Nas Pegadas do Mestre

CAPÍTULO 98

O dia dos mortos



A Igreja determinou o dia 2 de Novembro para comemoração dos mortos. O governo, para lhe ser agradável, ratificou a escolha daquele dia, decretando-o feriado nacional.

Ficou, pois, o 2 de Novembro sendo eclesiástica e oficialmente o dia dos mortos.

Mas de que espécie de mortos? Sim, de que espécie, indagamos, visto existirem duas categorias de mortos: os que são denominados tal, por haverem deixado a matéria, e os assim chamados por viverem somente a vida animal. A primeira classificação é dos homens; a segunda e de Jesus Cristo.

Para o mundo, mortos são os que despiram a carne, para Jesus, são os que vivem nela imersos, alheios à espiritualidade.


É o que se infere claramente daquelas célebres palavras que ele dirigiu a certa pessoa que se propunha a acompanhá-lo, uma vez que lhe fosse dado, antes, enterrar o pai que havia falecido: "Deixa aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos; tu, porém, vai, anuncia o remo de Deus. "

Ora, o dia 2 de novembro será consagrado aos mortos que se foram, ou aos que ficaram? Parece que estes últimos pretendem que seja para aqueles, porém, em realidade, é para os mortos que ficaram.

Reportando-se aos antepassados que se distinguiram pela inteireza de sua fé, tais como Abraão, Isaac e Jacob, disse Jesus aos sauduceus, sectários, que, admitindo a existência de Deus, negavam a vida futura: “Para Deus, todos vivem, pois ele não é Deus dos mortos. " Logo o 2 de Novembro é consagrado aos mortos que habitam a Terra, e não aos vivos que povoam os Céus.

É o que, involuntariamente, descobriu o cronista da folha "O Estado", estranhando o descaso com que o povo recebeu o dia de finados, este ano, por decreto papalino, transferido para 3 de Novembro.

Concedamos a palavra ao referido cronista do brilhante matutino paulistano:

"Aquele sentimento generalizado de respeito, no dia consagrado aos que já não vivem, parece que vai arrefecendo, entre nós, o que, na hipótese de se confirmarem tais aparências, seria um desolador sintoma de alteração do nosso caráter. Este ano coincidiu o dia de finados com um domingo, e por isso a Igreja Católica transferiu para o imediato as cerimônias fúnebres. Por essa razão fêz-se feriado também a segunda-feira, o que vale por uma duplicação do dia consagrado aos mortos, pois o dia, marcado pela Constituição, nem por isso deixou de ser, como nos demais anos. Entretanto, de par com esse aumento, as manifestações públicas de piedoso culto aos mortos estiveram longe de revelar maior intensidade, pois, além do sueto estabelecido para aqueles dois dias, e das romarias aos cemitérios, nenhum aspecto particular apresentou a cidade, que os distinguisse dos dois anteriores, feriados também em atenção a outras circunstâncias.


Quer no dia marcado pela Constituição, quer no que a Igreja consagrou aos mortos, a cidade ostentou o mesmo bulício de sempre, e nenhuma casa de espetáculo se julgou no dever de suspender a atividade em virtude de qualquer sentimento religioso ou tradicional, relativo aos mortos!"

Não nos escandalizamos, nem nos surpreendemos com o caso, como o autor das linhas acima transcritas. Achamo-lo antes natural.

O sentimento, qualquer que ele seja, é uma vibração espontânea da nossa alma; e, como tal, não obedece a praxes, nem a liturgias, nem a decretos de espécie alguma. A Constituição e a Igreja podem determinar datas, e fixar dias, declarando-os santos ou feriados, porém jamais lograrão com isso influir no recesso dos corações, despertando sentimentos, ou criando virtudes.

A virtude há-de ser o fruto natural e espontâneo da educação moral, ou não será virtude. Submetê-la a decretos ou encíclicas é desconhecer-lhe a natureza. Daí todas as formas de hipocrisia conducentes a essa degeneração do caráter, que tão mal impressionou o noticiarista do grande órgão de publicidade, "O Estado".

A Virtude não vai à forma, nem admite máscara. Ela foge espavorida dos meios onde tentam mascará-la. Será, pois, de admirar que o povo haja perdido a consideração e o respeito pelo dia dos mortos?

Os mortos-vivos, que habitam os páramos de luz só atenderão as invocações dos sentimentos puros, sinceros e espontâneos de nossas almas. Eles desdenham das cerimonias fúnebres em dias e horas determinadas pelas convenções humanas.

Fica, portanto, o dia 2 de Novembro consagrado aos vivos-mortos que se acham inumados na carne.