Cartas do Alto

Capítulo XIX

Doutrina renovadora



Espiritismo — doutrina renovadora. Codificada por Allan Kardec, sob a égide do Senhor, teve os seus princípios e medianeiros experimentados no laboratório, examinados no gabinete e discutidos na praça pública.

É impossível efetuar-lhe o inventário de preciosas realizações em vinte lustros de atividade.

Revelou pela demonstração positiva a sobrevivência do ser além da morte.

Fez-se o pálio de imarcescíveis consolações para a humanidade.

Descerrou as realidades da reencarnação, trazendo sentido novo às questões do destino.

Abriu novos horizontes à glória do Espírito.

Baseou a fraternidade nos alicerces da razão pura.

E reconstruiu o santuário da fé viva que o dogmatismo religioso havia transformado em deserto.

Entretanto não será lícito arrear-lhe o lábaro augusto com atitudes exteriores.

É imperioso que, à feição de seus vexilários humildes, nos arregimentemos para a obra da luz e do amor, abraçando não apenas os nossos compromissos no culto tradicional.

É indispensável a movimentação de nossos valores para que a sua influência divina se estenda a todos os que nos cercam.


A lavoura do coração e do cérebro reclama esforço ingente. Caridade por disciplina. Educação por dever. Virtude e conhecimento. Benemerência e instrução.

Sem dúvida, achamo-nos muito longe do amor que brilha na auréola dos santos e do fulgor intelectual que ornamenta a fronte dos sábios.

Contudo é preciso começar a sublimação como quem começa a existência.

Diz-nos o Senhor na bênção da Escritura: — “Misericórdia quero e não sacrifício” (Os 6:6).

E o Espírito da Verdade, na Codificação de Kardec, afirma convincente: — “Espíritas, amai-vos, eis o primeiro ensino. Instrui-vos, eis o segundo” ().

Urge, assim, que a nossa beneficência não se expresse tão-só na doação daquele supérfluo de que nos desvencilhamos com enfado, e que a nossa cultura doutrinária não se limite a mera repetição de fórmulas verbalistas.

Erguer orfanatos, sim, com vistas à infância que o abandono injuria, mas chamar ao calor da própria alma a criança infeliz do lar subnutrido que viceja, mirrado, ao pé de nosso jardim doméstico.

Edificar, indiscutivelmente, sanatórios e retiros para a saúde e refazimento do enfermo que padece na via pública, no entanto não desprezar o doente que, em sua pobreza oculta, sofre em silêncio a prova que regenera.

Materializar, decididamente, institutos e escolas que formem, com valor, na extinção da treva, todavia ofertar a lâmpada do alfabeto ou o socorro de um livro nobre ao companheiro que viaja na sombra da ignorância ou do desespero.

Todos somos calcetas à frente da justiça divina. Todos, porém, detemos valiosos recursos para ajudar no apostolado da libertação uns dos outros.

O auxílio que ninguém pede é a chave milagrosa do auxílio de que todos necessitamos.

Multipliquemos os nossos potenciais de trabalho renovador, retirando-nos de nós mesmos ao encontro do irmão que passa.

Embora sejamos almas detidas nas grades da Lei, para justas reparações, ainda assim é possível fazer muito.

Jesus, o Senhor, veio da magnificência divina, buscando, com discrição e bondade, as chagas de nossa imensa miséria para leni-las com bálsamo salutar.

Reconfortou-nos e instruiu-nos, tolerou-nos e curou-nos, sem condenar a incompreensão com que lhe preparamos a cruz.

De posse, hoje, dos tesouros eternos do Espiritismo, saibamos, desse modo, esposar como nosso dever puro e simples o culto da assistência fraterna e o serviço da educação.




Reformador — Janeiro de 1958.


Nota de Reformador: “Essa frase, em Mateus 9:13-12.7, na tradução para o Esperanto, em vez de “Misericórdia” diz “Beneficência”, isto é, “Mi deziras bonfaradon, sed ne oferon”.


Segundo consta do original, a mensagem foi recebida em 17/11/1957. Não há referência de local.