A parábola acima é, dentre todas as imaginadas pelo Divino Mestre, a mais conhecida e que mais tem sido comentada. Realmente, trata-se de página tocante, que fala à nossa alma e nos sensibiliza o coração. É geralmente debaixo do aspecto sentimental que a parábola, ora em apreço, é vista e esplanada, tendo, mesmo, fornecido elemento a vasta literatura em torno do seu enredo. Mas não é somente sob tal prisma que devemos vê-la. Cumpre aprofundá-la, tirando de sua estrutura as grandes verdades que encerra.
No estudo, embora ligeiro, que vamos fazer desta edificante historieta, começaremos chamando a atenção para o título que lhe deram os tradutores e os exegetas das Escrituras:
"Parábola do filho pródigo". Seria mais acertado, a nosso ver, que a denominassem: Parábola do pródigo e do egoíst a — de vez que o seu entrecho gira, principalmente, em torno de duas personagens que encarnam aquelas duas expressões da imperfeição humana. Apenas três pessoas figuram neste conto evangélico: o pai e os dois filhos. No entanto, só se comenta o procedimento de um dos filhos, o mais moço, o pródigo, e nada se diz sobre o outro filho, o mais velho, o egoísta, o maior pecador. Vamos, pois, trazê-lo à baila, pois é protagonista importante cujo proceder deve ser devidamente estudado.
À simples leitura da parábola, percebemos que aquele pai é Deus. Seus dois filhos representam os homens; nós, os pecadores de todos os matizes. O mais moço, o pródigo, é a personificação daquele que se entrega desvairadamente aos prazeres sensuais, concentrando na gratificação dos sentidos todas as suas aspirações e ideias, consumindo em bastardos apetites as riquezas herdadas do divino progenitor. Empobrecido e arruinado, faminto e roto, espiritual e materialmente, acaba reconhecendo-se o único culpado de tamanha desventura, o único responsável pela crítica situação em que se vê. Arrependido, resolve buscar os penates relegados, voltando para junto do pai bom e amorável. Ali é recebido festivamente e reintegrado no seu lugar de filho e herdeiro de todos os bens e prerrogativas paternas.
A história desse moço desassisado é a da grande maioria dos homens. Verificamos no transcurso dos acontecimentos passados com ele a manifestação das leis naturais que regem o destino das almas na sua caminhada pela senda intérmina da vida, sob o influxo incoercível da evolução. Vemos que o destino é uno. O desfecho de toda odisseia dos pecadores, que passam pela Terra, é o retorno ao lar paterno. Todas as modalidades de pecado se acham contidas entre os extremismos representados pelos dois filhos — o pródigo e o egoísta. Não importa, portanto, qual seja a natureza das erronias cometidas ou dos delitos praticados; o final, o remate de toda a trajetória do Espírito através das suas encarnações e reencarnações, das provas e expiações por que venha a passar, é um só: a confissão da culpa, o arrependimento que daí decorre, e a consequente reabilitação pelo amor e pela dor! Ninguém se perde, não há pecados irremissíveis, não há culpa irreparável. O desígnio divino é um só e único. A porta da redenção jamais 3 se fecha, está sempre aberta para os pródigos e egoístas arrependidos, de todos os tempos.
Eis o que se deduz lógica e racionalmente da contextura desta parábola.
Outro ensinamento de relevância que da mesma ressalta é o que respeita à doutrina da causalidade, propagada pela Terceira Revelação. A redenção do pródigo deu-se mediante a influência dessa lei. Ele criou uma série de causas que determinaram uma série de efeitos análogos. Como as causas eram más, os efeitos foram dolorosos. Suportando-os, como era natural, e não como castigo ou pena imposta por agente estranho, o moço acabou compreendendo a insensatez que praticara, considerando-se, outrossim, o próprio causador dos sofrimentos e da humilhação que suportava. Tomou, então, espontaneamente, e não coagido por terceiros, a resolução de emendar-se; e assim o fez. A obra da salvação, portanto, é consumada pelo esforço individual tendente ao aperfeiçoamento moral. Independe do exterior, processa-se no íntimo das almas. E será só pela reforma voluntária do indivíduo que se alcançará a reforma dos hábitos maus e dos costumes viciosos que caracterizam a sociedade.
Deus é imutável. Seu atributo principal é o Amor;
Amor que é inteligência, vontade e sentimento. Na sua imutabilidade, Ele espera que o homem o procure, que reconheça seus erros, arrependa-se e se regenere. Deus é a chama divina da Vida. Quanto mais nos aproximamos dele, tanto mais nos sentiremos iluminados pela sua luz e fortalecidos pelo seu calor, o que vale dizer, que tanto mais intensificaremos a nossa própria vida! Afastarmo-nos de Deus é embrenharmo-nos nas trevas, é caminharmos para a morte. Por isso, ao celebrar o retorno do pródigo, disse o pai: "Este meu filho era morto e reviveu, tinha-se perdido e agora se achou". Ir para Deus é encontrarmos a nós próprios, descobrindo-nos em nossa vida imortal.
Ainda mais um raio de luz se esparze deste conto: é a relatividade do livre-arbítrio. O Espiritismo esclarece essa controvertida matéria, firmando o preceito de que o livre-arbítrio existe, pois, do contrário, seríamos uns autômatos, joguetes das circunstâncias que nos cercam, não nos cabendo, portanto, responsabilidade alguma pelos nossos atos, bons ou maus. Proscrevendo-se in totum o livre-arbítrio individual, não haveria ação imputável. O homem não passaria de um títere, de um fantoche, movendo-se ao sabor de cordéis estirados por influências mesológicas. Mas, ao considerarmos esse livre-arbítrio, cumpre assinalar a sua relatividade, o que é muito importante. O Espírito, quanto mais atrasado, menor soma de livre-arbítrio, naturalmente, pode desfrutar. À medida que vai progredindo e aperfeiçoando-se moral e intelectualmente — a sua esfera de ação livre dilata-se e amplia-se, até que adquire completa liberdade. Daí o dizer eloquente do sábio Mestre:
"Se permanecerdes nas minhas palavras sereis verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará".
(João
A ignorância, em seu sentido verdadeiro, significando não só a falta de cultivo da inteligência, mas também, e principalmente, do sentimento, constitui o cárcere do Espírito. Basta vermos a triste condição do analfabeto. É um emparedado que se debate entre as grades da prisão intelectual. Abre um livro e não pode interpretar os seus símbolos; vê os emplacamentos das ruas, a numeração dos edifícios, as tabuletas, os letreiros, mas não sabe traduzi-los. Tem olhos, porém não vê; tem inteligência e não se acha habilitado a servir-se dela, aplicando-a em seu benefício. É um cego, cujos passos estão restritos a um certo âmbito acanhado e estreito. Alfabetiza-se: eis então que um novo mundo se abre diante dele. Seu círculo de ação se alarga prodigiosamente. Independe já de outrem para realizar seus intentos; já pode orientar-se na solução dos problemas que o interessam. Se prossegue na obra cultural iniciada, aprende outros idiomas, lê em outras línguas, entrando em comunicação com indivíduos de nações e raças diversas, inteirando-se da vida e dos costumes de outros irmãos espalhados pela imensa área do globo terráqueo. A liberdade do Espírito mede-se, pois, pela soma de conhecimento e virtudes adquiridas. Assim como o pássaro não logra levantar voo senão com o concurso de ambas as asas, assim também o Espírito jamais se alcandorará às regiões da liberdade perfeita, senão mediante o concurso dos dois fatores evolutivos — o moral e o intelectual. A falta daquele inutiliza os proventos deste, dando lugar, apenas, a aleijões que se arrastam e se debatem sem conseguirem erguer-se acima do pó e da lama. É o que nos mostra claramente a parábola que é objeto das nossas cogitações, neste momento. O pródigo usou do seu relativo livre-arbítrio. Foi onde era possivel, dentro dos limites tragados pelo seu grau de evolução. Ele não estava só, entregue somente aos devaneios próprios da mocidade inexperiente e ousada. O olhar benevolente e vigilante do pai o acompanhava, aguardando o momento oportuno em que as reações dos seus atos impensados e atrabiliários se fizessem sentir. Deixou, por isso, que o filho procedesse como lhe aprouvesse, sempre, porém, dentro dos limites compatíveis com a sua idade e insipiência.
Aí está, portanto, outro princípio que faz parte do corpo doutrinário espírita, perfeitamente confirmado pelo Evangelho: a relatividade do livre-arbítrio. O homem é uma criança, espiritualmente falando. Não pode fazer o que quer, não pode perder-se irremediavelmente, ainda que em sua ignorância, fraqueza e insânia o quisesse. Deus procede com ele como nós, os pais terrenos, procedemos com os nossos filhos. Em matéria de liberdade, concedemo-la paulatinamente, dosando-a de acordo com o desenvolvimento que vão adquirindo, até se emanciparem. Jamais se viu o pai ou a mãe abandonar os filhos menores, deixando-os entregues aos perigos que lhes poderiam ser fatais. Os filhos são vigiados cautelosamente até que se possam conduzir por si mesmos. O livre-arbítrio, por conseguinte, existe, porém restrito às condições personalíssimas de cada indivíduo. O pródigo foi até à pobreza extrema, até à miséria material e moral; mas não pereceu, não se precipitou no abismo de eterna e irremediável perdição, visto como, de longe, o acompanhava a solicitude paternal daquele que lhe dera o "ser" e lhe traçara o destino. Assim sucede com o homem. Pode chafurdar-se na lama dos vícios, precipitar-se no tremedal do crime, cometer aventuras e insânias de toda espécie; chegará, fatalmente, para ele, aquele dia de cair em si, conforme diz a parábola. Desse despertar de consciência própria resulta o retorno à casa e aos braços amoráveis do Pai celestial.
Recapitulando o exposto, vamos consignar os postulados espíritas abaixo descritos, confirmados, todos positivamente, neste enredo parabólico.
1 — Imutabilidade de Deus — princípio sustentado, não teoricamente apenas, mas de modo positivo, condizente com os fatos e testemunhos da vida humana.
2 — Unidade do destino, isto é, a redenção completa pelo amor e pela dor, abrangendo todos os pecadores.
3 — A lei da causalidade, ou seja, de ação e reação, causas e efeitos, determinando, em dado tempo, o despertar das consciências adormecidas.
4 — A relatividade do livre-arbítrio, o qual não pode ser absoluto, a ponto de ser dado ao homem alterar os desígnios de Deus.
5 — Finalmente, a evolução individual dos seres racionais e conscientes, de cujo número o homem faz parte, processada no recesso íntimo das almas, livre e espontaneamente, como lei natural e irrevogável.
O pródigo faz jus à nossa simpatia, porque é um pecador confesso. Errou, sofreu as consequências do seu erro, reconheceu-se culpado, implorou e obteve a misericórdia divina. Pela sinceridade do seu gesto e pela humildade da sua atitude, ele atrai a nossa indulgência e, mais do que isso, conquista o nosso coração. E como não há de ser assim, se nós nos vemos nele, como num espelho, refletindo o que somos e indicando-nos o caminho a seguir, o exemplo a imitar?
O delito do pródigo é incontestavelmente menos grave do que o de seu irmão, apesar de ter esbanjado dissolutamente a herança paterna. A sua culpa indica fraqueza, não revela desamor nem maldade. Fez mal, não há dúvida, porém, a si próprio. Não envolveu a ruína de terceiros em suas aventuras, não ocasionou dor física ou moral a seu semelhante, não ofendeu o seu próximo. Foi insensato, leviano, boêmio, perdulário, prejudicando-se, como já dissemos, a si mesmo. E o egoísta, com sua aparente santidade, jactando-se de jamais haver infringido as ordens e os preconceitos paternos? Na sua impiedade, manifesta e ostensiva, esquivando-se indignado a tomar parte no banquete promovido pelo pai em regozijo ao regresso do seu irmão, ele mostra toda a aridez e secura da sua alma. O pródigo, a despeito de todas as insânias que cometeu, não atendeu tão gravemente contra a lei como ele, não feriu os sentimentos paternos de modo tão desalmado e cruel. Esta personagem é a encarnação viva do egoísmo, pretendendo, como pretendeu, monopolizar a herança e o convívio paterno. Que importa que ele não houvesse dilapidado o seu pecúlio, uma vez que se revelou mesquinho e desamorável, estomagando-se com o retorno de seu irmão e com a maneira afetuosa com que o pai o recebera? Que outra prova maior de impiedade podia ter demonstrado? Onde a sua decantada santidade, onde o seu presumido puritanismo? Estará, acaso, nas virtudes negativas que tão enfaticamente proclamara? Não é com virtudes negativas que se cumpre a lei e se conquistam os tabernáculos eternos. O homem pode cultivá-las, sendo, contudo, infrator do código divino, como no caso presente. Virtude negativa quer dizer abstenção do mal. Mas o homem pode abster-se do mal somente visando ao proveito próprio, ao seu bem-estar, ao conceito e à fama. Que prova semelhante atitude senão requintado egoísmo? Não procede mal para não comprometer-se, para zelar da sua integridade imoral.
Sim, empregamos o prefixo propositalmente, da sua integridade imoral, porque, em realidade, tal indivíduo não passa dum "bom aparente", dum santo de fancaria, uma vez que é incapaz de atos altruístas e generosos em prol dos seus semelhantes. Não arrisca um fio de cabelo na defesa dum inocente ou duma causa justa; não dedica um momento de seu tempo em favor de quem quer que seja.
Ainda mais: entristece-se com a felicidade alheia, revoltase com a alegria do próximo. Refestelando-se no céu, conforma-se com a perdição eterna de seu irmão! Tal o grande pecador, tal a imagem do fariseu que, orando no templo, assim se pronunciava: Graças te dou, meu Deus, porque não sou como aquele publicano. Não sou ladrão, pago o dízimo e jejuo regularmente. O publicano, porém, orava deste modo: Meu Deus, tem piedade de mim, miserável pecador. Em verdade — ensina o Divino Mestre — este voltou para sua casa justificado, e não aquele.
O ensinamento, portanto, mais importante desta alegoria está resumido no seu último tópico, quando o egoísta, extravasando zelos e ciúmes, se queixou ao pai, dizendo;
"Mandaste matar o novilho cevado em sinal de regozijo pelo retorno desse teu filho que dissipou teus bens com as meretrizes, enquanto a mim, que tanto te sirvo, nunca me deste um cabrito para regozijar-me com meus amigos". O pai, então, retruca: "Filho, tu sempre estiveste comigo, e tudo que é meu é teu; entretanto, cumpria regozijarmo-nos, porque este teu irmão era morto e reviveu, estava perdido e agora foi encontrado". A lição áurea está sintetizada num simples possessivo: teu irmão. O adjetivo — teu — é, no caso, tudo quanto há de mais significativo. O egoísta via, no pródigo, apenas o filho dissoluto de seu pai; e este lhe mostrou, naquele, o seu irmão! Que importam seus erros, seus devaneios? Ele é teu irmão!
Apliquemos na vida este preceito. Saibamos ver nos que pecam, nos que cometem qualquer espécie de culpa ou crime, um nosso irmão. Lembremo-nos de que o dia de sua redenção será festivo nos céus. Alegremo-nos com Deus, contribuindo para a obra da redenção humana, expurgando o nosso coração de todo pensamento de exclusivismo, de toda ideia sectarista, dos zelos e dos ciúmes. A casa do Pai celestial é bastante ampla para agasalhar todos os seus filhos. Regozijemo-nos e nos confraternizemos, todos, no alegre banquete do Amor, olhos fixos na sublime legenda: Fora da caridade não há salvação!