Nas Pegadas do Mestre

CAPÍTULO 139

A Letra e o Espírito



"As palavras que vos tenho dito são espirito e são vida; o espirito é o que vivifica, a carne para nada aproveita. "


(Evangelho.)

O grande tribuno Antônio Vieira, fazendo, certa vez, apologia da alma e da imortalidade, teve esta feliz expressão: Quereis saber o que é a alma? Vede um corpo sem ela.

De fato. Semelhante argumento vale, em sua simplicidade e singeleza, pela mais cabal demonstração. Que é o corpo sem alma? É cadáver, cadáver que dali a momentos se transformará em pasto de vermes. Não estão ali os órgãos? Não estão ali os membros? Não se acham ali todas as células de que se compõe o corpo? Porque não pensa aquela cabeça, aquele cérebro não raciocina, aquela boca não fala? Porque não ama aquele coração; nem aborrece? Porque não tem alegrias nem tristezas? Porque não brilham aqueles olhos, e aquele rosto não tem mais encanto? Tudo isso simplesmente porque a alma o abandonou.

A alma é a sede da vida. É ela que pensa, que sente, que imprime à matéria esta ou aquela forma, que dá ao rosto esta ou aquela expressão.

Este símile pode ser aplicado com muita justeza à letra, e seu respectivo espírito.

A lei é a manifestação gráfica da ideia, como a palavra é a sua manifestação verbal.

A ideia é que vivifica a letra. Esta sem aquela é morta. A letra está para a ideia — que é seu espírito —, como o corpo está para a alma. Corpo sem alma é cadáver. A letra, sem o seu respectivo espírito, é um sinal vão, inexpressivo, morto.

O homem, depois de cadáver, perde tudo que o distinguia; é massa inerte que se pode transportar para onde se queira, que se pode vestir ou despir. Está por tudo, não tem vida; e onde não há vida não há "querer".

É precisamente essa a condição da letra desacompanhada do seu espírito: é cadáver. Podemos dar-lhe a interpretação que melhor nos convenha, podemos vesti-la desta ou daquela roupagem, ou de todo despi-la se assim o entendermos. Ela nada diz, nada protesta, a tudo se submete, mesmo à satisfação dos caprichos mais extravagantes: "perinde ac cadáver".

Quando, porém, a letra é mantida com o espírito que lhe é próprio, jamais podemos torcer-lhe a legítima interpretação sem incorrer em contradições que os fatos virão logo, fatalmente, demonstrar à luz de toda a evidência. E isto sucede porque é na ideia oculta através da forma que está a vida, a verdade revelada do Céu, essa rocha sobre a qual Jesus assentou os fundamentos da fé.

Eis aí a distinção entre as obras dos homens e a obra de Jesus Cristo. Os homens fundam sua política e suas religiões sobre dogmas intangíveis, dogmas que são montões de letras mortas, sem espírito, e, portanto, ineficazes para o fim a que pomposamente se dizem destinar.

Jesus Cristo levantou o templo majestoso da verdade sobre a ideia viva, sobre a manifestação inequívoca do espírito atuando fortemente sobre a consciência, sobre o cérebro e sobre o coração do homem, conduzindo-o à realização dos altos e gloriosos destinos que lhe serão reservados.