Cartas e Crônicas

Capítulo XVII

Influência do bem



Diz você que os espíritas exageram os temas de caridade, lançando livros, escrevendo crônicas, pronunciando conferências e traçando anotações, em torno da sublime virtude.

“Assistência social não será obra para governo?” pergunta você com a serenidade de quem se julga exonerado de auxiliar o corpo de bombeiros na liquidação de um incêndio. E acrescenta: “Creio que os desencarnados, a título de beneficência, não deveriam estimular a preguiça e a vagabundagem.”

Não posso dizer que você fala assim por ser um homem nascido de berço manso, com todas as facilidades do pão e da educação, e concordo plenamente com o seu ponto de vista, quanto a esperarmos da ação administrativa solução adequada aos problemas da ignorância e da penúria. Entretanto, que nadador não estenderá braços amigos ao banhista que o mar grosso ameaça com a morte, simplesmente porque o guarda esteja ocupado ou distraído no posto de salvamento?

Além disso, a caridade é ingrediente da paz em todos os climas da existência, não apenas aliviando os sofredores ou soerguendo caídos, mas também frustrando crimes e arredando infortúnios.

Certo que a justiça é fundamento do Universo; contudo, o amor é alma da vida.

Quantos enigmas do ódio resolvidos num gesto de brandura? Quantas toneladas de sombra, segregadas no tonel do sofrimento, se escoam pela fresta descerrada por um raio de luz?

Compreendo que você, reencarnado qual se encontra, terá dificuldade para entender os obstáculos que a bondade dissolve em silêncio, mas, deste outro lado da experiência terrestre, somos defrontados, hora a hora, por lições vivas que nos convidam a servir e pensar.

O trabalho e a dor, o aviso e a provação fazem muito em benefício da alma; no entanto, a caridade propicia renovação imediata ao destino.

O Talmude, alinhando lições de sabedoria, conta que dois aprendizes do Rabi Hanina recusavam sistematicamente aceitar avisos e predições de adivinhos, fossem eles quais fossem.

Um dia houve em que, penetrando na floresta, a fim de lenhar, ambos encontraram velho clarividente que viu, em torno deles, vasta coorte de malfeitores desencarnados, desejosos de dar-lhes perseguição e morte.

O mago, para não assustá-los em demasia com as minudências da visão, fitou as estrelas qual se buscasse nos astros as palavras que iria pronunciar e pediu-lhes considerassem os riscos a que se expunham, aconselhando-os urgente regresso a casa. Sombrios vaticínios lhes pesavam na marcha. Mais razoável tornar ao aconchego doméstico, de vez que provavelmente não sairiam vivos da mata.

Riram-se os jovens da advertência, prosseguindo adiante.

Vencido pequeno trecho de estrada, foram defrontados por um velhinho a lhes rogar algum recurso com que pudesse matar a fome.

Os rapazes não traziam consigo outro farnel que não fosse um naco de pão; todavia, não hesitaram dividi-lo com o pedinte que, ali mesmo, suplicou a Deus lhes retribuísse a beneficência.

Os improvisados lenhadores, sem maior atenção para com o incidente, muniram-se dos gravetos de que necessitavam e voltaram ao vilarejo, sem o menor contratempo que lhes tisnasse a alegria.

Certo homem, contudo, que observara a predição e aguardava os resultados, dirigiu-se ao clarividente, indagando com ironia:

— Embusteiro, como explicas teu erro? Os moços retornaram mais felizes que nunca.

O ancião, intrigado, procurou os rapazes e, notando-os libertos dos obsessores que se lhes faziam acompanhantes, solicitou permissão para examinar os fardos que traziam e, desatados os feixes de maravalhas, foi encontrada num deles uma serpente morta, cortada ao meio.

— Vistes? — falou o mago — a morte esteve a pique de arrasar-vos… O golpe, porém, foi removido. Que fizestes para merecer a Divina Misericórdia que vos livrou do desastre fatal?

Um dos interpelados informou que o único episódio de que se lembrava era simplesmente o encontro com um velho esfaimado com quem haviam os dois repartido a merenda.

O adivinho mostrou regozijo indisfarçável e falou para o homem que o criticara:

— Tudo agora está claro! Que se pode fazer se a lei de Deus se deixa influenciar por um pedaço de pão?


Desculpará você se recorro à página de antigos documentos hebreus para responder à sua carta; entretanto, se o conto simples nos fala dos créditos de um pedaço de pão doado com amor, perante as Leis Divinas, imaginemos o júbilo que reinará entre nós quando soubermos criar a felicidade dos semelhantes, empenhando à fraternidade o coração inteiro.


(.Humberto de Campos)