29/12/1962
Rômulo, seja a prece a luz do nosso encontro — encontro de almas —, felicidade pura de coração!
Sim, estou mais serena, mais confiante. Comunicar-se no ambiente que deixamos, depois da separação aparente, exige também adestramento.
Em nossas notícias de janeiro passado, sentia-me como que fora de mim. Era uma alegria cheia de lágrimas, uma dor repleta de alegria. Via-me como que suspensa, com a cabeça em dificuldade para pensar, dominando a ideia precisa no momento justo. Hoje, no entanto, qual aconteceu em novembro, quando me foi possível escrever com mais segurança, estou calma, senhora de mim.
Compreenda você a luta pela readaptação. É tudo novo, inesperado, embora a paisagem seja clima espiritual que se retoma pouco a pouco. Esteja certo, porém, de que é necessário estudar, e estudar os meios de comandar ou recomandar movimentos e hábitos, palavras e expressões.
Felizmente, . Todos os nossos ideais, todos os nossos sonhos acham-se aqui vivos — vivos e lindos — como se fossem filhos de nossas almas a esperarem por nossas mãos. Faço o possível, hoje, para estender os interesses espirituais que cultivamos juntos. As esperanças que a sua generosidade me deu vibram comigo e, se bem me reconheça, por vezes, incapaz ou quase incapaz de realizá-las, assim, sem a sua companhia direta, esforço-me por libertar o coração, associando-me às obras de construção diferente no terreno do espírito, abraçando aquelas atividades que a minha consciência aprova dentro da nossa comunhão de vistas. Isso, Rômulo, porque na vida espiritual somos deixados plenamente livres para escolher o gênero de serviços que mais nos agrade. Com essa explicação, não quero dizer que estejamos ausentes de disciplina. Há regiões de provas dolorosas, em que os deveres da expiação assumem o caráter de grilheta para forçados. No caso da esfera em que me encontro, no entanto, o reajuste gradativo das nossas forças está conjugado a uma independência relativa para as tarefas que mais se harmonizem com o nosso modo de ser. As obras da beneficência que você me habitou a estimar com todo o meu coração me atraem, como é natural, mas a família, Rômulo, a família é a escola de nossa felicidade maior! Nossos filhos queridos, nossos pequeninos de Roberto e Marília, mamãe e todos os corações ligados aos nossos representam laços fortes demais para que me decidisse por outra coisa! Você me perdoará se não posso, dessa maneira, trazer ao seu carinho outras modalidades da luta. É como se os horizontes inflamados de luz me chamassem para grandes voos, como se estrelas imprevistas brilhassem de longe, chamando, chamando… Mas seria justo partir, largar, esquecer? Demandar outros rumos, conceber, sem vocês, a renovação? Ah, Rômulo! Ah, meus filhos! Quem é esposa e mãe, depois da morte do corpo, deve ser como a árvore cortada… As raízes agarram-se à terra e novos ramos aparecem, de um modo ou de outro, para que as flores e frutos voltem a oferecer a colheita de ternura e alegria. Do ponto de vista do amparo, tenho recebido de todos os nossos amigos todas as demonstrações de carinho e entendimento que, em tempo algum, na Terra, conseguiria imaginar, mas estou livremente presa ao nosso lar e aos nossos problemas, e tanto quanto me seja possível estarei em seus passos e em suas realizações. Sei que há momentos em que o seu coração me busca, agitado, assim como acontece ao viajor distante de casa quando a tempestade aparece, ou quando a secura requeima.
Peço a você, Rômulo, o benefício da oração. Quando a situação esteja complicada, quando os apelos às alterações indesejáveis se multipliquem no sentimento, recorramos à prece. Creia que não tenho outra disposição para defender a harmonia que a Divina Bondade nos concedeu e se você orar isso será mais fácil. Um minuto, um minuto só e estaremos unidos na preservação de nossa paz florida de certezas que sombra alguma poderá dissipar.
Compreendo tudo. Encontro-me em outro ângulo e dessa posição nova reconheço a extensão dos conflitos, mas rogo a você paciência e serenidade. O tempo, sim! O tempo é estranho, embora sublime. Na alegria da união ele voa, na amargura da saudade arrasta-se tocado de aflições. Mas os nossos amigos daqui me esclarecem que não poderia ser diferente. O amor verdadeiro é esse amor que vence a morte. Belo e divino, aí e aqui, ele plasma a saúde da alma nos tempos da comunhão integral e transforma-se num espinho de sofrimento quando ligeira nuvem de separação se estabelece. Nele, porém, continuamos vivendo. Quanto me é possível, respiro em seu ambiente próprio, compartilhando seu trabalho, suas preocupações, que são as minhas. Suas noites de reflexão e silêncio povoado de vozes íntimas são igualmente as minhas noites. E rogo a Deus abençoe a sua devoção ao trabalho incessante, porque o trabalho é o nosso companheiro e a nossa bênção.
Suas conversações com o nosso Roberto, na intimidade, são motivos de muito contentamento para mim. Auxiliemo-lo, sim, restaurando-lhe as forças. Marília tem necessidade desses entendimentos, porque as ideias que você planta na mente dele produzem tranquilidade e esperança, otimismo e bom-ânimo para ela e para as crianças. Nunca supus que estaria presente, em espírito, a essas aulas do coração em que você lhe prepara o mundo interior para vencer e caminhar à frente, mais seguro de si próprio, na direção do futuro. Deus nos abençoe. Você pode hoje avaliar comigo que certas edificações da alma e do destino são levantadas vagarosamente, dia por dia, com a nossa vigilância amorosa em favor daqueles que amamos. Nosso Roberto está valoroso, como sempre, mais experiente, mais amadurecido para os embates da vida terrestre, e é para mim razão de muita alegria. Nossa Wanda tem lutado, sim, lutado, porque traz a sensibilidade às vezes ferida de quem vive problemas diversos a um só tempo. Entretanto, filhinha, rogo a você a coragem e a fé viva — dois tesouros que você soube ajuntar. Mas é por que você os possui com tanto brilho que sua mãe vem pedir a você conservá-los com segurança. Desculpe, Wanda, as garras do caminho. Espinheiros passam quando passamos sem carregá-los. Vivi com você as suas dificuldades no trabalho e louvo a sua resistência moral. Agora, esqueçamos. Existem amigos para os quais só o benefício da oração consegue servir por demonstração de nossa estima. Tudo, no entanto, é o passado que retorna — passado que não podemos examinar com muitos detalhes para que o presente não seja comprometido. Aí, desejamos, em muitas ocasiões, rever o que se foi, descobrir o que foi arquivado, mas no mundo espiritual súbito receio se apossa de nós quanto à localização exata de certas pessoas na estrada que já trilhamos. Pelo menos é o que acontece pessoalmente, conquanto acredite que isso ocorra por me achar aqui sem o concurso mais direto de Rômulo ou de vocês. Esperarei mais tempo, preferindo continuar em nosso curso do Evangelho, simples, aprendendo que todos somos irmãos. Creio seja melhor entrar na posse da fraternidade para depois consagrar-nos a certos reconhecimentos. Seja a nossa prece uma bênção de bons votos que alcance a todos, incluindo aqueles que mais nos façam sofrer. Peço a você, filhinha querida, não esmorecer. Sou grata por tudo. Por seus pensamentos, por suas conversações comigo diante de nossos retratos, de nossas recordações, por seu devotamento aos nossos costumes do lar, pelo verde de nossas lembranças, pelas flores, pelas alegrias com que você e o Rômulo me envolvem. Às vezes, chego à nossa casa e tão feliz me sinto que pergunto a mim mesma se o Céu estará em nosso ninho familiar ou no firmamento que entrevejo sem penetrar, porque é tanto o repouso do coração, junto de vocês, que para mim não há necessidade de outro paraíso! Ainda agora, nas lembranças do nosso 27, fiquei pensando se devia contar a existência no mundo pelo dia do berço ou pelo dia do casamento! Mamãe sabe que isso não quer dizer que não tivesse infância iluminada de alegrias inesquecíveis e perdoará se me expresso assim. É que há trinta e nove anos a vida se transfigurou para minh’alma na vida de vocês três. Nunca soube, de fato, onde estava Rômulo, você, Roberto e eu, porque vocês eram eu mesma, sem que pudesse fazer a menor diferença. Desejo que você compreenda que tudo é bem, tudo é para o bem, de vez que, atualmente, os nossos pensamentos e planos contam unicamente com o bem. Não se sinta abatida, fatigada. O dia amanhece por mensagem de Deus, ensinando-nos a começar e recomeçar. Lancemos à sombra o que é da sombra e procuremos a luz — a luz que nos aponte a Vida Maior! Tudo está certo. Roguemos, pois, a Deus, nos auxilie a não enxergar errado. Solicito a você confortar seu pai, principalmente, quando regresse cansado. Converse, invente algo novo! Estaremos juntas em pensamento. Você observará que todas as providências resultantes do seu carinho serão acertadas. Não tema. Estude as possibilidades e combine com nosso Rômulo a melhor maneira de atendermos ao curso projetado. Convençamo-nos de que o seu propósito não é sem razão. É preciso. Você tem necessidade de alicerçar os seus recursos para o exercício de maiores responsabilidades. E olhe a vida com o seu otimismo inalterável. Sorria, filhinha! A experiência no mundo é o que é — uma experiência. A vida mesmo é outra coisa. Preparemo-nos para a vida, para a vida que é o dom de Deus, de que na Terra conhecemos apenas parte.
À mamãe rogo exprimirem toda a ternura da filha reconhecida. O papai, conosco, faz também suas as palavras com que procuro, debalde, significar a ela o meu carinho, que cresce todos os dias. Ela, Rômulo, é comparável a uma heroína que nos oferta determinado ensinamento de elevação espiritual cada dia. Sinto-lhe a falta em nossas preces de hoje, mas eu mesma fiz quanto pude para contê-la em casa. A saúde reclama isso. Indispensável saibamos preservá-la em nosso refúgio, com a dedicação de quem defende uma luz.
Nosso pessoal prossegue com a bênção constante de Jesus e do sogro. Somos felizes, sim, embora a nossa ventura esteja incessantemente ainda esmaltada de saudades, imitando uma flor de rara beleza orvalhada de lágrimas. Tudo, porém, obedece às determinações da vida.
Martha e Célia afligem-se particularmente por Lúcia. Façamos tudo o que estiver ao nosso alcance para reconfortá-la e socorrê-la. É verdade que as modificações aí são grandes, mas as nossas não são menores, porquanto é preciso velar, aceitando as renovações compulsórias. Você, Rômulo, não se inquiete e sempre que a oportunidade aparecer fale esclarecendo com amor, ainda mesmo que as suas palavras não sejam recolhidas de imediato. Hoje vejo que os apontamentos espirituais são como luzes que, ainda mesmo não assimiladas de improviso, permanecem no ambiente de nossas construções para se incorporarem definitivamente, um dia, à nossa provisão de conhecimentos. Zina, Lúcia, Flora e Albino são corações nobres e amigos, e a hora que passa é de união nossa mais profunda, mais íntima, a fim de que os nossos problemas sejam superados.
Com risos e lágrimas comecei esta carta e creio que rindo e chorando devo encerrá-la. O sogro, presente, recomenda-me observar como é difícil abandonar o papel quando o coração está falando e afirma que deixou a noite para que pudesse derramar a minha alma através da palavra escrita. Isso, porém, Rômulo, é uma espécie de sede do espírito que o lápis não satisfaz. Por mais escreva, mais desejaria escrever, externar-me, revelar-me, transmitir eu própria a vocês, como se isso fosse possível. Permaneceremos, porém, juntos, sempre mais juntos.
À nossa Marília e às crianças queridas o meu carinho invariável. Maria do Carmo está sempre em minha ternura e reúno-a com o netinho em meu coração.
A hora cessa. Pena que seja assim, mas há um limite dos recursos em mão. Façam, por mim, você, Rômulo, e Wanda, o que deixei de fazer escrevendo. Distribuam meu afeto com todos os nossos. Digam-lhes de minha gratidão, do amor que não morreu. Enfileirar os nomes de cada um seria difícil. A ternura de irmã é com todos e dirige-se a todos.
Eu, que lhes partilhei o Natal, como sempre, desejo a todos um ano novo feliz.
Rômulo, não suponha que me esqueci de nossos cartões. Escrevo todos ainda, por suas mãos ou por nossa Wanda, exprimindo os nossos votos. E, um dia, mais juntos ainda, transformaremos todos eles em mensagens de luz para nossos amigos.
Rômulo, Deus nos abençoe e abençoe também você a sua “Mary”. Não me sinta distante, não se veja sozinho. E olhe que nem digo adeus. Ao encerrar esta carta, sentir-me-ei ao seu lado, mais intimamente unida a você.
Com mamãe, Wanda, Roberto, Marília e as crianças receba, Rômulo, o coração de sua
Nota da organizadora: Mensagem recebida por Francisco Cândido Xavier em Pedro Leopoldo, MG, na noite de 29 de dezembro de 1962.