as próprias energias para o trabalho e reassumiu as atividades rotineiras de um homem com problemas mensais a resolver.

Restaurando instrumentos musicais, na profissão de afinador, reconheceu que na ilha os rendimentos não responderiam aos novos encargos e, por isso, transferiu-se para Massília, onde encontrou serviço farto e adequados recursos para educar a menina.

Dissabores numerosos, porém, compeliram-no a mudar-se e escolhera Lião para seu novo campo de ação.

Surpreendera-se diante da grande quantidade de harpas, alaúdes e cítaras a reclamarem reajuste e, satisfeito com as novas perspectivas de melhoria econômica, achava-se na cidade, havia seis meses, reorganizando o próprio caminho.


Basílio falava com segurança e brandura, mas notava-se na voz dele algo de dolorido que não chegava a exteriorizar-se. Chagas invisíveis de sofrimento transpareciam-lhe da palavra vazada em risonha compreensão, mas tocada de leve amargura.

O patrício animado e alegre encorajou-o, fazendo-lhe sentir novos horizontes de trabalho.

Possuía muitos amigos e conseguir-lhe-ia rendosos serviços.

Para amenizar o ambiente que se anuviara demasiado com os temas inquietantes da vida comum, Lívia atendeu a um pedido paterno, executando alguns números de harpa que Taciano e Blandina ouviram, encantados.


A pequena, enlevada, aquietara-se meiga e silenciosa e o filho de Quinto Varro, como que transportado a diferentes regiões, divagava, através de múltiplas reminiscências, mal contendo o pranto de emotividade que lhe assomava aos olhos.

Rememorou todos os dias do pretérito, tentando lembrar onde e como vira em algum lugar e em algum tempo o ancião que o fitava, bondoso, e a jovem que cantava com a voz misturada de alegria e de dor, mas debalde… Guardava a impressão de conhecê-los e amá-los, mas a memória negava-se a identificá-los no tempo.

Lívia calara-se, mas o visitante prosseguiu absorto, pensando, pensando…


Foi Blandina quem lhe interrompeu as reflexões, inquirindo, carinhosa:

— Papai, o senhor não acha que Lívia poderia ser minha professora?

Um sorriso geral desabrochou na sala pobre.

A ideia foi jubilosamente aceita.

E naquela noite, quando o adeus se fez sentir, revestido de compreensão e ternura Taciano afastou-se, renovado. Esquecera as lutas e os problemas do próprio destino, qual se houvera sorvido milagroso néctar dos deuses.

O coração do patrício, antes taciturno e angustiado, parecia reviver.