É singular e significativo o fato, por vezes verificado, de os discípulos e apóstolos de Jesus o desconhecerem, quando ressurgido. Eles esperavam que o Mestre ressuscitasse, visto como tal acontecimento constava das profecias, e a ele o próprio Jesus se reportara de modo categórico e positivo.
Portanto, parece natural que, ao verem-no, após o dia predito da ressurreição, o reconhecessem de pronto. Não obstante, deu-se o contrário; e precisamente com as pessoas que mais de perto privaram com ele, tais como Pedro, João, Maria Madalena, etc. Como se explicará este curioso caso? Quer-nos parecer que o Mestre, propositadamente, se disfarçava modificando os contornos de seu semblante a fim de colher as impressões dos seus mais íntimos a respeito dos ensinos que lhes havia ministrado. Proporcionava, assim, oportunidades, aguardando o modo de agir dos discípulos, cujos pensamentos ocultos e reservados punha a descoberto.
Que Jesus possuía poder plástico em alto grau é coisa que se não discute.
Conhecendo a matéria em sua estrutura íntima, e, bem assim, as leis que presidem à organização das formas sob esta ou aquela modalidade, jogava com os elementos ao sabor da sua poderosa vontade. É assim que o vemos transfigurado no monte Tabor, com rosto luminoso, corpo refulgente e diáfano como se fora urdido de luz. No jardim das Oliveiras, quando o buscam para o prender, irradia repentinamente esplêndido fulgor, apavorando os esbirros, que, ofuscados, caem todos por terra. No ângulo do templo, certa vez que pretendem justiçá-lo prematuramente, desaparece, porque ainda não era chegada a sua hora. Na estrada de Emaús, põe-se ao lado de dois discípulos seus, e, incógnito, discute acaloradamente com eles durante longo trajeto, só se dando a conhecer quando lhe aprouve, depois de haverem chegado a uma estalagem daquela aldeia. Madalena o vê à beira do túmulo, donde ressurgira, e, desconhecendo-o, supõe tratar-se de um certo jardineiro; João, Pedro, Tome e outros divisam-no na praia, pela madrugada, e só logram saber que se tratava do Mestre querido após a maravilhosa pesca que ele lhes proporcionara.
Que quer tudo isto dizer senão que Jesus imprimia ao seu semblante o cunho que lhe parecia, mostrando-se, ora no esplendor de uma glória que lhe era própria, ora sob os andrajos com que se vestem os homens deste mundo?
Até hoje, prosseguindo no desempenho de sua obra de redenção, o Cristo de Deus continua manifestando-se sob veladas aparências. Os que tiverem olhos de ver e ouvidos de ouvir, poderão vê-lo e ouvi-lo.
Sempre que em nossa mente surge certa influência, que, opondo-se ao nosso egoísmo, desperta em nós sentimentos de justiça, é Jesus que está em ação junto de nós; e como os dois discípulos de Emaús, nós não o reconhecemos. Toda a vez que uma voz interior nos advertir, tornando-nos capazes de atos de altruísmo, e de rasgos de bondade, é Jesus que, incógnito, opera em nossos corações a obra de nossa redenção; e nós, como Madalena, o procuramos sem saber onde ele está. Quando, após lutas e porfias improfícuas, resolvemos, depois, inopinadamente, certos casos e problemas já considerados insolúveis, é Jesus que correu ao nosso apelo como outrora fêz aos apóstolos pescadores que em vão lançavam suas redes ao mar.
Quantas vezes se nos deparar, nesta sociedade madrasta, o humilde perseguido e espoliado, defendamo-lo, porque esse humilde é Jesus Cristo disfarçado.
Quando virmos o órfão abandonado, sem pão, sem família, sem lar, roto e faminto, amparemo-lo sem perda de tempo; esse órfão é Jesus Cristo, que assim, veladamente, nos procura.
Quando, ao nosso lado, se apresentar a velhice trôpega e desalentada, sem arrimo nem esperança, cumpre acolhe-la, cercando-a dos devidos cuidados; pois é o mesmo Jesus Cristo que assim, oculto, bate às nossas portas.
Finalmente, a viúva necessitada, o enfermo, o encarcerado, o indigente, o sofredor, seja este ou seja aquele é, invariavelmente, a imagem viva de Jesus Cristo; a única imagem real que dele existe na Terra, a única digna do culto e da reverência dos verdadeiros cristãos, pois é aquela que envolve, sob aspectos vários, o ideal de amor que Jesus personifica.
Não é, pois, figura, não é símbolo, não é alegoria: Jesus está em plena atividade junto de nós, já influindo internamente em nossas almas, já nos impressionando pelo exterior, através da imagem viva daqueles por quem morreu cravado no madeiro infamante.