Cartas e Crônicas

Capítulo VI

Tragédia no circo



Naquela noite, da época recuada de 177, o “concilium” de Lião regurgitava de povo.

Não se tratava de nenhuma das assembleias tradicionais da Gália, junto ao altar do Imperador, e sim de compacto ajuntamento.

reinava, piedoso, e, embora não houvesse lavrado qualquer rescrito em prejuízo maior dos cristãos, permitira se aplicassem na cidade, com o máximo rigor, todas as leis existentes contra eles.

A matança, por isso, perdurava, terrível. Ninguém examinava necessidades ou condições. Mulheres e crianças, velhos e doentes, tanto quanto homens válidos e personalidades prestigiosas, que se declarassem fiéis ao Nazareno, eram detidos, torturados e eliminados sumariamente.

Através do espesso casario, a montante da confluência do Ródano e do Saône, multiplicavam-se prisões, e no sopé da encosta, mais tarde conhecida como colina de Fourvière, improvisara-se grande circo, levantando-se altas paliçadas em torno de enorme arena.

As pessoas representativas do mundo lionês eram sacrificadas no lar ou barbaramente espancadas no campo, enviando-se os desfavorecidos da fortuna, inclusive grande massa de escravos, ao regozijo público.

As feras pareciam agora entorpecidas, após massacrarem milhares de vítimas, nas mandíbulas sanguissedentas. Em razão disso, inventavam-se tormentos novos.

Verdugos inconscientes ideavam estranhos suplícios. Senhoras cultas e meninas ingênuas eram desrespeitadas antes que lhes decepassem a cabeça, anciães indefesos viam-se chicoteados até a morte. Meninos apartados do reduto familiar eram vendidos a mercadores em trânsito, para servirem de alimárias domésticas em províncias distantes, e nobres senhores tombavam assassinados nas próprias vinhas.

Mais de vinte mil pessoas já haviam sido mortas.


Naquela noite, a que acima nos referimos, anunciou-se para o dia seguinte a chegada de Lúcio Galo, famoso cabo de guerra, que desfrutava atenções especiais do Imperador por se haver distinguido contra a usurpação do general Avídio Cássio, e que se inclinava agora a merecido repouso.

Imaginaram-se, para logo, comemorações a caráter. Por esse motivo, enquanto lá fora se acotovelavam gladiadores e jograis, o patrício Álcio Plancus, que se dizia descendente do fundador da cidade, presidia a reunião, a pedido do Propretor, programando os festejos.

— Além das saudações, diante dos carros que chegarão de Viena — dizia, algo tocado pelo vinho abundante —, é preciso que o circo nos dê alguma cena de exceção… O lutador Setímio poderia arregimentar os melhores homens; contudo, não bastaria renovar o quadro de atletas…

— A equipe de dançarinas nunca esteve melhor aventou Caio Marcelino, antigo legionário da Bretanha que se enriquecera no saque.

— Sim, sim… — concordou Álcio — instruiremos Musônia para que os bailados permaneçam à altura…

— Providenciaremos um encontro de auroques — lembrou Pérsio Níger.

— Auroques! Auroques!…— clamou a turba em aprovação.

— Excelente lembrança! — falou Plancus em voz mais alta — mas, em consideração ao visitante, é imperioso acrescentar alguma novidade que Roma não conheça…

Um grito horrível nasceu da assembleia:

— Cristãos às feras! cristãos às feras!

Asserenado o vozerio, tornou o chefe do conselho:

— Isso não constitui novidade! E há circunstâncias desfavoráveis. Os leões recém-chegados da África estão preguiçosos…

Sorriu com malícia e chasqueou:

— Claro que surpreenderam, nos últimos dias, tentações e viandas que o próprio Lúculo jamais encontrou no conforto de sua casa…

Depois das gargalhadas gerais. Álcio continuou, irônico:

— Ouvi, porém, alguns companheiros, ainda hoje, e apresentaremos um plano que espero resulte certo. Poderíamos reunir, nesta noite, aproximadamente mil crianças e mulheres cristãs, guardando-as nos cárceres… E, amanhã, coroando as homenagens, ajuntá-las-emos na arena, molhada de resinas e devidamente cercada de farpas embebidas em óleo, deixando apenas passagem estreita para a liberação das mais fortes. Depois de mostradas festivamente em público, incendiaremos toda a área, deitando sobre elas os velhos cavalos que já não sirvam aos nossos jogos… Realmente, as chamas e as patas dos animais formarão muitos lances inéditos..

— Muito bem! Muito bem! — rugiu a multidão, de ponta a ponta do átrio.

— Urge o tempo — gritou Plancus — e precisamos do concurso de todos… Não possuímos guardas suficientes…

E erguendo ainda mais o tom de voz:

— Levante a mão direita quem esteja disposto a cooperar.

Centenas de circunstantes, incluindo mulheres robustas, mostraram destra ao alto, aplaudindo em delírio. Encorajado pelo entusiasmo geral, e desejando distribuir a tarefa com todos os voluntários, o dirigente da noite enunciou, sarcástico e inflexível:

— Cada um de nós traga um…Essas pragas jazem escondidas por toda a parte… Caçá-las e exterminá-las é o serviço da hora…

Durante a noite inteira, mais de mil pessoas, ávidas de crueldade, vasculharam residências humildes e, no dia subsequente, ao sol vivo da tarde, largas filas de mulheres e criancinhas, em gritos e lágrimas, no fim de soberbo espetáculo, encontraram a morte, queimadas nas chamas alteadas ao sopro do vento, ou despedaçadas pelos cavalos em correria.


Quase dezoito séculos passaram sobre o tenebroso acontecimento… Entretanto, a justiça da Lei, através da reencarnação, reaproximou todos os responsáveis, que, em diversas posições de idade física, se reuniram de novo para dolorosa expiação, a 17 de dezembro de 1961, na cidade brasileira de Niterói, em comovedora tragédia num circo.


(.Humberto de Campos)


Em meio ao espetáculo lotado de espectadores a lona que recobria o grande circo pegou fogo e desabou sobre os presentes deixando enorme número de vítimas Outra tragédia como esta, com um número de vítimas muito maior, ocorreu numa boate em S. Maria. RS.