A Gênese
CAPÍTULO XII
Gênese Mosaica
Os seis dias
• Item 1 •
Capítulo I
– 1. No começo Deus criou o Céu e a Terra. – 2. A Terra era uniforme e inteiramente nua; as trevas cobriam a face do abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. – 3. Ora, Deus disse: Faça-se a luz e a luz foi feita. – 4. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. – 5. Deu à luz o nome de dia e às trevas o nome de noite e da tarde e da manhã fez o primeiro dia. – 6. Disse Deus também: Faça-se o firmamento no meio das águas e que ele separe das águas as águas. – 7. E Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam acima do firmamento. E assim se fez. – 8. E Deus deu ao firmamento o nome de céu; da tarde e da manhã se fez o segundo dia. – 9. Disse Deus ainda: Reúnam num só lugar as águas que estão sob o céu e apareça o elemento árido. E assim se fez. – 10. Deus deu ao elemento árido o nome de terra e chamou mar a todas as águas reunidas. E viu que isso estava bem. – 11. Disse mais: Produza a terra a erva verde que traz a semente e árvores frutíferas que deem frutos cada um de uma espécie, e que contenham em si mesmas as suas sementes, para se reproduzirem na terra. E assim se fez. – 12. A terra então produziu a erva verde que trazia consigo a sua semente, conforme a espécie, e árvores frutíferas que continham em si mesmas suas sementes, cada uma de acordo com a sua espécie. E Deus viu que estava bom. – 13. E da tarde e da manhã se fez o terceiro dia. – 14. Deus disse também: Façam-se corpos de luz no firmamento do céu, a fim de que separem o dia da noite e sirvam de sinais para marcar o tempo e as estações, os dias e os anos. – 15. Brilhem eles no firmamento do céu e iluminem a Terra. E assim se fez. – 16. Deus então fez dois grandes corpos luminosos, um, maior, para presidir ao dia, o outro, menor, para presidir à noite; fez também as estrelas. – 17. E os pôs no firmamento do céu, para brilharem sobre a Terra. – 18. Para presidirem ao dia e à noite e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que estava bom. – 19. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia. – 20. Disse Deus ainda: Produzam as águas animais vivos que nadem nas águas e pássaros que voem sobre a Terra debaixo do firmamento do céu. – 21. Deus então criou os grandes peixes e todos os animais que têm vida e movimento, que as águas produziram, cada um de uma espécie, e criou também todos os pássaros, cada um de uma espécie. Viu que estava bom. – 22. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai-vos e enchei as águas do mar; e que os pássaros se multipliquem sobre a Terra. – 23. E da tarde e da manhã se fez o quinto dia. – 24. Também disse Deus: Produza a Terra animais vivos, cada um de sua espécie, os animais domésticos e os animais selvagens, em suas diferentes espécies. E assim se fez. – 25. Deus fez, pois, os animais selvagens da Terra em suas espécies, os animais domésticos e todos os répteis, cada um de sua espécie. E Deus viu que estava bom. – 26. Disse, em seguida: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e que ele mande sobre os peixes do mar, os pássaros do céu, os animais, sobre toda a Terra e sobre todos os répteis que se movem na terra. – 27. Deus então criou o homem à sua imagem e o criou à imagem de Deus e o criou macho e fêmea. – 28. Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e sujeitai-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu e sobre todos os animais que se movem na terra. – 29. Disse Deus ainda: Dei-vos todas as ervas que trazem sua semente à terra e todas as árvores que encerram em si mesmas suas sementes, cada uma de uma espécie, a fim de que vos sirvam de alimento. – 30. E dei-as a todos os animais da terra, a todos os pássaros do céu, a tudo o que se move na Terra e que é vivo e animado, a fim de que tenham com que se alimentar. E assim se fez. – 31. Deus viu todas as coisas que havia feito; eram todas muito boas. – 32. E da tarde e da manhã se fez o sexto dia.
Capítulo II
– 1. O Céu e a Terra ficaram, pois, acabados assim com todos os seus ornamentos. – 2. Deus terminou no sétimo dia toda a obra que fizera e repousou nesse sétimo dia, após haver acabado todas as suas obras. – 3. Abençoou o sétimo dia e o santificou, porque cessara nesse dia de produzir todas as obras que criara. – 4. Tal a origem do Céu e da Terra e é assim que eles foram criados no dia que o Senhor fez um e outro. – 5. E que criou todas as plantas dos campos antes que houvessem saído da terra e todas as ervas das planícies antes que houvessem germinado. Porque o Senhor Deus ainda não tinha feito que chovesse sobre a terra e não havia homem para lavrá-la. – 6. Mas da terra se elevava uma fonte que lhe regava toda a superfície. – 7. O Senhor Deus formou, pois, o homem do limo da terra e lhe espalhou sobre o rosto um sopro de vida, e o homem se tornou vivente e animado.
Os seis dias
• Item 2 •
Depois das explanações contidas nos capítulos precedentes sobre a origem e a constituição do Universo, de acordo com os dados fornecidos pela Ciência, quanto à parte material, e pelo Espiritismo, quanto à parte espiritual, convinha confrontar tudo isso com o texto da Gênese de Moisés, a fim de que cada um pudesse estabelecer comparações e julgar com conhecimento de causa. Bastarão algumas explicações complementares para tornar compreensíveis as partes que precisam de esclarecimentos especiais.
Os seis dias
• Item 3 •
Sobre alguns pontos, há, sem dúvida, notável concordância entre a Gênese de Moisés e a doutrina científica; mas seria erro imaginar que basta se substituam os seis dias de 24 horas da Criação por seis períodos indeterminados, para se tornar completa a analogia. Outro erro não menor seria acreditar-se que, salvo o sentido alegórico de certas palavras, a Gênese e a Ciência caminham lado a lado, sendo uma, como se vê, simples paráfrase da outra.
Os seis dias
• Item 4 •
Notemos, em primeiro lugar, conforme vimos no cap. VII, item 14, que é inteiramente arbitrário o número de seis períodos geológicos, visto que se eleva a mais de vinte cinco o número de formações bem caracterizadas, número que, além disso, apenas determina as grandes fases gerais. Ele só foi adotado, no começo, para encaixar as coisas, o mais possível, no texto bíblico, numa época, aliás, pouco distante, em que se entendia que a Ciência devia ser controlada pela Bíblia. É por isso que os autores da maior parte das teorias cosmogônicas, tendo em vista facilitar a sua aceitação, se esforçaram por se pôr de acordo com o texto sagrado. Logo que se apoiou no método experimental, a Ciência sentiu-se mais forte e se emancipou. Hoje é ela que controla a Bíblia.
Por outro lado, a Geologia, tomando por ponto de partida unicamente a formação dos terrenos graníticos, não abrange, no cômputo de seus períodos, o estado primitivo da Terra. Tampouco se ocupa com o Sol, com a Lua e com as estrelas, nem com o conjunto do Universo, que pertencem à Astronomia. Para enquadrar tudo na Gênese, cumpre que se acrescente um primeiro período, que abarque essa ordem de fenômenos e ao qual se poderia chamar período astronômico.
Além disso, nem todos os geólogos consideram o período diluviano como formando um período distinto, mas como um fato transitório, passageiro, que não mudou sensivelmente o estado climático do globo, nem marcou uma fase nova para as espécies vegetais e animais, visto que, com poucas exceções, as mesmas espécies se encontram antes como depois do dilúvio. Podemos, pois, desprezar esse período, sem, por isso, nos afastarmos da verdade.
Os seis dias
• Item 5 •
O quadro comparativo que se segue, no qual se acham resumidos os fenômenos que caracterizam cada um dos seis períodos, permite que se abranja o conjunto e se possa julgar as relações e as diferenças que existem entre os referidos períodos e a Gênese bíblica.
CIÊNCIA
CIÊNCIA
I. PERÍODO ASTRONÔMICO - Aglomeração da matéria cósmica universal, num ponto do espaço, em nebulosa que deu origem, pela condensação da matéria em diversos pontos, às estrelas, ao Sol, à Terra, à Lua e a todos os planetas. Estado primitivo fluídico e incandescente da Terra. – Atmosfera imensa carregada de toda a água em vapor e de todas as matérias volatilizáveis.GÊNESE
1º DIA - O Céu e a Terra. – A luz.CIÊNCIA
II. PERÍODO PRIMÁRIO - Endurecimento da superfície da Terra, pelo resfriamento; formação das camadas graníticas. – Atmosfera espessa e ardente, impenetrável aos raios solares. – Precipitação gradual da água e das matérias sólidas volatilizadas no ar. – Ausência completa de vida orgânica.GÊNESE
2º DIA - O firmamento. – Separação das águas que estão acima do firmamento das que lhe estão debaixo.CIÊNCIA
III. PERÍODO DE TRANSIÇÃO - As águas cobrem toda a superfície do globo. – Primeiros depósitos de sedimentos formados pelas águas. – Calor úmido. – O Sol começa a atravessar a atmosfera brumosa. – Primeiros seres organizados da mais rudimentar constituição. – Liquens, musgos, fetos, licopódios, plantas herbáceas. Vegetação colossal. – Primeiros animais marinhos: zoófitos, polipeiros, crustáceos. – Depósitos de hulha.GÊNESE
3º DIA - As águas que estão debaixo do firmamento se reúnem; aparece o elemento árido. – A terra e os mares. – As plantas.CIÊNCIA
IV. PERÍODO SECUNDÁRIO - Superfície da Terra pouco acidentada; águas pouco profundas e paludosas. Temperatura menos ardente; atmosfera mais depurada. Consideráveis depósitos de calcários pelas águas. – Vegetação menos colossal; novas espécies; plantas lenhosas; primeiras árvores. – Peixes; cetáceos; animais aquáticos e anfíbios. GÊNESE
4º DIA - O Sol, a Lua e as estrelas. CIÊNCIA
V. PERÍODO TERCIÁRIO - Grandes intumescimentos da crosta sólida; formação dos continentes. Retirada das águas para lugares baixos; formação dos mares. – Atmosfera depurada; temperatura atual produzida pelo calor solar. – Gigantescos animais terrestres. Vegetais e animais da atualidade. Pássaros. GÊNESE
5º DIA - Os peixes e os pássaros.
Dilúvio UniversalCIÊNCIA
VI. PERÍODO QUATERNÁRIO OU PÓS-DILUVIANO - Terrenos de aluvião. – Vegetais e animais da atualidade. – O homem.GÊNESE
6º DIA
Os animais terrestres. – O homem.
• Item 6 •
O primeiro fato que se destaca desse quadro comparativo é que a obra de cada um dos seis dias não corresponde de maneira rigorosa, como muitos pensam, a cada um dos seis períodos geológicos. A concordância mais notável é a da sucessão dos seres orgânicos, que é quase a mesma, com pequena diferença, e no aparecimento do homem, por último. Esse é um fato importante.
Há também coincidência, não quanto à ordem numérica dos períodos, mas quanto ao fato em si, na passagem em que se lê que, ao terceiro dia, “as águas que estão debaixo do céu se reuniram num só lugar e apareceu o elemento árido”. É a expressão do que ocorreu no período terciário, quando as elevações da crosta sólida puseram a descoberto os continentes e repeliram as águas, que foram formar os mares. Foi somente então que apareceram os animais terrestres, segundo a Geologia e segundo Moisés.
Os animais terrestres. – O homem.
• Item 7 •
Quando Moisés diz que a Criação foi feita em seis dias, terá querido falar de dias de 24 horas, ou terá empregado essa palavra no sentido de período, de duração? A primeira hipótese é a mais provável se nos ativermos ao texto acima, primeiramente porque esse é o sentido próprio da palavra hebraica iôm, traduzida por dia; depois, a referência à tarde e à manhã, como limitações de cada um dos seis dias, dá lugar a que se suponha que ele haja querido falar de dias comuns. Não se pode conceber qualquer dúvida a tal respeito, quando é dito no versículo 5: “Ele deu à luz o nome de dia e às trevas o nome de noite; e da tarde e da manhã se fez o primeiro dia”. Isto, evidentemente, só se pode aplicar ao dia de 24 horas, constituído de períodos de luz e de trevas. O sentido ainda se torna mais preciso quando ele diz, no versículo 17, falando do Sol, da Lua e das estrelas: “Colocou-as no firmamento do céu, para luzirem sobre a Terra; para presidirem ao dia e à noite e para separarem a luz das trevas. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia”.
Aliás, tudo na Criação era miraculoso e, desde que se envereda pela senda dos milagres, pode-se perfeitamente crer que a Terra foi feita em seis vezes 24 horas, sobretudo quando se ignoram as primeiras leis naturais. Todos os povos civilizados partilharam dessa crença até o momento em que a Geologia forneceu as provas que demonstravam a sua impossibilidade.
Os animais terrestres. – O homem.
• Item 8 •
Um dos pontos da Gênese que têm sido mais criticados é o da criação do Sol depois da luz. Tentaram explicá-lo, com o auxílio dos próprios dados fornecidos pela Geologia, dizendo que, nos primeiros tempos de sua formação, por se achar carregada de vapores densos e opacos, a atmosfera terrestre não permitia a visão do Sol que, assim, efetivamente não existia para a Terra. Semelhante explicação poderia até ser admissível se naquela época já houvesse na Terra habitantes que verificassem a presença ou a ausência do Sol. Ora, segundo o próprio Moisés, não havia na época senão plantas, que, todavia, não teriam podido crescer e multiplicar-se sem a ação do calor solar.
Há, pois, evidentemente, um anacronismo na ordem que Moisés estabeleceu para a criação do Sol; mas, involuntariamente ou não, ele não errou, dizendo que a luz precedeu o Sol. O Sol não é o princípio da luz universal, mas uma concentração do elemento luminoso em um ponto, ou, por outra, do fluido que, em certas circunstâncias, adquire as propriedades luminosas. Esse fluido, que é a causa, havia necessariamente de preceder ao Sol, que é apenas um efeito. O Sol é causa, relativamente à luz que dele se irradia; é efeito, com relação à luz que recebeu.
Num aposento escuro, uma vela acesa é um pequeno sol. Que é que se fez para acender a vela? Desenvolveu-se a propriedade iluminante do fluido luminoso e concentrou-se num ponto esse fluido. A vela é a causa da luz que se difunde pelo aposento; mas, caso não existisse o princípio luminoso antes da vela, esta não poderia ter sido acesa.
O mesmo se dá com o Sol. O erro provém da ideia falsa, alimentada por longo tempo, de que o Universo inteiro começou com a Terra, não se compreendendo, em consequência, que o Sol pudesse ser criado depois da luz. Sabe-se agora que, antes que o nosso Sol e a nossa Terra fossem criados, já existiam milhões de sóis e de terras no espaço, desfrutando, por conseguinte, da luz. Em princípio, pois, a asserção de Moisés é perfeitamente exata; é falsa quando faz crer que a Terra foi criada antes do Sol. Estando, pelo seu movimento de translação, sujeita ao Sol, a Terra houve de ser formada depois dele. É o que Moisés não podia saber, já que ignorava a lei de gravitação.
Essa mesma ideia se encontra na Gênese dos antigos persas. No primeiro capítulo do Vendedad, diz Ormuz, ao narrar a origem do mundo: “Criei a luz que foi iluminar o Sol, a Lua e as estrelas”. (Dicionário de Mitologia Universal) A forma, aqui, é sem dúvida mais clara e mais científica do que em Moisés e dispensa comentários.
Os animais terrestres. – O homem.
• Item 9 •
Moisés, evidentemente, partilhava das mais primitivas crenças sobre a cosmogonia. Como os homens do seu tempo, ele acreditava na solidez da abóbada celeste e em reservatórios superiores para as águas. Essa ideia se acha expressa sem alegoria, nem ambiguidade, nesta passagem (versículos 6 e seguintes): “Deus disse: Faça-se o firmamento no meio das águas para separar das águas as terras. Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento”. (Veja-se cap. V, “Antigos e modernos sistemas do mundo”, itens 3 a 5.)
Segundo uma crença antiga, a água era tida como o princípio primitivo, o elemento gerador, de sorte que Moisés não fala da criação das águas, parecendo que elas já existiam. “As trevas cobriam o abismo”, isto é, as profundezas do espaço, que a imaginação figurava ocupada vagamente pelas águas, em plenas trevas, antes da criação da luz. Eis aí por que Moisés diz: “O Espírito de Deus pairava sobre as águas”. Tida a Terra como formada no meio das águas, era preciso isolá-la. Imaginou-se então que Deus fizera o firmamento – uma abóbada sólida – para separar as águas de cima das que estavam sobre a Terra.
A fim de compreendermos certas partes da Gênese, faz-se indispensável que nos coloquemos no ponto de vista das ideias cosmogônicas da época que ela reflete.
Os animais terrestres. – O homem.
• Item 10 •
Em face dos progressos da Física e da Astronomia, é insustentável semelhante doutrina. [1] Entretanto, Moisés atribui aquelas palavras ao próprio Deus. Ora, já que elas exprimem um fato notoriamente falso, de duas uma: ou Deus se enganou no relato que fez de sua obra, ou esse relato não é de origem divina. Não sendo admissível a primeira hipótese, deve-se concluir que Moisés apenas exprimiu suas próprias ideias. (Cap. 1, item 3.)
Os animais terrestres. – O homem.
• Item 11 •
Moisés se aproxima um tanto mais da verdade, dizendo que Deus formou o homem do limo da terra. [2] De fato, a Ciência demonstra (cap. X) que o corpo do homem se compõe de elementos tomados à matéria inorgânica, ou, por outra, ao limo da terra.
A mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria, aparentemente pueril, se admitida ao pé da letra, mas profunda quanto ao sentido. Tem por fim mostrar que a mulher é da mesma natureza que o homem e que, por conseguinte, é igual a este perante Deus e não uma criatura à parte, feita para ser subjugada e tratada como um ser desprezível. Tendo-a como saída da própria carne do homem, a imagem da igualdade é bem mais expressiva do que se houvera sido formada, separadamente, do mesmo limo. Equivale a dizer ao homem que ela é sua igual e não sua escrava, que ele a deve amar como parte de si mesmo.
Os animais terrestres. – O homem.
• Item 12 •
Para espíritos incultos, sem nenhuma ideia das leis gerais, incapazes de abranger o conjunto e de conceber o infinito, essa criação miraculosa e instantânea apresentava qualquer coisa de fantástico que feria a imaginação. O quadro do Universo tirado do nada em alguns dias, por um só ato da vontade criadora, era para eles o sinal mais evidente do poder de Deus. Que descrição, com efeito, mais sublime e mais poética desse poder do que estas palavras: “Deus disse: Faça-se a luz e a luz foi feita!”. Deus, a criar o Universo pela ação lenta e gradual das Leis da Natureza, lhes teria parecido menor e menos poderoso. Precisavam qualquer coisa de maravilhoso, que saísse do modelo comum, porque, do contrário, teriam dito que Deus não era mais hábil do que os homens. Uma teoria científica e racional da Criação os deixaria frios e indiferentes.
Não rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; ao contrário, estudemo-la, como se estuda a história da infância dos povos. Trata-se de uma época rica de alegorias, cujo sentido oculto se deve buscar; alegorias que se devem comentar e explicar com o auxílio das luzes da razão e da Ciência. Cumpre, no entanto, ao ressaltar as suas belezas poéticas e os seus ensinamentos velados pela forma imaginosa, que se lhe apontem expressamente os erros, no próprio interesse da religião. Esta será muito mais respeitada quando esses erros deixarem de ser impostos à fé, como verdades, e Deus parecerá maior e mais poderoso quando não lhe envolverem o nome em fatos controversos.
Paraíso perdido [3]
• Item 13 •
Capítulo 2 – 8. Ora, o Senhor Deus plantara desde o começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele formara. – 9. O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie de árvores belas ao olhar e cujo fruto era agradável ao paladar e, no meio do paraíso, [4] a árvore da vida, com a árvore da ciência do bem e do mal. (Jeová Eloim fez sair da terra [min haadama] toda árvore bela de se ver e boa para se comer e a árvore da vida [vehetz hachayim] no meio do jardim e a árvore da ciência do bem e do mal.)
Paraíso perdido [3]
• Item 15 •
O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou no paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. – 16. Deu-lhe também essa ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do paraíso. (Jeová Eloim ordenou ao homem [hal haadam] dizendo: De toda árvore do jardim podes comer.) – 17. Mas não comas absolutamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porquanto, logo que o comeres, morrerás com toda a certeza. (E a árvore da ciência do bem e do mal [oumehtz hadaat tob vara] não comerás, pois que no dia em que dela comeres morrerás.)
Paraíso perdido [3]
• Item 14 •
Capítulo 3 – 1. Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela disse à mulher: Por que Deus vos ordenou que não comêsseis os frutos de todas as árvores do paraíso? (E a serpente [Nâhâsch] era mais astuta do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim havia feito; ela disse à mulher [el haïscha]: Eloim terá dito: Não comereis de nenhuma árvore do jardim?) – 2. A mulher respondeu: Comemos dos frutos de todas as árvores que estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à serpente: podemos comer do fruto [miperi] das árvores do jardim.) – 3. Mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não comêssemos dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o perigo de morrer. – 4. A serpente replicou à mulher: Certamente não morrereis. – 5. Mas, é que Deus sabe que, tão logo houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.
6. A mulher considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer; que era belo e agradável à vista. E, tomando dele, o comeu e o deu a seu marido, que também comeu. (A mulher viu que a árvore era boa como alimento, e que era desejável a árvore para compreender [leaskil], e tomou de seu fruto etc.)
8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava à tarde pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram para o meio das árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de diante da sua face.
9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde estás? –
10. Adão lhe respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, sendo essa a razão por que me escondi. – 11. O Senhor lhe retrucou: E como soubestes que estavas nu, senão porque comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que comêsseis? – 12. Adão lhe respondeu: A mulher que me deste por companheira me apresentou o fruto dessa árvore e eu dele comi. – 13. O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste isso? Ela respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse fruto.
14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: Por teres feito isso, serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da terra; andarás sobre o ventre e comerás terra por todos os dias de tua vida. – 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher, entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás morder-lhe o calcanhar.
16. Deus disse também à mulher: Afligir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará.
17. Disse em seguida a Adão: Por haveres escutado a voz de tua mulher e teres comido do fruto da árvore de que te proibi que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e só com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante toda a tua vida. – 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te alimentarás com a erva da terra. – 19. E comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de donde foste tirado, porque és pó e em pó te tornarás.
20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher vestidura de peles com que os cobriu. –
22. E disse: Eis aí Adão feito um de nós, sabendo o bem e o mal. Impeçamos, pois, agora, que ele deite mão à árvore da vida, que também tome do seu fruto e que, comendo desse fruto, viva eternamente. (Jeová Eloim disse: Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da árvore da vida [veata pen ischlachyado velakach mehetz hachayim]; comerá dele e viverá eternamente.)
23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da terra de onde ele fora tirado. E, tendo-o expulsado, colocou querubins [5] diante do jardim de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para guardarem o caminho que levava à árvore da vida.
Paraíso perdido [3]
• Item 15 •
Sob uma imagem pueril e às vezes ridícula, se nos ativermos à forma, a alegoria oculta frequentemente grandes verdades. À primeira vista, haverá fábula mais absurda do que a de Saturno, o deus que devorava pedras, tomando-as por seus filhos? Entretanto, quanta filosofia e quanta verdade nessa figura, se lhe buscarmos o sentido moral! Saturno é a personificação do tempo; como todas as coisas são obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe; mas também tudo se destrói com o tempo. Saturno a devorar pedras é o símbolo da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos, seus filhos, visto que se formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma alegoria, escapa a semelhante destruição? Somente Júpiter, símbolo da inteligência superior, do princípio espiritual que é indestrutível. É mesmo tão natural essa imagem que, na linguagem moderna, sem alusão à fábula antiga, se diz, de uma coisa que afinal se deteriorou, ter sido devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo tempo.
Toda a mitologia pagã, aliás, não é mais, na realidade, do que um vasto quadro alegórico das diversas faces, boas e más, da Humanidade. Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da mais alta filosofia, como acontece com as fábulas da atualidade. O absurdo estava em tomarem a forma pelo fundo.
Paraíso perdido [3]
• Item 16 •
Dá-se a mesma coisa com a Gênese, na qual se têm que perceber grandes verdades morais debaixo das figuras materiais que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão é a personificação da Humanidade; sua falta individualiza a fraqueza do homem, em quem predominam os instintos materiais a que ele não sabe resistir. [6]
A árvore, como árvore da vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da Ciência, é o da consciência do bem e do mal, que o homem adquire pelo desenvolvimento da sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual ele escolhe entre um e outro. Assinala o ponto em que a alma do homem, deixando de ser guiada unicamente pelos instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na responsabilidade dos seus atos.
O fruto da árvore simboliza o objeto dos desejos materiais do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência; resume, numa figura única, os motivos de arrastamento ao mal. O comer é sucumbir à tentação. A árvore se ergue no meio do jardim de delícias para mostrar que a sedução está no seio mesmo dos prazeres e para lembrar que, se o homem der preponderância aos gozos materiais, prender-se-á à Terra e se afastará do seu destino espiritual. [7]
A morte de que ele é ameaçado, caso transgrida a proibição que lhe é feita, é um aviso das consequências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da violação das Leis Divinas que Deus lhe gravou na consciência. É bem evidente que aqui não se trata da morte corpórea, pois que, depois de cometida a falta, Adão ainda viveu longo tempo, mas sim da morte espiritual, ou, em outras palavras, a perda dos bens que resultam do adiantamento moral, perda figurada pela sua expulsão do jardim de delícias.
Paraíso perdido [3]
• Item 17 •
A serpente está longe de ser considerada hoje como tipo de astúcia. Ela entra aqui mais pela sua forma do que pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos maus conselhos, que se insinuam como a serpente e da qual, por essa razão, muitas vezes o homem nem desconfia. Aliás, se a serpente, por haver enganado a mulher é que foi condenada a rastejar, dever-se-á deduzir que antes esse animal tinha pernas; mas, neste caso, já não era serpente. Por quê, então, impor à fé ingênua e crédula das crianças, como verdades, alegorias tão evidentes, e que, falseando o julgamento delas, faz que mais tarde venham a considerar a Bíblia como uma colcha de fábulas absurdas.
?lém disso, deve-se notar que o termo hebreu nâhâsch, traduzido por serpente, vem da raiz nâhâsch, que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas, podendo, pois, significar: encantador, adivinho. Com esta acepção, ele é encontrado na própria
Gênesis 44:5-15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco de Benjamin: “A taça que roubaste é a mesma em que meu Senhor bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch). [8] – Ignoras que não há quem me iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)?”. – No livro
Números 23:23: “Não há encantamentos (nâhâsch) em Jacó, nem adivinhos em Israel”. Em consequência, a palavra nâhâsch tomou também a significação de serpente, réptil que os encantadores tinham a pretensão de encantar, ou de que se serviam em seus encantamentos.
A palavra nâhâsch só foi traduzida por serpente na versão dos Setenta – os quais, segundo Hutcheson, corromperam o texto hebreu em muitos lugares – versão essa escrita em grego no segundo século da era cristã. As inexatidões dessa versão resultaram, sem dúvida, das modificações que a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, visto que o hebreu do tempo de Moisés era uma língua morta, que diferia do hebreu vulgar, tanto quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos. [9]
É, pois, provável que Moisés tenha apresentado como sedutor da mulher o desejo indiscreto de conhecer as coisas ocultas, suscitado pelo espírito de adivinhação, o que concorda com o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por outro lado, com estas palavras “Deus sabe que, logo que houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses. – Ela, a mulher, viu que era cobiçável a árvore para compreender (leaskil) e tomou do seu fruto”. Não se deve esquecer que Moisés queria proscrever de entre os hebreus a arte da adivinhação praticada pelos egípcios, tanto é que proibiu os primeiros de interrogar os mortos e o Espírito Píton. (O Céu e o Inferno, Primeira Parte, cap. XI.)
Paraíso perdido [3]
• Item 18 •
A passagem que diz: “O Senhor passeava pelo jardim à tarde, quando se levanta vento brando”, é uma imagem ingênua e um tanto pueril, que a crítica não deixou de assinalar; mas nada tem que surpreenda, se nos reportarmos à ideia que os hebreus dos tempos primitivos faziam da Divindade. Para aquelas inteligências limitadas, incapazes de conceber abstrações, Deus havia de ter uma forma concreta e eles referiam tudo à Humanidade, como único ponto que conheciam. Por isso Moisés lhes falava como a crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso de que se trata era a personificação da Potência Soberana, como os pagãos personificavam, em figuras alegóricas, as virtudes, os vícios e as ideias abstratas. Mais tarde os homens despojaram da forma a ideia, do mesmo modo que a criança, tornada adulta, procura o sentido moral dos contos com que foi acalentada. Deve-se, portanto, considerar essa passagem como uma alegoria, figurando a Divindade a vigiar em pessoa os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do Eterno Deus, percorrendo o jardim do lado de onde vem o dia”.
Paraíso perdido [3]
• Item 19 •
Se a falta de Adão consistiu literalmente em ter comido um fruto, ela não poderia de modo algum, pela sua natureza quase pueril, justificar o rigor com que foi punida. Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o fato seja qual geralmente o supõem; de outro modo Deus, ao considerar irremissível o fato, teria condenado a sua própria obra, já que Ele criara o homem para a propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no fruto da árvore e com ela se houvesse conformado escrupulosamente, onde estaria a Humanidade e que teria sido feito dos desígnios do Criador.
?eus não criara Adão e Eva para ficarem sós na Terra; a prova disso está nas próprias palavras que lhes dirige logo depois de os ter formado, quando eles ainda estavam no paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso domínio”. (
Gênesis 1:28.) Uma vez que a multiplicação era lei já no paraíso terreno, a expulsão deles dali não pode ter tido como causa o fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de vergonha que Adão e Eva manifestaram ante o olhar de Deus e que os levou a se ocultarem. Mas essa própria vergonha é uma figura por comparação: simboliza a confusão que todo culpado experimenta em presença daquele que por ele foi ofendido.
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• Item 20 •
Finalmente, qual foi, em suma, a falta tão grande que resultou na condenação perpétua de todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi tratado tão severamente. Nenhum teólogo a pôde definir logicamente, porque todos, apegados à letra, giraram dentro de um círculo vicioso.
Hoje já sabemos que essa falta não é um ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que compreende, sob um único fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a Humanidade da Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se culpada e que se resumem nisto: infração da Lei de Deus. Eis por que a falta do primeiro homem, simbolizando este a Humanidade, tem por símbolo um ato de desobediência.
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• Item 21 •
Dizendo a Adão que ele tiraria da terra o alimento com o suor de seu rosto, Deus simboliza a obrigação do trabalho; mas por que fez do trabalho uma punição? Que seria da inteligência do homem se ele não a desenvolvesse pelo trabalho? Que seria da Terra se não fosse fecundada, transformada, saneada pelo trabalho inteligente do homem.
?stá dito (
Gênesis 2:5-7): “O Senhor Deus ainda não havia feito chover na Terra e não havia nela homens que a cultivassem. O Senhor formou então o homem do limo da terra”. Essas palavras, aproximadas destas outras: Enchei a Terra, provam que o homem, desde a sua origem, estava destinado a ocupar toda a terra e a cultivá-la; provam, também, que o paraíso não era um lugar circunscrito a um canto do globo. Se a cultura da terra houvesse de ser uma consequência da falta de Adão, resultaria que, se Adão não tivesse pecado, a terra permaneceria inculta e os desígnios de Deus não se teriam cumprido.
Por que Ele disse à mulher que ela pariria com dor, em virtude de haver cometido a falta? Como pode a dor do parto ser um castigo, quando é um efeito do organismo e quando está provado, fisiologicamente, que é uma necessidade? Como pode ser punição uma coisa que se produz segundo as Leis da Natureza? É o que os teólogos ainda não explicaram, nem poderão explicar enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se colocaram. Entretanto, podem justificar-se aquelas palavras que parecem tão contraditórias.
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• Item 22 •
Notemos, em primeiro lugar, que se as almas de Adão e Eva tivessem sido tiradas do nada, no exato momento da criação de seus corpos, como ainda se ensina, o casal devia ser inexperiente em todas as coisas; devia, pois, ignorar o que é morrer. Já que os dois estavam sozinhos na Terra, ao menos enquanto viveram no paraíso terrestre, não tinham assistido à morte de ninguém. Como, então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como Eva teria podido compreender que parir com dor seria uma punição, visto que, tendo acabado de nascer para a vida, ela jamais tivera filhos e era a única mulher existente no mundo.
?s palavras de Deus, portanto, não deviam ter nenhum sentido para Adão e Eva. Mal surgidos do nada, eles não podiam saber como nem por que haviam surgido ali; não deviam compreender nem o Criador nem o motivo da proibição que lhes era feita. Sem nenhuma experiência das condições da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento, o que torna ainda mais incompreensível a terrível responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e sobre a Humanidade inteira.
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• Item 23 •
Entretanto, o que constitui para a Teologia um caso sem solução, o Espiritismo o explica sem dificuldade e de maneira racional, pela anterioridade da alma e pela pluralidade das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na vida do homem. Com efeito, admitamos que Adão e Eva já tivessem vivido e tudo logo se justifica: Deus não lhes fala como a crianças, mas como a seres no estado de o compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos trazem aquisições anteriores. Admitamos, além disso, que hajam vivido em um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho do Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado contra a Lei de Deus, figurada na desobediência, tenham sido afastados de lá e exilados, por punição, para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido a um trabalho corpóreo, e reconheceremos que Deus estava coberto de razão quando lhes disse: “No mundo em que ireis viver doravante, cultivareis a terra e dela tirareis o alimento com o suor do vosso rosto”; e, à mulher: “Parirás com dor”, porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI, itens 31 e seguintes.)
O paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente procurados na Terra, era, por conseguinte, a figura do mundo de felicidade onde Adão vivera, ou melhor, onde vivera a raça dos Espíritos que ele personifica. A expulsão do paraíso marca o momento em que esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do nosso planeta, e a mudança de situação foi a consequência da expulsão. O anjo armado com uma espada flamejante, a defender a entrada do paraíso, simboliza a impossibilidade em que se acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores, antes que o mereçam pela sua depuração. (Veja-se adiante o cap. XIV, itens 8 e seguintes.)
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• Item 24 •
Capítulo 4 – 13. Caim (Depois do assassínio de Abel), responde ao Senhor: A minha iniquidade é grande demais, para que me possa ser perdoada. – 14. Vós me expulsais hoje de cima da Terra e eu irei me ocultar da vossa face. Serei fugitivo e vagabundo na Terra e qualquer um então que me encontre me matará. – 15. O Senhor lhe respondeu: “Não, isto não se dará, porquanto, quem matar Caim será punido severamente”. E o Senhor pôs um sinal sobre Caim, a fim de que não o matassem os que viessem a encontrá-lo.
16. Tendo-se retirado de diante do Senhor, Caim ficou errando pela Terra e habitou a região oriental do Éden. – 17. Havendo conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu Henoch. Ele construiu (vaïehi bôné; literalmente: estava construindo) uma cidade a que chamou Henoch (Enoquia) do nome de seu filho. (
Gênesis 4:13-17.)
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• Item 25 •
Se nos apegarmos à letra de Gênesis, eis as consequências a que chegaremos: Adão e Eva estavam sós no mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só posteriormente tiveram os dois filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se Caim retirado para outra região depois de haver assassinado o irmão, não tornou mais a ver seus pais, que de novo ficaram isolados. Só muito mais tarde, na idade de cento e trinta anos, foi que Adão teve um terceiro filho, que se chamou Seth, depois de cujo nascimento ele ainda viveu, segundo a genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve mais filhos e filhas.
Quando, pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden, somente havia na Terra três pessoas: seu pai e sua mãe, e ele, sozinho, de seu lado. Entretanto, Caim teve mulher e um filho. Que mulher podia ser essa e onde ele pudera desposá-la? O texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade, e não: ele construiu, o que indica uma ação presente e não posterior. Mas uma cidade pressupõe a existência de habitantes, visto não ser de presumir que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem que a pudesse edificar sozinho.
Dessa própria narrativa, portanto, logo se conclui que a região era povoada. Ora, não podia sê-lo pelos descendentes de Adão, que então se reduziam a um só: Caim. Aliás, a presença de outros habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre me matará”, e da resposta que Deus lhe deu. Por quem ele temia ser morto e que utilidade teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo, visto que ele não iria encontrar ninguém? Ora, se havia na Terra outros homens além da família de Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, de onde se deduz esta consequência, tirada do próprio texto de Gênesis: Adão não é o primeiro, nem o único pai do gênero humano. (Cap. XI, item 34.) [10]
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• Item 26 •
Eram necessários os conhecimentos que o Espiritismo forneceu acerca das relações do princípio espiritual com o princípio material, acerca da natureza da alma, da sua criação em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união com o corpo, da sua indefinida marcha progressiva através de sucessivas existências e através dos mundos, que são outros tantos degraus da senda do aperfeiçoamento, acerca da sua gradual libertação da influência da matéria, mediante o uso do livre-arbítrio, da causa dos seus pendores bons ou maus e de suas aptidões, do fenômeno do nascimento e da morte, da situação do Espírito na erraticidade e, finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por se melhorar e da sua perseverança no bem, para que se fizesse luz sobre todas as partes da Gênese espiritual.
Graças a essa luz, o homem sabe doravante de onde vem, para onde vai, por que está na Terra e por que sofre. Sabe que seu futuro está em suas mãos e que a duração do seu cativeiro neste mundo depende unicamente dele. Despida da alegoria acanhada e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de vista, ela confundirá a incredulidade e triunfará.
[1]N. de A. K.: Por mais grosseiro que seja o erro de tal crença, com ela ainda se embalam as crianças do nosso tempo, como se se tratasse de uma verdade sagrada. Tremem os educadores quando ousam aventurar-se a uma tímida interpretação. Como pretenderem que isso não venha mais tarde a fazer incrédulos?
[2]N. de A. K.: O termo hebreu haadam, homem, do qual se compôs Adão, e o termo haadama, terra, têm a mesma raiz
[3]N. de A. K.: Em seguida a alguns versículos se acha a tradução literal do texto hebreu, exprimindo mais fielmente o pensamento primitivo. O sentido alegórico ressalta assim mais claramente.
[4]N. de A. K.: Paraíso, do latim paradisus, derivado do grego paradeisos, jardim, pomar, lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado em Gênesis é hagan, que tem a mesma significação.
[5]N. de A. K.: Do hebreu cherub, keroub, lavrar; anjos do segundo coro da primeira hierarquia, que eram representados com quatro asas, quatro faces e patas de boi.
[6]N. de A. K.: Está hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebreia haadam não é um nome próprio, mas significa: o homem em geral, a Humanidade, o que destrói toda a estrutura levantada sobre a personalidade de Adão.
[7]N. de A. K.: Em nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só se encontra nas versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as mesmas acepções que em francês, sem determinação de espécie e pode ser tomado em sentido material, moral, alegórico, em sentido próprio e figurado. Para os israelitas não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem várias acepções, cada um a entende como quer, contanto que a interpretação não seja contrária à gramática. O termo peri foi traduzido em latim por malum, que se aplica tanto à maçã, como a qualquer outra espécie de frutos. Deriva do grego melon, particípio do verbo melo, interessar, cuidar, atrair.
[8]N. de A. K.: Desse fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade no copo de água? (Revista Espírita, junho de 1868.)
[9]N. de A. K.: O termo nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de negro, provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos e da adivinhação. Talvez também por isso é que as esfinges, de origem assíria, eram representadas por uma figura de negro.
[10]N. de A. K.: Esta ideia não é nova. La Peyrère, sábio teólogo do século dezessete, em seu livro Preadamitas, escrito em latim e publicado em 1655, extraiu do texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções, a prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão. Essa é a opinião atual de muitos eclesiásticos esclarecidos.