Coletânea do Além [Feesp]

Capítulo XXXVIII

No escândalo da cruz



Finda a crucificação, (Mc 15:22) espraiou o Mestre o olhar pela turba inconsciente. As opiniões contraditórias do povo alcançavam-lhe os ouvidos. Ocultavam-se os beneficiários de seu amor. Era constrangido, agora, a permanecer entre o insulto dos acusadores e o escárnio da multidão.

Angustiado, identificava a maioria dos semblantes.

Ali, comprimiam-se pessoas da cidade que lhe conheciam a missão divina; mais além, acotovelavam-se romanos aos quais socorrera, generoso, ou romeiros de regiões diversas, que lhe deviam favores e benefícios. Quase todos haviam comparecido à festividade de sua entrada triunfal em Jerusalém, comentando-lhe o feito, na ressurreição de Lázaro, (Jo 11:1) ou recordando-lhe, entusiasmadamente, a virtude, a cooperação, o ânimo e o serviço.

Não haviam decorrido muitas horas e as mesmas bocas ridicularizavam-no, sem piedade.

— Por que não reagira, em recebendo a ordem de prisão?

— Não seria razoável a fuga dos discípulos diante de sua tolerância em frente aos sequazes dos sacerdotes?

— Não salvara a tantos? Por que não remediara a si mesmo?

— Ensinara a resistência ao crime e às tentações… Por que se entregava, assim, como desordeiro vulgar?

— Não seria vergonha atender a missionário como aquele, incapaz de qualquer reação? Entretanto, um dia, indignara-se no templo, perante os mercadores infiéis…

— Que razões o moviam a não recorrer à justiça do mundo?

— Contrariamente, a toda expectativa, aceitar a prisão sem resistência!

— Deixou-se conduzir como criança pela pior companhia, submeteu-se aos açoites e bofetadas…

— Deixou-se vestir de uma túnica escandalosa, ele que era simples e sóbrio por excelência, nem reclamou contra os espinhos com que lhe coroaram a fronte…

— Aceitou a cruz como se a merecesse e, por fim, ó ridículo supremo!, não se revoltou quando o exibiram no madeiro, seminu, sob apupos e gargalhadas…

Jesus ouvia as opiniões que se entrechocavam, guardando silêncio.

Onde estaria o Evangelho, se reagisse? Para onde enviaria os seguidores de sua palavra se lhes abrisse no coração a sede de vingança? Que seria do Reino de Deus, se pretendesse um reino dominador na Terra? Onde colocaria a Justiça do Pai, se também duelasse com a justiça dos homens? Onde situava o auxílio divino, de que era portador, se não desculpasse a ignorância? Como demonstraria o amor de que se fizera pregoeiro, lançando chamas de cólera, exigindo reivindicações e castigando os escarnecedores, já de si mesmos tão infelizes? Deveria acusar publicamente os organizadores do escândalo, dando-lhes pasto aos sentimentos perversos ou deveria tratá-los com o silêncio, para que tivessem de enxergar a si próprios.

O Mestre espraiou o olhar pela multidão desvairada, lembrou-se dos amigos distantes e fixou os adversários presentes, meditou nas profundas perturbações da hora em curso, considerou as necessidades espirituais de cada homem, compreendeu o imperativo da vontade de Deus e, já que era indispensável dizer alguma coisa, movendo os lábios na direção do futuro de sua doutrina, levantou os olhos da Terra para os Céus e murmurou compassivo: — “Perdoai-lhes, meu Pai, porque não sabem o que fazem…” (Lc 23:34)




(Reformador, março 1945, p. 62)