É admirável que, neste século, que sucedeu ao chamado das luzes, perdure ainda acintosamente o direito da força sobrepondo-se à força do direito.
Não quero falar da guerra cruenta, brutal, feroz. Quero referir-me ao prestígio da força sob outro aspecto: a maioria.
A cada passo invoca-se o prestígio da maioria para co-honestar as maiores iniquidades.
Que é a tal maioria? É o número, é a quantidade. Mas, se a justiça, como sói acontecer comumente, não está com a maioria, será lícito sacrificar-se o direito à imposição do maior número? Nesse caso, para que servem as leis, os códigos, as constituições, que, segundo dizem, regem as nações cultas? Em que diferem essas nações das tribos selvagens de outrora? Como estas, não decidem, hoje, as nações civilizadas, os problemas e questões sociais, apelando para o número, que é a força, em detrimento do direito assegurado pelas leis? Onde o valor de tais leis, se elas são constantemente invalidadas pelo número, pela quantidade que representa a força?
A diferença, pois, entre a sociedade atual e as hordas selvagens, é, neste particular, haver-se substituído a brutalidade do ataque pela manobra da hipocrisia. Há vantagem na troca? Poupam-se vidas, mas destroem-se brios, desfibram-se caracteres, corrompem-se consciências.
É o que vemos na atualidade. Não há mais homens: há vassalos, há servos, há escravos. Ninguém mais tem opinião própria. O objetivo de toda a gente é acompanhar a maioria; é engrossar o número; o número é a força, e a força é que domina.
O ideal despareceu. O ideal é a justiça; o ideal é a verdade. Verdade e justiça foram vencidas pelo número. O número aumenta sempre. Quando a criança entra no uso da razão, já sabe, graças à influência do meio, que é uma unidade que será adicionada à massa de que se compõe a maioria. Não se deve opor a esse processo de absorção.
Reagir é incompatibilizar-se com a força. Cumpre, portanto, deixar-se amatalotar com os passivos para viver comodamente.
Assim querem os césares de casaca e de batina. A falsa fé, aliada à falsa política, vai abastardando o caráter do povo. Os costumes vão-se corrompendo. A lei da passividade é imposta das catedrais e dos palácios. "Perinde ac cadáver" é a ordem do dia.
A Igreja está separada do Estado, pela letra da Constituição. Não obstante, o clero romano domina as casas pias subvencionadas, benze espadas, reza "De profundis" à custa do erário público, recebe vultosas somas dos cofres da nação sob pretextos inconfessáveis. Todos esses abusos são explicados como sendo essa a vontade da maioria.
E quando se esbulham os candidatos eleitos por maioria de votos? É porque assim quer outra maioria maior: o governo, a força armada.
Só essa moral conseguirá, penetrando os corações, sobrepor, ao direito da força, a força do direito.