Cartas e Crônicas

Capítulo XXXIV

O grande ceifador



Comentando certas dificuldades da genuína propaganda espírita, o velho Jonathan, antigo seguidor do Evangelho em nosso campo de ação espiritual, tomou a palavra e falou, sorrindo:

— No tempo do Mestre, semelhantes entraves não eram menores. A gloriosa missão do Senhor ia em meio, quando surgiram várias legiões de supostos discípulos da Boa Nova, à margem das atividades evangélicas. Multidões desarvoradas, ao comando de chefes que se diziam continuadores de , enxameavam nas hordas do Jordão, a se dispersarem na Palestina e na Síria. Capitães da revolta popular contra o domínio romano, após ouvirem as lições do Senhor, usavam-lhe a doutrina, criando a discórdia sistematizada, em nome da solidariedade humana, nos diversos vilarejos que circulavam o Tiberíades.

Todos erguiam flamejante verbo, asseverando falar em nome do Divino Renovador.

Jesus, o Messias Nazareno, achava-se entre os homens, investido da autoridade indispensável à formação de um Novo Reino.

Destruiria os potentados estrangeiros e aniquilaria os ditadores do poder.

Discursos preciosos faziam-se ouvir nos cenáculos do povo e nos quadros rústicos da natureza, exaltando a boa vontade e a comunhão das almas, o devotamento e a tolerância entre as criaturas.

Milhares de ouvintes escutavam, enlevados, as pregações, extáticos e felizes, qual se já respirassem num mundo novo.

Contudo, no turbilhão dos conceitos vibrantes e nobres, alinhavam-se aqueles que, arrecadando dinheiro para socorro às viúvas e aos órfãos, olvidavam-nos deliberadamente para enriquecerem a própria bolsa, e apareciam os oportunistas que, em se incumbindo da doutrinação referente à fraternidade, utilizavam-se da frase primorosa e bem feita, para a realização das mais baixas manobras políticas.

Foi por isso que, em certo crepúsculo, quando a multidão se congregava em torno do Mestre, junto às águas, para recolher-lhe a palavra consoladora e o ensino salutar, Simão Pedro, homem afeiçoado à rude franqueza, valendo-se da grande pausa que o Eterno Benfeitor imprimira à própria narrativa, quando expunha a parábola do semeador, interpelou-O, diretamente, indagando:

— Mestre, e que faremos dos que exploram a ideia do Reino de Deus? Em muitos lugares, encontramos aqueles que formam grupos de serviço, em nome da Boa Nova nascente, tumultuando corações em proveito próprio. Agitam a mente popular e formulam promessas que não podem cumprir… Em Betsaida, temos a falange de Berequias ben Zenon que a dirige com entusiasmo dominante, apropriando-se-vos da mensagem sublime para solicitar as dracmas de pobres pescadores, alegando destiná-las aos doentes e às viúvas, mas, embora preste auxílio a reduzido número de infortunados, guarda para si mesmo a maior parte das ofertas amealhadas e, ainda hoje, em Cafarnaum, ouvi a prédica brilhante de Aminadab ben Azor, que se prevalece de vossas lições divinas para induzir o povo à indisciplina e à perturbação, não obstante pronuncie afirmativas e preces que reconfortam o espírito dos que sofrem nos caminhos árduos da Terra… Como agir, Senhor? Será justo nos subordinemos à astúcia dos ambiciosos e à manha dos velhacos? como relegar o Evangelho à dominação de quantos se rendem à vaidade e à avidez da posse, ao egocentrismo e à loucura?

Jesus meditou alguns instantes e replicou:

— Simão, antes de tudo, é preciso considerar que o crime confesso encontra na lei a corrigenda estabelecida. Quem rouba é furtado, quem ilude os outros, engana a si próprio, e quem fere será ferido…

— Mas, Senhor — tornou o apóstolo —, no processo em exame, creio seja necessário ponderar que os males decorrentes da falsa propaganda são incomensuráveis… Não haverá recurso para sustá-los de imediato?

O Excelso Amigo considerou, paciente:

— Se há juízes no mundo que nasceram para o duro mister de retificar, aqui nos achamos para a obra do auxílio. Não podemos olvidar que os verdadeiros discípulos da Boa Nova, atentos à missão de amor que lhes cabe, não dispõem de tempo e disposição para partilhar as atividades dos irmãos menos responsáveis… Além disso, baseando-me em sua própria palavra, não estamos diante de companheiros totalmente esquecidos da caridade. Disseste que Berequias ben Zenon, pelo menos, ampara alguns infelizes que lhe cercam a estrada e que Aminadab ben Azor, no seio das palavras insensatas que pronuncia, encaixa ensinamentos e orações de valia para os necessitados de luz… E se formos sopesar as esperanças e possibilidades, os anseios e as virtudes dos milhares de amigos provisórios que os acompanham, como justificar qualquer sentença condenatória de nossa parte?

O apontamento judicioso ficou no ar, e, como ninguém respondesse, Jesus espraiou o olhar no horizonte longínquo, como quem apelava para o futuro, e ditou a parábola do joio e do trigo, que consta do capítulo treze das anotações de Mateus:

— “O reino dos Céus é semelhante ao homem que semeia a boa semente em seu campo; mas, ao dormir, eis que veio o inimigo e semeou joio no meio do trigo, retirando-se após. Quando a erva cresceu e frutificou, apareceu também o joio. E os servos desse pai de família, indo ter com ele, disseram-lhe: — Senhor, não semeaste no campo a boa semente? porque a intromissão do joio? E ele lhes disse: — Um adversário é quem fez isso. E os servos acentuaram: — Queres, pois, que o arranquemos? Respondeu-lhes, porém, o senhor: — Isso não, para que não aconteça extirpemos o joio, sacrificando o trigo. Deixemo-los crescer juntos até à ceifa. Nessa ocasião, direi aos trabalhadores: — Colhei primeiramente o joio para que seja queimado e ajuntai o trigo no meu celeiro.” (Mt 13:1)

Calou-se o Cristo, pensativo…

Todavia, Simão, insatisfeito, volveu a perguntar:

— Mas… Senhor, Senhor!… em nosso caso, quem colherá a verdade, separando-a da mentira?

O Mestre sorriu de novo e respondeu:

— Pedro, o tempo é o grande ceifador… Esperemos por ele, cumprindo o dever que nos compete… A vida e a justiça pertencem ao Pai e o Pai decidirá quanto aos assuntos da vida e da justiça…

E porque ninguém lhe opusesse embargo à lição, calou-se o Mestre para demandar, em seguida, outros ensinos…

Silenciou o velho Jonathan e, a nosso turno, com material suficiente para estudo, separamo-nos todos para concluir e meditar.


(.Humberto de Campos)