A velha ortodoxia estabelece teoricamente uma divisa fundamental entre o Espírito e a matéria, criando, desta maneira, duas esferas distintas, uma denominada material, outra espiritual.
Semelhante divórcio, porém, em realidade não existe.
Matéria e Espírito são inseparáveis, evolvendo ambos consoante a lei iniludível que preside à infinita criação.
Geralmente, sempre que o indivíduo claudica na senda da moral ou do dever, costuma-se atribuir o fato às fraquezas da carne, quando, em verdade, o único responsável é o Espírito. Assim como a arma empregada para perpetrar o homicídio não responde por aquele delito, assim também a matéria nada tem que ver com as erronias, as faltas e as iniquidades que praticamos, visto como ao Espírito compete dirigi-la, submetendo os seus arrastamentos ao controle da razão e da consciência. Quando um barco bate de encontro aos recifes e soçobra, a culpa não cabe ao leme, mas àquele que o manobra, porquanto é da obrigação do timoneiro conhecer a rota por onde navega. Se se verifica uma colisão entre duas embarcações envoltas em cerração espessa, a responsabilidade não é do nevoeiro, mas dos respectivos capitães dos navios, que não providenciaram as medidas adequadas para esses transes, a fim de evitar o abalroamento.
Os homens têm por hábito procurar uma escapatória para inocentarem-se, fazendo, por isso, da carne, o bode expiatório das suas culpas. Daí o malsinar-se a matéria, considerando-a nossa inimiga, quando, de fato, é o instrumento precioso através do qual a psique realiza a sua ascensão.
O que cumpre fazer é espiritualizar a matéria, em vez de materializar o Espírito como, em geral, fazemos. Todos os atos, mesmo aqueles que nos parecem mais materiais, devem ser executados com certo cunho de espiritualidade. O comer, por exemplo, que se nos afigura essencialmente material, é preciso que se faça com inteligência e discernimento, o que vale dizer, com direção e orientação espirituais.
O pão que nutre o corpo é tão sagrado como o símbolo da eucaristia. Importa que ambos sejam encarados com santidade e gratidão. A transubstanciação do pão celeste, que é a palavra de Deus, em força espiritual que regenera e redime, é tão digna de admiração e respeito como a transubstanciação do alimento em sangue, base da vida corpórea. Há em ambas as metamorfoses um prodígio operado à revelia do homem, e a que podemos chamar — milagre.
E assim sucede com tudo o mais que se relaciona com a ação do elemento material. Espiritualizemos, pois, os nossos atos, tanto aqueles que reputamos espirituais quanto os que classificamos como materiais, certos de que todos os problemas que nos afetam no presente, como os que nos atingirem no futuro, só poderão ser solucionados pelo Espírito, visto não existirem problemas materiais.
ESPIRITUALIDADE A carestia, o pauperismo, as doenças, o crime, o vício e outros flagelos são contingências da vida humana criadas e mantidas pelos homens, as quais só desaparecerão mediante a espiritualização dos costumes, hábitos e leis vigentes no cenário terreno. Quaisquer outras medidas que se empreguem para conjurar aquelas anomalias serão meros paliativos, jamais as resolverão.
O grande iluminado de Damasco, em sua Epístola aos Romanos (12:1 e 2), exorta aquele grupo de crentes, em tom de súplica veemente, nos seguintes termos: "Rogo-vos, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus, pois em tal importa o culto racional; e não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que proveis qual é a boa e perfeita vontade de Deus".
Como vemos, Paulo sintetiza admiravelmente, nesse trecho supracitado, o verdadeiro sentido do culto divino, o qual se resume em espiritualizar nosso corpo de modo a transformá-lo em oblata viva. São, ainda, desse vexilário da fé estas sábias palavras: O templo de Deus, que sois vós, é santo.
Nosso corpo, portanto, não é coisa desprezível, mas, muito ao contrário, é templo de Deus, é hóstia que a Ele devemos ofertar, devidamente purificada. Infligir-lhe sevícias, encerrá-lo em celas, claustros e clausuras, privando-o da luz bendita do Sol, da liberdade e dos demais benefícios da Natureza, longe de agradar a Deus, constitui afronta às suas leis e atentado à sua ordem e à harmonia que Ele imprimiu ao curso da vida. Não será macerando a carne, mas fortalecendo o Espírito, que venceremos as tentações e as nossas tendências viciosas. É com chave verdadeira e não com gazua que abriremos as portas dos tabernáculos eternos.
Não profanemos a matéria, não enxovalhemos a vestidura carnal que envergamos; tratemos de espiritualizá-la, encetando, quanto antes, a obra de sua incorruptibilidade qual o fez o Divino Mestre, cujo corpo não viu corrupção, desaparecendo do sepulcro onde o inumaram.