Cartas e Crônicas

Capítulo XXXIII

Anotação simples



Entrevistado, através da televisão, você, meu amigo, jornalista distinto, afirmou que os escritores e poetas desencarnados estão transformando o Brasil numa grande necrópole. E acrescentou, irônico: porque não se consagram os Espíritos a outras atividades artísticas? por que razão não vem Da Vinci pintar alguma tela que lhe marque a glória inconfundível, como prova da sobrevivência? porque não se faz ouvido o gênio musical de Chopin nas sessões espíritas, atestando a continuidade da vida, além-túmulo? Entretanto, somente nós, os pobres escrevinhadores da vida carnal, em sua opinião, tornamos à arena física, padecendo pruridos de publicidade, famintos de evidência…

E você, transbordando sarcasmo, termina a conversação sugerindo que o acervo de nossos avisos não passa de mistificações, em que os médiuns, à feição de modernos pelotiqueiros, se fazem credores das atenções da própria justiça.

Suas perguntas e considerações, transmitidas a milhares de telespectadores, ficaram no ar, e nós não guardamos a pretensão de a elas responder. Se estivéssemos aí, envergando ao seu lado o macacão de carne, talvez lhe adotássemos o ponto de vista sem qualquer discrepância. Por isso mesmo, acatando-lhe a visão provisória, desejamos apenas dizer-lhe que não faltam artistas aqui, dispostos a enfrentar, com mais amplitude e profundeza, a pauta e o pincel, no sentido de colaborarem na sublimação da arte terrestre; no entanto, escasseiam no mundo companheiros que lhes abracem o ideal de beleza e renúncia, aceitando a necessária disciplina para a consecução das obras que pretenderiam concretizar, embora já existam, no Brasil e no seio de outros povos, médiuns do som e da cor, edificando notáveis realizações que você desconhece.

Movimente-se, afaste-se um tanto da sua galeria de censor e procure-os. Encontrá-los-á, fazendo o melhor que podem, sob a orientação de grandes inteligências desencarnadas que, naturalmente, apenas lhes confiam aquilo que são capazes de receber.

Quanto a nós outros, os que ainda escrevemos para resgatar os nossos pecados, perdoe-nos as páginas, agora despidas de qualquer presunção acadêmica.

Creia que, atualmente, não fazemos simples literatura.

Mereceríamos e inferno se ainda aqui estivéssemos na condição de beletristas interessados na fama que os vermes aniquilaram.

Achamo-nos em abençoada construção do espírito, utilizando os talentos da palavra, como o artífice que se vale dos méritos do tijolo para erguer o edifício humano. Intentamos, com isso, não apenas retificar nossas faltas, mas igualmente contribuir na edificação da justiça e do amor, da solidariedade e do bem, da responsabilidade e do entendimento entre as criaturas, para que a Terra de amanhã seja menos conturbada que a Terra de hoje. Buscamos simplesmente informar a vocês que a morte não existe e que o túmulo é uma espécie de cabina fotográfica, revelando o verdadeiro retrato de nossa consciência, a fim de que se habilitem, nos padrões de Jesus, a suportar as requisições do tempo…

Para a execução desse tentame, não dispomos de outro recurso senão escrever. E olhe que escrever não é tão indigno assim.

Você, com o seu respeitável título de católico-romano, não poderá esquecer-se de que a primeira dádiva direta do Céu aos homens, segundo a Bíblia, foi o Livro dos Dez Mandamentos, de que Moisés se fez o guarda irredutível. E se um vaso sagrado da Terra guarda a luz do Cristo para as nações, é forçoso convir que esse vaso é ainda o livro, arquivando-lhe a palavra de amor e luz.

Desse modo, com todo o nosso respeito aos pintores e musicistas, desencarnados ou não, rogo-lhe não considere com tanto desdém os seus irmãos de letras. Esteja certo de que, em futuro talvez próximo, você estará pessoalmente em nossa companhia e sentirá uma vontade louca de apagar os seus erros escritos.

E que você encontre uma criatura consciente e caridosa que o ajude mediunicamente, na piedosa empresa, são nossos votos sinceros, porque, sem dúvida alguma, ao nosso porto de surpresa e refazimento o barco de sua vida, hoje ou amanhã, chegará também.


(.Humberto de Campos)