Meu amigo, você estranha, sensibilizado, que certo “morto” inteligente haja olvidado o compromisso de identificar-se, em mensagem pessoal, a determinado companheiro “vivo”.
Refere-se ao contrato de dois escritores respeitáveis que os interesses afetivos entrelaçaram, profundamente, através de tertúlias literárias.
Um, à frente da morte, prometeu ao outro, mergulhado nas correntes da vida carnal, que voltaria das pesadas águas do , com noticiário elegante e compreensível. Preliminarmente, porém, o amigo “morto” leria, em espetáculo de grande estilo, certa ordem de palavras que o amigo “vivo” manteria em segredo no cofre forte. Reconhecido, então, pelos poderes divinatórios, o autor desencarnado, promovido a oráculo, passaria à condição de novo Marco Polo, com rádio e televisão para todos os recantos do mundo.
Com semelhante realização, em seu parecer que eu prezo muito, o Espiritismo salvador seria respeitado em toda parte.
Todavia, o notável escritor desencarnado, em quebrando os selos do túmulo, pareceu desmemoriado e distraído e não se arriscou à execução da promessa.
E você, à maneira de muita gente, duvidou e sofreu, porque aguardava a solução ao problema da imortalidade, assim como se espera numa arena esportiva o resultado de uma partida de futebol.
O literato encarnado, copiando a tartaruga que de modo algum aceita a existência de outra praia, além daquela em que respira, enquanto dispõe de abrigo na carapaça, sorriu e negou, embriagado pelas grossas volutas de incenso narcotizante da vaidade, e vocês, os torcedores da pugna entre dois mundos, permaneceram desapontados.
Creia, porém, que a morte só é simples mergulho na vida espiritual, para quem soube ser realmente simples na experiência terrestre.
Considerando, contudo, a complexidade de nossos desejos e os complicados processos de luta a que nos afeiçoamos, ninguém julgue que “largar o corpo”, traduza “ascensão ao Céu”. Enrola-se-nos a vida mental em múltiplos caprichos e, quando suspiramos pela libertação verdadeira, eis que a nossa independência jaz subordinada aos emaranhados novelos de nossos pensamentos que resultam em compromissos e prisões de variada espécie.
Somos balões cativos ao lastro de nós mesmos, incapazes de voo mais elevado no clima universalista, ainda mesmo quando sejamos portadores de intelectualidade brilhante, a modo de ave rara pela plumagem ou pelo canto, dentro da floresta.
Nossa grandeza legítima não reside naquilo que aparentamos e, sim, no que somos.
A transição do corpo é fácil, mas a renovação da alma é difícil.
Os desencarnados arrependidos, perturbados e sofredores constituem vastíssima retaguarda, congregando soldados e lidadores que não souberam vencer na posição a que foram conduzidos.
Para meu consolo de jornalista humilde e anônimo, tenho visto reis e políticos, papas e condutores, cientistas e filósofos, aflitos pelo reajustamento próprio, confinados a extremas desilusões, qual se estivessem em escuro sótão reservado pela vida à sucata espiritual.
Quanto aos méritos do acontecimento para a doutrina consoladora que nos reúne, não acredite que as adivinhações de um pensador invisível possam desviar o curso natural do serviço que nos cabe realizar. Surgiriam mil recursos à sonegação calculada. Os observadores renitentes citariam Houdini, o mágico, e os menos afeitos ao beletrismo recordariam algum trapaceiro de circo vulgar, porque, realmente, a prova, em si, condiz muito mais com a telepatia e com a clarividência comuns.
Nas demonstrações fenomênicas, temos sempre grande número de entidades veneráveis inibidas de fazer o que podem, porque há., igualmente, grande número de médiuns que não se animam a fazer o que devem, cabendo-nos, no entanto, a obrigação de crer no futuro, trabalhando, invariavelmente, pela vitória da verdade.
O único Espiritismo triunfante é aquele que espiritualiza o indivíduo; e a hora dessa natureza é logicamente morosa, por efetiva e segura.
Fenômenos por fenômenos, ninguém superará os do Cristo, materializando Espíritos célebres no Tabor, ressuscitando cadáveres em Naim e Betânia, curando leprosos, cegos, aleijados e loucos em Cafarnaum e Jerusalém… Entretanto, as revelações d’Ele ainda não foram aceitas pela Humanidade inteira. E a nossa própria adaptação aos seus ensinamentos, da qual espalhamos tanto alarde através de prelos e tribunas, ainda deixa muitíssimo a desejar.
Prossigamos assim, meu amigo, na edificação doutrinária, com aplicação e diligência, serenidade e perseverança, por dentro e por fora, servindo por amor, avançando pela fé viva e glorificando a luta construtiva, em nome da vida eterna.
Quanto à massa dos que descreem da própria existência de Deus, ajudemo-la, quanto estiver em nossas possibilidades, recordando, porém, com o velho Horácio, que a morte, à porta de juízes e condenados, de doutos e ignorantes, de aristocratas e plebeus, “bate com pé indiferente”.