Em três ocasiões, o espírito de serviu-se do abençoado lápis mediúnico de Chico Xavier, para continuar ilustrando a literatura brasileira com seu pensamento prodigioso.
Em uma delas, exaltando o solo pátrio, como sempre fez em vida, com seu português castiço, irrepreensível na ortografia e altamente criativo, ele transmite a “” que Chico, excelente canal mediúnico, capta com perfeição. Em outra, constante do livro O Espírito da Verdade, Ruy brinda-nos com “”. Nela, ressalta-se não só a importância do conteúdo das mensagens, mas o fator distintivo entre médium e espírito.
Ruy, em vida, preparadíssimo em seus estudos, poliglota e dono de vastíssima cultura, enquanto que o médium mineiro, sem oportunidade de estudar em sua presente encarnação, mal concluiu o curso primário.
A oração de Ruy Barbosa encontra-se no livro “”, editada pela Federação Espírita Brasileira. Antes, porém, ele já havia se utilizado da mediunidade de Chico Xavier para trazer sua opinião sobre a Constituição de 1934, como veremos adiante.
Ruy Barbosa nasceu em Salvador, Bahia, em 5 de novembro de 1849, filho de João Barbosa de Oliveira, médico e político, e de Maria Adélia Barbosa de Oliveira.
Em 1861, ingressa no Ginásio Baiano, em que, em 1865, pronuncia aplaudido discurso na cerimônia de encerramento das aulas. Com 16 anos matricula-se na Faculdade de Direito de Recife, e, em 1 868, transfere-se para a Faculdade de Direito de São Paulo, onde estreia na imprensa e ingressa na Sociedade Literária e Política “Ateneu Paulistano”, na qual assumirá a presidência no ano seguinte.
Aos 20 anos propõe e participa da criação do Jornal Radical Paulistano, em que publica seu primeiro artigo abolicionista. “A emancipação progride.” Assim inicia sua vida pública sempre privilegiando a luta pelos princípios da justiça, da liberdade, da cidadania e da legalidade.
Em 1º de julho de 1869 é iniciado na Loja América de São Paulo que, na época, pertencia ao Grande Oriente dos Beneditinos, de Saldanha Marinho, dissidência do Grande Oriente do Brasil. A 4 de abril de 1870, ele apresenta à Loja um projeto abolicionista propondo educação popular e libertação de crianças do sexo feminino nascidas de escravos pertencentes a maçons.
Diplomado bacharel em Direito em 1870, ele regressa à Bahia, onde inicia a carreira de advogado no escritório do Conselheiro Dantas e de Pedro Leão Veloso em 1872. Também passa a colaborar no Diário da Bahia, no qual assume o cargo de redator-chefe.
Consorcia-se com Maria Augusta Viana Bandeira em 1876, elege-se deputado provincial na Bahia e, no fim do ano, deputado-geral para a Câmara do Império, transferindo-se para o Rio de Janeiro.
Digno registro em 1880 é sua redação ao projeto de reforma conhecida como “Lei Saraiva”, que substitui o sistema então vigente de eleições indiretas pelo voto direto.
O eminente confrade Freitas Nobre, também Deputado Federal, teve a oportunidade de pesquisar e manusear inúmeros documentos retratando ora debates, ora defesas de uma mesma tese de Ruy Barbosa e Bezerra de Menezes, o grande ícone do movimento espírita brasileiro, contemporâneo naquela Casa Legislativa. As brilhantes pesquisas de Freitas Nobre sobre a atuação de Bezerra na Câmara Federal foram reunidas no volume Perfis Parlamentares — Bezerra de Menezes, que infelizmente não circula no meio espírita, mas que retrata a faceta política da biografia de Bezerra. Na sessão de 1° de outubro de 1879, defrontaram-se em ideias durante debate sobre a Secularização dos Cemitérios e a Liberdade Religiosa. Eis um trecho do debate para aguçar nossa curiosidade e para remeter nosso pensamento a gloriosos tempos em que, entre os representantes do povo, podia se contar com homens da estirpe de Ruy Barbosa, de Bezerra de Menezes, de Saldanha Marinho, de Joaquim Nabuco, de Bittencourt Sampaio, de Afonso Celso, de Joaquim Manoel de Macedo e outros. Note-se que Bezerra ainda não tinha se convertido ao Espiritismo.
“(…)
O Sr. Ruy Barbosa — O nobre deputado é que prega a indiferença da religião.
O Sr. Bezerra de Menezes — Protesto, eu estou falando acidentalmente da influência da religião sobre a constituição e sobre a marcha das sociedades, e não estou discutindo religião.
Não quero pregar o indiferentismo quando o combato francamente e quando tenho a coragem de declarar que sou católico apostólico romano.
O Sr. Monte — É preciso mesmo ter coragem para fazer esta declaração.
O Sr. Bezerra de Menezes — Eu a tenho.
O Sr. Ruy Barbosa — Mas não há perseguição contra a Igreja Católica.
O Sr. Bezerra de Menezes — Vimos ainda há pouco o modo como a Câmara riu à custa de um deputado por ter falado em religião; e o nobre deputado sabe que a perseguição pelo ridículo é a que mais se teme.
Se, antes da cruz, Sr. Presidente, nos tempos mesmo pré-históricos, já se tinha estabelecido, era opinião dos sábios que sem religião não é possível sociedade, depois da cruz, nenhum espírito cultivado pensará diversamente.
O Sr. Ruy Barbosa — Muitos pensam de modo contrário e são espíritos cultivados.
O Sr. Bezerra de Menezes Da filosofia cristã é que nasceu a civilização do século que se preza em ser denominado século das luzes; e esse fato é quanto basta para confirmar a minha asserção impugnada pelo nobre deputado e para informar a opinião que incompatibiliza a liberdade com a religião.
(…).”
Se a Abolição da Escravatura foi uma das primeiras causas a mobilizar o grande jurista e estadista brasileiro, acabou também se tomando uma das mais polêmicas de sua biografia.
Ruy foi acusado de mandar destruir os documentos então existentes sobre a escravidão, logo após a Proclamação da República, em 1889, quando foi nomeado Vice-chefe do Governo Provisório e Ministro da Fazenda, tendo por motivação impedir processos de indenização dos ex-senhores de escravos.
Anos antes, em 1882, Ruy Barbosa havia sido o autor do Projeto de Lei sobre a emancipação progressiva dos escravos, conhecido como “Projeto Dantas”, tendo sido rejeitado por conceder liberdade aos sexagenários sem indenizar os senhores de escravos, um procedimento que talvez explique sua atitude posterior.
Sua primeira ação efetiva em prol do ensino deu-se em 1882 com o parecer e projeto de reforma do ensino secundário e do superior e, ainda nesse ano, do ensino primário, revelando-se precursor da obrigatoriedade da educação física e musical, assim como do ensino do desenho e trabalhos manuais. Foram palavras de seu discurso: A nosso ver, a chave misteriosa das desgraças que nos afligem é esta e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria.
Em 1884, recebe de D. Pedro II o título de Conselheiro; em 1890, redige o texto definitivo da Constituição Republicana e, no ano seguinte, do Governo Provisório. Sua oposição ao presidente Floriano Peixoto leva-o ao exílio na 1nglaterra, em 1893, e, na Europa, é o pioneiro na defesa do capitão Dreyfus, vítima de erro judiciário.
Dois anos depois volta ao Brasil, sem nunca ter abandonado suas colaborações na imprensa, sua principal trincheira nas lutas que travava em prol de um Brasil melhor. Atento às questões de seu tempo, Ruy Barbosa empenhou-se sempre em ampliar a visão que o Brasil tinha de si mesmo, razão maior de suas lutas.
Em 1897, ingressou na Academia Brasileira de Letras como membro fundador, em que mais tarde substituiu Machado de Assis na Presidência.
O ano 1907 marca o ápice de sua carreira pública, quando é nomeado embaixador extraordinário e plenipotenciário para a Conferência da Paz em Haia, Holanda, a maior assembleia diplomática internacional até então realizada, e na qual ganhou merecidamente o título de “Águia de Haia” por seu histórico discurso. Recordando-se desse dia, ele mesmo se confessou tomado de uma estranha força exterior: As forças, a coragem, a resolução me vieram não sei de onde. Vi-me de pé, com a palavra nos lábios. Caro Ruy, se conhecesses à época o fenômeno mediúnico…
Mais tarde, em 1921, no célebre discurso de Ruy lido por Reynaldo Porchat, em razão da doença do patrono da turma daquele ano da Faculdade de Direito de São Paulo, e que é conhecido como Oração aos Moços, foi o mais claro ao admitir o diálogo entre os dois mundos — o corpóreo e o incorpóreo, tendo afirmado: A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber, é a da morte; e nem esta separa entre si os que a terrível afastadora de homens arrebatou aos braços uns dos outros. Quantas vezes não entrevemos nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? (…) Quantas outras, não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo, e com eles renovar a prática interrompida, ou instar com eles por um alvitre, em vão buscado, uma palavra, um movimento do rosto, um gesto, uma réstia de luz, um traço do que por lá se sabe, e aqui se ignora? Quem pode negar que neste texto Ruy não faz uma apologia da vida pós-morte e da presença dos 1nvisíveis junto de nós?
Em 1º de outubro de 1908, Ruy saúda Machado de Assis quando o corpo deste partia para o sepulcro, saindo da sede da Academia Brasileira de Letras, que fundara: Mestre e companheiro, disse eu que nós íamos nos despedir. Mas disse mal. A morte não extingue, transforma; não aniquila, renova; não divorcia, aproxima.
Em 1909, candidata-se à Presidência da República em oposição ao Marechal Hermes da Fonseca, iniciando a campanha civilista, sendo a primeira vez que uma campanha política ganhou as ruas e os eleitores participaram dos comícios.
Candidata-se novamente à Presidência em 1919, divulgando plataforma com avançado plano de reformas para o país em que se destaca a questão social, mas é derrotado por Epitácio Pessoa.
Em 1923, Ruy Barbosa desencarna no Rio de Janeiro e é enterrado com honras de Chefe de Estado.
A obra Os Simples e os Sábios, de Pedro Granja, traz uma relação de livros de Espiritismo e Metapsíquica constantes da Biblioteca de Ruy Barbosa, devidamente lidos, anotados e marcados a traços vermelhos, provando que o jurista interessou-se por conhecer o Espiritismo e as pesquisas científicas realizadas em torno dele. Vamos conhecê-la:
1°) Sir William Crookes, da Real Sociedade de Londres — Les Nouvelles Expériences sur la Force Psysique, tendo por subtítulo: “Recherches Sur les Phénomenes du Spiritualisme”, cujo fichário registra duas edições G-10 — 178, nº 1 (sem data) e B — 10. 3. 29 (de 1897).
2°) Professor Sir Oliver Lodge, catedrático de Física da Universidade de Liverpool:
— “Raymond or Life and death” (B-2.25,
17) — “Survival of man” (B-2, 4, 23)
— “The proofs of Life After Death” (I-8 4, 27)
— “La Vie et la Matiére” — tradução J. Maxwell (I-5, 2,
6)
3°) Professor Alexandre Aksakoff, catedrático da Universidade de São Petesburgo — “Animisme et Spiritisme”, tradução de Berchold Sandow (B-2, 3, 21).
4°) Professor Ernesto Bozzano, catedrático da Universidade de Turim; “Les Phénomènes de Hantises”, tradução de César de Vesme. (E-10, h 42).
5°) Professor Frederico Myers, catedrático da Universidade de Cambridge — “Les Hallucinations Télepatiques” (B-2, 3, 20).
6”) Sir Arthur Conan Doyle — “The New Revelation” (L-9, 3, 31 ).
7°) Léon Denis — “Le Probléme de l’Etre, du Destiné et de la Douleur” (B-7, 2).
8°) Sir Alfred Russel Wallace, Presidente da Sociedade Inglesa de Antropologia: “La Place de l’Homme dans l’Universe”.
9°) Camille Flammarion, astrônomo francês:
— “Dieu dans la Nature”;
— “L’Homme et les Problèmes Psychiques”; — “La Mort e Son Mystère”;
— “Recits de l’Infinit”; — “Uranie”;
— “Autour de la Mort” (I-4, 1, 25)
Assinalados por Ruy, com tinta vermelha, os seguintes trechos de “Autour de la Mort” (I-4, l, 25):
“Toute ces faits sont constatés aujoud’hui avec certitude irrecusable.”
(Capítulo — “Les Doubles de Vivants”, p.
41) R. mais além na p.55 quando fala Madame Milman, a respeito das bilocações:
“Je suis affligé d’une autre moi même qu’en recôntre où je ne suis pás.”
10°) Professor Charles Richet, catedrático da Universidade de Paris “Traité de Métapsychique” — edição de 1922 (G-1, f, 16).
Vamos encontrar suas pegadas até a página 401 e nas conclusões, páginas 757 a 793. Tendo falecido a 1° de março de 1923, podemos deduzir que o livro de Charles Richet foi um dos últimos que Ruy Barbosa apreciou a leitura.
Durante a Conferência de Haia. Ruy Barbosa conheceu o emérito jornalista inglês William Stead (1849-1912), falecido no naufrágio do Titanic, quando cobria jornalisticamente sua viagem inaugural.
Stead, considerado “O Rei dos Jornalistas”, era médium e deixou um livro psicografado: “Cartas de Júlia”.
Em 1895, respondendo ao jornal Morning Adversitiser; de Nova York, declarou: Só o eterno pode afirmar ou negar a imortalidade. Se vos compreendo bem, não se trata aqui da imortalidade da alma, mas sim da persistência da entidade que se manifestava durante a sua vida terrena. Ai está uma questão muito mais simples, a que posso responder sem hesitar e sem receio.
Eu não seria verdadeiro, se dissesse que creio na persistência do individuo, após a morte, por ter observado fenômenos espíritas; muito tempo antes eu aceitava esse fato. Submeti, depois, a minha crença à prova de uma demonstração experimental. E se outrora dizia: “Eu creio”, hoje digo, “Eu sei”. Não há grande diferença?
***
Provando que a morte não separa aqueles que têm laços afetivos, William Stead manifesta-se, em sessão mediúnica, dirigindo-se a Ruy Barbosa.
Do Professor Ataliba Nogueira, na brilhante conferência intitulada “Ruy Barbosa em Campinas” publicada no Jornal do Commercio, de 8 de novembro de 1949, extraímos o fato:
Ainda na aprazível estância hidromineral, ocorreu fato curioso recordado pelos íntimos com acento de graça. Estava em voga, àquele tempo, uma espécie de distração, à noite, de modo algum consoante com as leis religiosas, porém que as Senhoras praticavam como se fosse inocente jogo de damas.
Consistia em colocar uma mesinha de três pés num grande círculo de papelão com as letras do alfabeto escritas uma a uma em recorte dentado.
Lalá, Úrsula, Carlota, Baby, Ruy Barbosa e a filha de um redator do Jornal do Comércio do Rio sentaram-se em redor da mesa e colocaram a ponta dos dedos sobre um cálice que, por ação misteriosa-segundo diziam-passava ante esta e aquela letra. Alguém ia anotando as letras em um papel. Formavam-se, assim, palavras e frases, avidamente lidas pelos circunstantes.
Resta lembrar que tudo corresponde às perguntas formuladas por alguma das moças presentes, quase todas versando sobre qual delas se casaria primeiro, as iniciais do noivo, seus traços fisionômicos, se era louro ou moreno, se era solteiro ou viúvo, fazendeiro ou não. No geral, as respostas provocavam mais risos, gargalhadas e comentários alegres.
Certa noite, porém, Batista Pereira, que assistia a “sessão” de pé, disse que o cálice estava denotando alguma inquietação, manifestando com isto ter de revelar algum segredo. Sentou-se à mesa e também colocou a ponta do dedo sobre o cálice de cristal, o qual, de maneira rápida, começou a percorrer o alfabeto com algo de nervosismo por parte das moças e senhoras que participaram da operação. Ao lado, outra moça apontava letra por letra, dizendo nada entender, porém, várias vezes havia o nome de Ruy no apanhado gráfico.
O Conselheiro já se havia recolhido muito cedo, feito a leitura dos jornais de São Paulo, que chegavam após o jantar.
Terminado o escrito, verificou-se que era uma mensagem em inglês, dirigida por algum “espírito” ao ilustre hóspede. Ficaram todos estarrecidos e, diante da indecisão geral, Batista Pereira opinou que deveriam levá-la incontinenti a Ruy.
Batem à porta, o Conselheiro de pijama recebe o papel e fica emocionado: É o estilo dele, o estilo perfeito! E o assunto. O mesmo que conversamos em nossa despedida em Haia. Mas, é possível… Trata-se de William Stead — explica Ruy — o meu amigo e grande jornalista inglês, cuja morte os periódicos noticiam, hoje, no afundamento do navio Titanic. E ele acreditava nestas histórias de Espiritismo!
William Stead perdeu seu corpo no naufrágio, mas no seu Espírito não deixou o cacoete de repórter. Ele volta do Além através do conduto abençoado da mediunidade para descrever os últimos momentos vividos dentro do Titanic:
“O navio, cujo tombadilho estava adernando como o telhado duma casa, submergia. Um só lamento escapava-se de mil bocas, quando a água nos tragou. Enorme era a massa de homens, mulheres e crianças que se debatia nas águas geladas. Subitamente o rosto de uma criança passou a pequena distância de mim. Tentei agarrá-la, porém, em vão, e mesmo se eu conseguisse segurá-la, a salvação seria impossível. Ouvimos desesperadamente gritos de socorro, orações e gemidos dolorosos. Senti frio e meus pés estavam entorpecidos. A água salgada entrava-me pelos olhos, ouvidos e garganta. Houve então uma desagradável sensação de asfixia e afundei… Toda a história de minha vida atravessou minha mente em figuras vívidas. Porém, de novo surgi livre, com enorme sensação de paz e bem-estar. Doces acordes musicais soavam nos meus ouvidos e eu vislumbrava cenários encantadores. Parecia-me repousar em um leito verde e macio, entre rosas e lírios. Desejei dormir. Fechei os olhos e caí em doce esquecimento.
“Despertei como se saísse de um sono com forças renovadas. Junto a mim vi um rosto afetuoso e reconheci minha amiga espiritual, Julia Ames, com quem eu estivera em longas comunicações mediúnicas, quando eu estava sobre a Terra, e com ela estava meu filho mais velho, cuja morte, para mim, fora um golpe tão rude.
“Graças a meus longos estudos de fenomenologia espírita, eu estava em melhor situação do que a maioria dos náufragos que morreram ignorando, pois, sem demora, inteirei-me da mudança. Eu estava bem preparado para a nova vida, pois nela eu ingressava com conhecimentos valiosos. Não posso transmitir aos amigos uma descrição exata do meu estado de recém-nascido.
“Supondo que estais continuando a existir nesse Universo, dotados de sentidos capazes de perceber o pano de existência mais rarefeito e invisível; o plano de quarta dimensão em que podemos ver através dos sólidos, lobrigar as auras que circundam homens e flores; um mundo em que podemos ouvir sons além dos limites de ouvidos humanos, como os murmúrios musicais das gramíneas, onde percebemos as cores infra e supra do espectro. Imaginai isto e tereis uma pálida noção do meu estado quando despertei do sono transformador, a que os homens costumam denominar morte.” (médium não citado)
Assim foi a passagem de W. T. Stead, cuja morte o mundo lamentou como uma perda irreparável. Alguns anos depois irrompeu a Grande Guerra e foi seu Espírito que organizou o formidável grupo de homens e mulheres que, pairando sobre os campos de batalha, iam encontrar os que morriam nos horrores da guerra.
Francisco Cândido Xavier, cujo mandato mediúnico de 75 anos, sem nenhuma mancha sequer, produziu quase 500 obras de valor cultural e espiritual incalculável, além de sua liderança ter inspirado centenas de obras assistenciais espalhadas pelo Brasil, teve sua mediunidade marcada por fases, segundo nossa avaliação.
Assim, vemos que nos primeiros anos de sua carreira mediúnica, os Espíritos aceitavam responder quase todo tipo de pergunta através do médium, inclusive sobre a situação política do país. Caracterizando bem essa fase, temos o livro “Palavras do Infinito”, o terceiro de Chico e que enfoca assuntos políticos, sociais e econômicos, e a série de reportagens publicadas pelo Jornal “O GLOBO” do Rio de Janeiro, que enviou o repórter Clementino de Alencar para passar um mês com o médium em sua cidade natal, Pedro Leopoldo. Além dessas duas publicações marcantes, Chico respondia a perguntas esparsas em entrevistas ou dava à publicidade algumas mensagens transmitidas pelos espíritos atentos à política nacional.
Não demorou muito, contudo, essa fase de Chico Xavier. Orientado por seus mentores espirituais, Chico passou a evitar essas abordagens para não prejudicar a essência de sua tarefa, que era a de trazer a lume obras complementares à Codificação Kardequiana.
Em 1932, o Brasil espantou-se quando aquele jovem caixeiro semianalfabeto, devidamente avalizado pela Federação Espírita Brasileira, publicou a obra “Parnaso d’Além-Túmulo”, com poesias psicografadas por consagrados poetas desencarnados nos seus mais puros e distintos estilos.
Em 1933, Fred Figner, dedicado colaborador da FEB, pediu a Chico que tentasse evocar o Espírito de Ruy Barbosa para que se manifestasse sobre a situação política do Brasil pois, certamente, patriota que era, deveria estar atento, do Plano Espiritual, aos acontecimentos nacionais.
No fim de 1929, o assassínio de um deputado da maioria por outro da minoria, no próprio recinto da Assembleia, dava início a uma série de violências que geraram outras em quase todo o país. Em outubro de 1930, estala a Revolução que vai ocasionar a tomada do poder por Getúlio Vargas e é dissolvido o Congresso. No começo, tudo era entusiasmo, e o povo apoiava o novo governo, mas logo irrompem novas insurreições, notadamente em São Paulo.
Em 15 de novembro de 1933, reuniram-se 250 deputados eleitos pelo povo e 50 pelas representações de classe, os quais deram início à elaboração de uma nova Constituição Republicana que seria promulgada em 16 de julho de 1934.
Antecedendo a esse período é que ocorre a manifestação de Ruy Barbosa pela mediunidade abençoada de Chico Xavier, ele que houvera redigido a anterior, em 1891, e revelou-se preocupado que não se perdessem as conquistas de liberdade, de cidadania e de justiça da anterior.
A mensagem do Espírito de Ruy Barbosa, conquanto histórica e importante, só havia sido publicada anteriormente na forma de um opúsculo pela FEB sem qualquer outra informação sobre o momento vivido pela nação, Ruy Barbosa ou Chico Xavier, que o fazemos aqui por acreditarmos ainda válido o conteúdo e o registro histórico. Pode-se dizer que o opúsculo “Ruy e a Nova Constituição” circulou entre pequeno público e somente nos anos de sua distribuição (1933 e 1934).
Desejando de alguma forma contribuir para a solução do problema constitucional, pedi ao médium Sr. Francisco C. Xavier, de Pedro Leopoldo, Minas, o transmissor dos versos do “Parnaso de Além-Túmulo”, que procurasse obter do Espírito de Ruy Barbosa a sua valiosa opinião sobre o momento político.
Eis a resposta que se dignou a dar:
Não fosse solicitado a falar sobre a situação política do Brasil, eu me consideraria infenso a quaisquer opiniões de ordem pessoal sobre a atualidade brasileira, não só reconhecendo os imprescritíveis direitos do arbítrio individual e coletivo como pela transcendência das circunstâncias em que o meu pensamento seria conhecido.
A morte, dilatando o prisma da nossa visão, traz-nos um certo desinteresse pela Plano terreno, fragmentário, minúsculo, em confronto com a universalidade de todas as coisas, homogênea em si, causa mater de toda a vida, fonte original de tudo que, manifestando-se através da maleabilidade da matéria e guardando, embora, a luz ignota das origens, apresenta o caráter de uma heterogeneidade fictícia e perfunctária. A grandiosidade inconcebível das parcelas do Todo e, como as partes são regidas pelas mesmas leis imutáveis que presidem ao conjunto, somos levados a uma relativa despersonalização, em beneficio da inevitável concepção universalista, que subsistem em nossa individualidade as ideias de egotismo prejudicial que não se justifica.
É inegável que o Brasil atravessa um dos períodos mais críticos da sua vida como nacionalidade. País novo, não se achava indene de contagiar-se do sopro das reformas em seus paroxismos, que agita as coletividades do velho Mundo, assoberbadas pelas dificuldades intestinas que lhes têm dizimado as energias revigoradoras. O erro da política brasileira, porém, está em não reconhecer a profunda diversidade dos métodos psicológicos a serem aplicados ao nosso povo e aos do mundo europeu. Ali a crise destruidora deve seus efeitos a causas múltiplas e indeclináveis; o estado semianárquico da vida do Brasil é oriundo da escassez de valores morais.
É inútil hodiernamente qualquer mudança nos processos governamentais e, em vésperas da nova Constituinte, torna-se oportuno recordar aos que se propõem outorgar outra Carta à Nação que, o menor atentado às liberdades públicas, sancionadas dentro das normas do mais estrito direito na Constituição de 1891, seria um erro perpetrado na mais irrefragável ilegalidade, perante as correntes evolucionistas mantenedoras da ordem e do progresso. Excetuando-se algumas inovações de caráter subsecivo, toda supressão das conquistas jurídicas, efetuadas no mais sadio dos liberalismos como expressão singular de civismo, estabelecendo as diretrizes superiores da nacionalidade, implica um retrocesso injustificável.
A adaptação, aqui, dos processos políticos praticados largamente na Europa moderna seriam de eficácia irrisória.
No Brasil, os problemas são outros.
Embora prematuro todo julgamento que se faz das últimas sublevações brasileiras, podem descobrir os seus fatores primaciais na política compreensiva, despótica e subornadora posta em prática nestes últimos anos; foram uma consequência lógica dos abusos da máquina eleitoral, a constituírem os maiores escândalos da República, vexatórios às suas doutrinas de liberdade e igualdade.
Quando me refiro à liberdade, é obvio que subordino à lei soberana da relatividade: todavia, a visão retrospectiva dos acontecimentos nos demonstrou que, se o ideal republicano de 1889, que inflamava a alma brasileira depois da vitoriosa campanha abolicionista, compelia o povo à justa compreensão dos seus direitos e deveres eliminando os preconceitos factícios da autocracia abominável do regime monárquico, os continuadores das ideias libertárias e progressivas não se mantiveram no nível dos seus compromissos e responsabilidades. Refratários à corrente purificadora dos pensamentos republicanos, criaram o falso conceito de facção política e, com um partidarismo, ominoso, fomentaram a oligarquia devastadora.
A Constituição de 1891 não falhou no Brasil; está de pé, como síntese admirável das vibrações do entusiasmo de um povo pelo direito incorrupto, imprescritível. Os seus homens públicos é que faltaram lamentavelmente aos seus magnos deveres de condutores, sobrepondo aos altos interesses do povo, o egoísmo da personalidade, incentivando abusos, criando ódios partidários, olvidando a justiça, coadjuvados por uma imprensa quase sempre mercenária, oportunista, levando o país ao caminho da franca falência moral, sem que se justifiquem tamanhos descalabros. Enquanto a política pessoal tem em medrar no Brasil a oligarquia, alguns Estados hão disputado egoisticamente a hegemonia da nacionalidade, a par de outros submersos na miséria e no analfabetismo; entretanto, os brasileiros não desconhecem seus deveres de coesão em torno da unificação nacional.
A bancarrota dos indivíduos teria de conduzir fatalmente a nação aos últimos acontecimentos. A fase atual é de transição e reclama insistentemente o valor intrínseco de cada um. O momento não é de parenética nociva, de verbosidade estéril, mas de atos concludentes sinceros.
Cogita-se de movimentos visceralmente renovadores. É necessário, contudo, uma profunda acuidade analítica na concepção dessas reformas que se fazem precisas, a fim de que não redundem em fórmulas desastrosas. Medidas têm sido tomadas e elaboradas que requerem indispensáveis restrições na sua aplicação, refreando-lhes a expansão abusiva e claudicante.
Nesse ambiente, porém, atordoador, caótico, o perigo iminente é a intromissão da corrente clerical na política situacionista tentando lesar o patrimônio da pátria no que ela tem de mais respeitável, a liberdade das consciências, lidima aquisição do direito inviolável.
A Igreja livre dentro do Estado livre, fórmula outorgada ao país pelos republicanos de 1891, conciliadora, compatível com a evolução da mentalidade moderna, não pode ser desrespeitada sem graves resultados para a vida coletiva do núcleo brasileiro.
Depois de verificada a eliminação do jugo papista, como necessidade internacional, cessadas as lutas fratricidas, filhas do fanatismo, cujo sangue ainda está quente na história dos países que oficializaram a religião, cerrar os olhos à sede megalomaníaca da pretensa infalibilidade romanista é ação criminosa, condenável.
Infelizmente, houve no Brasil incompreensão dos seus orientadores de 1889; não é licito, entretanto, que se lhes torça o pensamento superior sem reações perturbadoras e deploráveis.
Destruir a laicidade do Estado nos mínimos departamentos que lhe são afetos é uma deliberação atentatória de todas as conquistas liberais do povo brasileiro, que comina a revolta como efeito natural e incoercível. A submissão à máquina política de Roma, cujas manobras se revestem da mais refinada hipocrisia, é um escândalo inqualificável, indicador do retrocesso de toda uma nacionalidade, a buscar o passado obscuro, para colocá-lo no porvir, que pertence ao progresso por uma questão racional de justiça.
Que Deus inspire aos novos constituintes as noções de seus austeros deveres, a fim de que não sufoquem arbitrariamente as prerrogativas naturais do Direito, que jamais se posterga impunemente, outorgando à pátria um código perfeito, de acordo com as necessidades internas e com as exigências da civilização em seu justo sentido.
Calando-me aqui, por falta de imanência comprobatória das minhas palavras, desejo ao Brasil um período próspero de tranquilidade, anelando a paz coletiva para todos os seus filhos.
: Escritores e Fantasmas, Jorge Rizzini; Revista Ilustração Brasileira n° 1175, novembro de 1949; Os Simples e os Sábios, de Pedro Granja; A Maçonaria e o Movimento Republicano, José Castellani; Revista Internacional do Espiritismo, 01/06/1938; Enciclopédia Barsa volume 3; O Estado de São Paulo, 15/05/1999; Notícias de Ruy Barbosa, um Brasileiro Legal, Emporium Brasilis, Memória e Produção Cultural; Ilustração Brasileira, novembro de 1949, Editor Pedro Calmon.