Coisas Deste Mundo

Cornélio Pires: Interpretação



Cornélio Pires nasceu na cidade de Tietê, no Estado de São Paulo, em 13 de julho de 1884.

Desencarnou em Tietê, no dia 17 de fevereiro de 1958. Viveu, portanto, 74 anos.

Em 1901, aos 17 anos, mudou-se para São Paulo, onde, após uma tentativa infrutífera de participar de um vestibular para a Faculdade de Farmácia, resolveu dedicar-se à lide jornalística, onde experimentou dificuldades próprias aos iniciantes dessa carreira.

Foi nessa época que iniciou o decisivo capítulo de sua vida que o levou ao Espiritismo. Em “Coisas deste mundo”, editado em 1944, ele próprio narra o ocorrido em uma espécie de profissão de fé, a que denomina: “Porque me tornei espírita”:


“Não desejava cuidar de mim neste livro, mas tão constantes são as perguntas, por que me tornei espírita, que me resolvi a dar, neste capítulo, ligeira história de minha vida.

Caipirinha tímido, vim de Tietê para a Capital em começos de 1901. Vim morar em casa de minha tia, dona Belizaria Ribeiro, viúva do grande filólogo e polemista invicto, o gramático e romancista Júlio Ribeiro. Minha tia, que já havia criado uma ninhada de sobrinhos e parentes e não parentes, vestindo e dando livros a estudantes sem recursos, sempre achou maneira de tirar da sua pobreza de dona de pensão, o necessário para os necessitados.

Era protestante aquela santa criatura, que ficou conhecidíssima de diversas gerações de bacharéis em direito, engenheiros, professores e comerciários. Logo de início pôs-me o Evangelho nas mãos e mandou-me para a escola instalada nos fundos da Igreja Presbiteriana. Ali fui aluno daqueles belos e cultos espíritos que, na matéria, se chamaram Eduardo Carlos Pereira e Benedito Ferraz de Campos; homens que pregavam a letra do Evangelho e, com seus exemplos, o espírito vivificador.

Li os Evangelhos e, mesmo não lhes alcançando o espírito, fiquei encantado com os ensinamentos de Jesus. Quando ia a Tietê, falava a todos sobre a doutrina de Jesus e despertei o interesse de minha mãe e de minhas irmãs pelos Evangelhos.

Tais benefícios recebemos desse livro que, mesmo não crendo, ao irmos para o Espaço, para lá levamos a letra e mais fácil nos será alcançarmos o seu espírito, a sua luz; creio que, no Espaço, seremos esclarecidos com grande facilidade se já levarmos na bagagem os conhecimentos evangélicos.

Conhecedor dos Evangelhos, mais tarde, comecei a me entristecer. Cá, no meu íntimo, minha Razão não queria aceitar um Deus que criava filhos para depois dar preferência a uns, sacrificando a outros; um Deus que, sendo Amor e Piedade” criava entes fracos para depois dá-los ao Fogo Eterno. Comecei a me entristecer e grande risco corri de cair na descrença.

Comecei a encontrar contradições nos Evangelhos… Jesus dissera que “Não viera alterar a Lei”, mas confirmá-ta, no entanto a lei mandava: — “Olho por olho, dente por dente”, — e Jesus me dizia: “Perdoa aos teus inimigos”, — a lei mandava que morresse a pedradas aqueles que fossem apanhados em adultério e Jesus dizia a Madalena: “Aquele que não tiver pecado atire a primeira pedra”, — “Alguém te condenou?” — “Ninguém, Senhor!” — “Vai, não peques mais, pois eu também não te condeno”. Contradições… contradições…

Quando os ministros me perguntavam por que não fazia minha profissão de fé, eu lhes apresentava essas objeções, eles me respondiam com sua constritora, dogmática e sofisticada Teologia e maior era a minha confusão.

É que eu estava apegado à “letra” e nem sabia que os primeiros apóstolos eram analfabetos e que as seleções dos tópicos evangélicos haviam passado por traduções e retraduções e que deles apenas devia aproveitar “doutrina” e não as palavras.

Eu acreditava num Pai de todos nós,indiferentes, ateus, católicos-romanos, protestantes, muçulmanos, maometanos, budistas e dos indígenas e dos irracionais. Eu queria um Deus que aceitasse a prece de todos, buscando a um pai, Criador de todas as coisas.

Eu queria essa religião e não encontrava e me entristecia, desorientado, fugindo, como podia, à descrença. Fora encontrar meu maior tropeço Justamente nos Evangelhos!

Que coisa dolorosa! É que a “letra” estava me matando aos poucos e logo eu seria um dos “mortos que enterram seus mortos”.

Chegou, porém, o meu dia, — graças a Deus, — o mais feliz durante minha estadia na Terra!

Para chegar, porém, a esse dia passei por interessantes peripécias.

Indo a Caxambu, — era meu motorista o Sr. José Minholo, — lá estive uns dias e eguimos para Lambari; nesta cidade o motorista, batendo a mão na testa, disse-me:

— Seu Cornélio… esqueci a bolsinha de chave de stepenei, porta e contato, na garage onde guardamos o carro em Caxambu! Liguei o motor sem perceber, com a chave sobressalente. Como vai ser agora, se estoura um pneu?

— Não há outro recurso; voltemos a Caxambu. — Realmente voltamos e nada adiantou discutir com o dono da garage: as chaves haviam desaparecido. “Que fazer?” Escrevi à Casa Muniz & Cia., mandando-lhe o número do motor e pedindo as chaves para Poços de Caldas.

Que fosse o que quisesse.

Atravessando o sul de Minas, cheguei a Poços e lá não recebi as chaves. Massada! pedindo-as para São João da Boa Vista e, lá chegando, nada de chaves… Segui para Lindoia e Serra Negra. Andando sempre muito doente, constantemente atordoado, comprei uma caixa de “Eparseno” e fui tomar a primeira injeção. Eu e o farmacêutico ficamos impressionados: três agulhas entortadas! Não penetravam e não quis mais saber de histórias… Apesar de não ser supersticioso, disse logo ao boticário:

— Desisto! Aqui tem coisa…

Prosseguindo na minha vida de judeu-errante, dias depois estava em São Carlos, para onde pedira as célebres chaves, que lá não chegaram . Nessa cidade, eu, que não visitava ninguém, senti irresistível vontade de visitar o meu amigo Lobo. Palestrávamos quando chegou um pretinho, cozinheiro, o Alfredo, e que foi muito festejado e logo me dizia o Lobo:

— Este é um médium sonâmbulo formidável. Brinquei com meu amigo:

— Cuidado que o Juqueri está lotado… Mas assustado vi o Alfredo entrar em convulsões e logo o Espírito, depois de nos saudar, disse:

— Aqui, o meu amigo da esquerda, — indicando-me, fez muito bem em não tomar as injeções; aquilo é arsênico e o meu irmão tem o fígado em péssimo estado.

E receitou-me chá de uma planta medicinal e contra a dispepsia, pele de moela de frango reduzida a pó impalpável, dizendo-me que, vivendo eu em hotéis, fácil me seria conseguir moelas.

Fiquei impressionado com o caso, pois nem ao Lobo contara o caso das injeções.

Segui viagem e, depois de muitos ziguezagues, chegamos a Novo Horizonte, sempre temendo um estouro de pneu… Assim que chegamos, tomei de minha maquinazinha fotográfica. Deu-me na fantasia mandar o José “bater” uma chapa. Outra surpresa: feita a revelação e tirada a cópia, aparece-me sobre a cabeça, firmando os pés traseiros em minha testa, vendo-se-lhe as serrilhas das pernas, uma barata! Medida a proporção do seu comprimento, seria do tamanho de meu rosto…

— Aqui tem coisa, seu Zé! Dizia eu desconfiado. Dirigimo-nos à Noroeste, sempre pedindo as chaves e as chaves não vinham.

Dias depois, paramos para almoçar no Hotel do Pires, em Pirajuí.

Ao tomarmos o carro, tivemos a incrível surpresa de encontrar a bolsinha de couro, com as chaves dentro, sobre o tapete, onde o motorista teria de por os pés!!!

— Aqui tem coisa, Zé! Continuava eu desconfiado.

Maior, porém, foi nossa surpresa quando, dali a cinco quilômetros, estourou o pneu!

— Graças a Deus temos a chave! Exultou o Zé.

Viaja daqui, viaja dali, fomos a Curitiba e, de lá, a Ponta Grossa. No hotel do Bismara, contava eu o caso da fotografia quando um senhor, ao meu lado, pediu-me para vê-la. Notei que o homem, — hoje o meu bom confrade João 5iana, — estava como que concentrado, com a fotografia na mão, quando, com voz grossa e amiga, me disse:

— É uma troça inocente… Percebendo que se tratava de um médium, pedi:

— Escreva isso nas costas da fotografia…

Tomando de um lápis, escreveu: “é uma troça inocente — Emílio”.

Seria o meu Emílio de Menezes?

E, antes que perguntasse, respondeu-me: “Sim, sou quem estás pensando”.

Tendo o médium me dito que julgava que esse Espírito estivesse em melhor situação, fiquei aflito e penalizado, sem, então, saber a maneira de auxiliá-lo, mas o Espírito logo me confortou dizendo-me:

— Sempre o velho coração amigo… Não te preocupes comigo, pois estando mal aqui, estou um milhão de vezes melhor que vocês aí…

Regressamos a Curitiba e ali me esperava outro fato. Fui apresentado ao Hugo Marçal e subimos ao meu quarto no Braz Hotel. Logo que entramos, Hugo ficou tomado por um Espírito, de surpresa, e, empunhando um lápis, abriu meu bloco e escreveu de diante para trás, assinando.

Fui ao espelho e, oh! maravilha! Dizia o bilhete: “Amigo Cornélio, abraços e beijos: eu não te beijaria nem por um conto de réis. Emílio”.

Ora, eu nem tempo tivera para contar o caso de Ponta Grossa. Lembrei-me logo de conferir as assinaturas: perfeitamente idênticas!

Recebi também, nessa mesma ocasião, uma mensagem assinada por O. B. recomendando-me: “Leia, estude, medite e ore”. E então, pela primeira vez, comprei livros espíritas. “No Invisível” foi a primeira escolha, mas ao ver “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec, eu, que temia até tocar num livro que trouxesse na capa esse nome, abri-lhe a esmo uma página e li: “É preferível recusar 99 verdades a aceitar uma só mistificação”. Que me dizem?!!! Pois os espíritas concordam que podem ser mistificados?! E eu, que tanto combatia o Espiritismo, perdi o medo e comprei “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, “O Livro dos Médiuns”… Depois não houve mãos a medir… Li as obras de Léon Denis e de Bozzano. Era a sede da Verdade que eu queria saciar de uma vez, mas… Tive então a felicidade de, em Uberlândia, entrar em contacto com Bezerra de Menezes que, logo de início, me aconselhou: — Calma, meu amigo… Calma… Chegaste à Fonte da Água Viva, mas toma-a aos poucos… Cuidado, muito cuidado com o fanatismo; ele é mil vezes pior que a descrença. Porém, lá muito dentro de mim: continuava, como um espinho doloroso, o caso das contradições dos Evangelhos; mas antes que o interpelasse, disse-me Bezerra:

— Onde estão as contradições nos Evangelhos? Fiquei chocado pelo inesperado da pergunta e citei os casos.

— E Jesus não alterou um til da Lei de Deus! Disse-me .

— Como assim?

E ele me respondeu com outra pergunta e todo o meu espírito se iluminou na justa compreensão:

— Qual é a “Lei de Deus”, meu amigo?

— Os dez mandamentos…

— E Jesus alterou um só deles?

— Não…

— Então não confundas a Lei de Deus com as leis que estão na Bíblia e que eram leis dos homens para homens, de grande atraso e profunda ignorância. Seus autores aparentes eram médiuns a ditar leis de acordo com a época, local e necessidades de cada povo.

Continuando nossa conversa, tão franca e elucidativa, disse-lhe:

— O que me apavora no Espiritismo é aquela passagem: “Pode o Espírito do Mal transformar-se em um anjo de luz para seduzir”… ()

— Mas, veja também a passagem que diz: “Pelo fruto conhecerás a árvore; se o fruto é bom, boa será a árvore, pois más árvores não podem produzir bom fruto”. (Mt 7:18) E, para isso, foi que João, o Evangelista, recomendou: “Aprendei a conhecer os Espíritos que são de Deus”. (1Jo 4:1) Aí mesmo, na Terra, vocês, com um pouco de argúcia, não distinguem logo um mistificador de um homem de bem? Ele mistificará uma vez, mas não duas, se estiverem atentos. Quanto à prevenção contra os de cá: “oração e vigilância”. (Mt 26:41) E saiba que os “curiosos e fúteis” são as vítimas escolhidas pelos enganadores.

Assim foi que, recebendo claras instruções, me tornei espírita, dos menorzinhos e dos mais ignorantes”.


Segundo Joffre Martins Veiga, em “A Vida Pitoresca de Cornélio Pires”, o jornalista Amadeu Amaral, primo do folclorista; recomendou-lhe ao deixar “O Comércio de São Paulo”:

— Seja bom, Cornélio… Acrescentando o biógrafo: — Conselho que o grande humorista sempre seguiu.

O mesmo escritor comenta: “Ninguém amou tanto sua gente como Cornélio Pires; ninguém se preocupou tanto com seus semelhantes como esse homem que foi, antes de tudo, um bom.

Cornélio fruiu da amizade e do apreço do poeta Martins Fontes que, a respeito do mesmo, escreveu: “É um puro bandeirante, um artista incansável, enobrecedor da Pátria e enriquecedor da língua”.

Foi a conselho do jornalista Amadeu Amaral que resolveu tornar-se escritor regionalista, destacando-se, então, como um dos maiores divulgadores do folclore brasileiro.

No ano de 1910 lançou a lume “Musa caipira”; livro que foi saudado pela crítica; por seu conteúdo tipicamente brasileiro, pois Cornélio Pires “soube mergulhar no coração de sua gente e de lá trazer, para a literatura, toda a riqueza da alma simples e boa do caboclo”.

Por volta de 1914, deixou Cornélio Pires a imprensa e passou a dar espetáculos públicos, com seus números inconfundíveis, percorrendo o interior paulista e também vários Estados brasileiros. Nessas atividades encontrou sua consagração, alcançando o ano de 1946 com o seu já famoso “Teatro Ambulante Gratuito Cornélio Pires”; percorrendo cidades e se consagrando na opinião pública. Foi, como se costuma dizer, um integrador, sempre se notabilizando pela brasilidade e pelo amor ao sertão, como seus ancestrais, vindos de velhos troncos piratininganos.

Alguns anos antes da sua desencarnação, voltou para Tietê, onde comprou, nas imediações da cidade, uma chácara na qual, em três alqueires e meio, fundou a “Granja de Jesus”, com o objetivo de agasalhar e educar menores até 18 anos, tendo desencarnado antes da conclusão da obra.

Poeta, escritor, editor, conferencista, radialista, professor de ginástica, despachante e rábula em Botucatu, deixou numerosos discos, produziu o filme sonoro “Vamos Passear”; focalizando cenas do folclore paulista, este em 1934. Fez outro filme precursor, “Brasil Pitoresco”, em 1923. Fundou a revista “O Saci”, com Voltolino. Foi um pioneiro no tocante à gravação de pios de passarinhos, com dois discos; ajudou a fundar a “Associação Cristã de Moços”.

Três meses antes de desencarnar, pressentindo que os dias lhe estavam contados, Cornélio Pires tomou de uma folha de papel e escreveu sua última vontade, verdadeiro testamento de um homem caridoso, que sempre se preocupou com o bem-estar do próximo:

“Em qualquer tempo em que eu deixe este corpo, — que tanto me serviu para minha estada na Terra, para me “consertar” um pouco, — desejo que ele seja sepultado descalço e de pijama. Não por vaidade, mas para que se aproveitem, — alguns pobres, — das roupas e calçados que usei. Nisto não há caridade. Como não posso usá-los, os dou…”


Alguns críticos julgam que, em Cornélio Pires, o folclorista, era bem melhor do que o poeta, o humorista, o contista, valorizados mais pelos elementos folclórico do que o estético. Mas, já Silvio Romero detectava aquilo que a sua produção psicografada leva à ênfase: … “o gênero que cultiva é, muito ao contrário do que geralmente se pensa: de grandes dificuldades”.


É esse o homem que, anualmente, os tieteenses homenageiam, através da “Semaria Cornélio Pires”.


BIBLIOGRAFIA


“Musa Caipira”, 1910; “Versos”, 1912; “Versos 5elhos”, 1912; “Cenas e Paisagens de Minha Terra”, 1912; “Monturo”, 1915; “Quem Conta um Conto”, 1919; “Conversas ao pé do fogo”, 1921; “Cenas e paisagens da Minha Terra” (Musa Caipira), 1921; “Estrambóticas Aventuras de Joaquim Bentinho, o Queima Campo”, 1925; “Tragédia Cabocla”, 1926; “Patacoadas”, 1926; “Seleta Caipira”, 1927; “Almanaque do Saci”, 1927; “Mixórdia”, 1927; “Meu Samburá”, 1928; “Sambas e Cateretês”, 1932; “Tarrafadas”, 1932; “Chorando e Rindo”, 1933; “De roupa Nova…”, 1933; “Só rindo”, 1934; “Tá no Bocó”, 1935; “Quem conta um conto e Outros Contos” (Coisas do passado), 1934; “Enciclopédia de Anedotas e Curiosidades”, 1945; “Coisas do Outro Mundo”, 1944; “Onde estás, ó morte?”, 1947; estas duas últimas obras encerram exclusivamente assuntos espíritas.


DO ALÉM TÚMULO


Pela atividade mediúnica de Francisco Cândido Xavier e de Waldo Vieira, expressando-se nos gêneros mais difíceis — o soneto e a trova, — vem se revelando um autêntico mestre.

“Antologia dos imortais”, 1963; “Trovadores do Além”, 1965; “Poetas redivivos”, 1969; “O espírito de Cornélio Pires”, 1965; “Retratos da vida”, “Conversa firme” e “Baú de casos”, 1977.



Araraquara, 1977.