Nas Pegadas do Mestre

CAPÍTULO 10

O pesadelo de Loiola



Certa vez, quando o fundador da Companhia se achava absorto naquela ideia fixa, que tanto o obcecava, de conquistar o mundo, caiu numa sonolência profunda, e teve um pesadelo. Viu-se, sem saber como, às portas do Inferno. Guardava a entrada do Hades luzido demônio, de chavelhos retorcidos, e cauda eriçada, terminando em penacho. O Geral interpela-o:

— Estão aí os hereges e os ímpios, padecendo a justa punição que merecem?

— Enganais-vos. Os ímpios e hereges converteram-se e alcançaram a salvação.

— Ah! já sei; estão aí os homicidas, os ladrões, os incendiários, os bandidos?

— Não estão. Purificaram-se no cadinho da dor, onde expiaram seus crimes; estão salvos.

— Compreendo agora. Acham-se sob os domínios de Satã os perjuros, os tiranos que oprimiram os povos, os ricos avarentos que menosprezaram a pobreza, os sátiros e os políticos profissionais?

— Ainda não acertastes. Todos esses pecadores encontraram na sentença — "quem com ferro fere, comferro será ferido" — o seu meio de reabilitação. Foram redimidos, passando pelo que fizeram passar os outros.

— Nesse caso, o Inferno não passa de um mito. Uma vez que ninguém é condenado, o Hades não é mais que uma ficção cujo prestígio, fundado em mera fantasia, acabará desaparecendo, pondo assim o valor da Companhia em perigo?

— Errastes ainda uma vez. O Inferno, cujos portais com ufania guardo e defendo, é uma realidade. Há muita gente cá dentro. Quereis saber quem são os condenados? São os hipócritas, os falsos mentores do povo que mercadejavam com a religião, abusando da credulidade dos pequenos e corrompendo a consciência dos grandes. São os mercadores do Templo, os traficantes da fé, os que devoravam as casas das viúvas e dos órfãos a pretexto de oração. São os embrutecedores da razão, os piratas do pensamento, os inimigos da verdade. São, finalmente, aqueles que outrora, num brado colérico e rouquenho, clamavam a Pilatos: Solta Barrabás! Crucifica Jesus Cristo!

— Apre! Que horrível pesadelo! Esta só lembra ao Diabo! — disse Loiola, erguendose, espavorido; pois escutava ainda o eco longínquo daquele vozerio, que exigia a crucificação do Filho de Deus.