Cartas e Crônicas

Capítulo XI

Serviço e tempo



A senhora Juvercina Trajano era um prodígio de minudências.

Aos quase sessenta de idade, reafirmava a sua condição de missionária do Cristo, no amparo à infância, com particularidades preciosas de informação.

Espírita fervorosa, sabia-se reencarnada para o desempenho de grande tarefa. Cabia-lhe socorrer crianças desprotegidas. Antevia a obra imensa. Mentalizava-se rodeada de pequeninos a lhe rogarem ternura. Enternecia-se ao narrar as próprias recordações da sua vida de Espírito, antes do berço, pois Dona Juvercina chegava a lembrar-se do tempo em que se via, no Plano Espiritual, preparando a existência física em que se reconhecia habilitada ao grande empreendimento. Revia-se em companhia de vários benfeitores desencarnados, visitando instituição assistencial de zonas inferiores e anotando dezenas de Espíritos, positivamente desorientados e infelizes, aos quais prestaria auxílio eficiente, depois de reinstalada na Terra.

E a senhora Trajano explicava, vezes e vezes, para os amigos admirados:

— Torno a ver o sítio escuro e esquisito, como se fosse agora… Um vale extenso, repleto de almas agoniadas, necessitando retomar a experiência do mundo, à feição de alunos aguardando ansiosamente os benefícios da escola. Creiam que ouço ainda a voz do instrutor paternal que me dizia ser o Irmão Ambrósio, a falar-me confiantemente: — “Sim, minha irmã, você renascerá na Terra com a missão de patrocinar crianças em abandono, será benfeitora maternal dos filhinhos da expiação e do sofrimento… Deste recanto de aprendizado, partirão oitenta Espíritos transviados, mas sequiosos de esclarecimento e de amor, ao encontro de seus braços…Você organizará para eles um lar regenerador. Não lhe faltarão recursos para situá-los no ambiente preciso. Volte à Terra e trabalhe… Compreenda que para assegurar os alicerces de sua obra, você carregará a responsabilidade sobre o reajuste de oitenta irmãos nossos, desorientados e enfermos que tomarão, depois de você, o corpo carnal para o esforço restaurativo… Seguirão eles, a pouco e pouco, sob nossa vigilância, na direção de seu carinho!…”

A senhora Trajano alinhava reminiscências, entre entusiasmada e comovida. E, realmente, desde os trinta e dois de idade, iniciara, com êxito, a construção de um lar para os rebentos do infortúnio.

O empreendimento, lançado por ela em terreno fértil, encontrara a melhor acolhida. Corações nobres haviam chegado, colocando-lhe nas mãos os recursos imprescindíveis. Facilidades, ofertas, dinheiro e cooperação.

Em cinco anos, erguera-se o vasto domicílio, simples sem penúria e confortável sem excesso. Juvercina, todavia, se fizera exigente e, por isso, conquanto a casa se patenteasse digna e pronta, prosseguia descobrindo detalhes que considerava de especial importância. Nunca se sentia com bastante conforto para albergar as dezenas de crianças desventuradas que lhe batiam às portas. Depois do edifício acabado, quis aumentá-lo. Efetuados numerosos acréscimos, reclamou mais terras. Compradas as terras, decidiu a formação de pomares. Multiplicaram-se campanhas, projetos, apelos e doações. Mas não ficou nisso. Resolveu modificar, por várias vezes, o sistema de água, a iluminação, a estrutura das paredes, os tetos e os pisos. Deliberou experimentar sementeiras diferentes, em hortas e jardins, reformando-as, insatisfeita. Quando tudo fazia prever a inauguração, solicitou varandas e pérgulas, além de galpões e caprichosas calçadas. Se a obra não se alterava por dentro, surgiam as novidades de fora. E vinte e seis anos passaram na expectativa…

Todo esse tempo se desdobrara em pormenores e pormenores, quando, na reunião mediúnica semanal de que era ela companheira solícita, compareceu, por um dos médiuns psicofônicos, o Irmão Ambrósio em pessoa. Partilhando a surpresa dos circunstantes, Dona Juvercina chorou, empolgada. Aquela voz… Conhecia aquela voz…

O mensageiro exortou-a ao cumprimento da promessa e explanou, com elegância e beleza, sobre as necessidades da infância, no estágio da reencarnação terrestre.

Juvertina escutou e escutou, mas, percebendo que a palavra do instrutor continha para ela expressiva inflexão de advertência, indagou, respeitosa, quando o comunicante se dispunha a despedir-se:

— Irmão Ambrósio, não estarei sendo leal a mim mesma? O irmão admite que me mantenho fiel às obrigações que abracei?

O interlocutor fixou inesquecível gesto de brandura e respondeu com a bondade de um pai que aconselha uma filha:

— Sim, minha irmã, você tem sido muito exata no programa traçado, tem trabalhado e sofrido pela obra, mas não se esqueça do tempo… As horas são empréstimos preciosos!…

E acrescentou sob o espanto geral:

— Trinta Espíritos necessitados de recondução e assistência, dos oitenta que você se comprometeu a socorrer e reeducar, são agora delinquentes de novo… Dois são obsidiados perigosos na via pública, seis estão fichados por doentes mentais em penitenciárias e os restantes vinte e dois se encontram internados em diversas cadeias.


(.Humberto de Campos)